Opinião

STF precisa manter o foro especial mesmo após o exercício do cargo

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4 de abril de 2024, 6h32

“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.”

Tal era a redação da Sumula 394 do Supremo Tribunal Federal editada na Sessão Plenária de 3/4/1964, logo após o golpe de 31 de março daquele ano, e alterada em 1999, pelo STF.

As linhas jurisprudenciais são parte da história da Suprema Corte. Debatendo o foro de prerrogativa, o ministro Victor Nunes Leal julgou procedente a Reclamação 473 [1] em favor de Mario Pinotti, que foi ministro da saúde de 1957 a 1960, passando por dois governos, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. A causa foi proposta por Evandro Lins e Silva, que no momento do julgamento já ocupava a Procuradoria Geral da República.

A Constituição era a de 1946, que no artigo 92 previa que “Os Ministros de Estado serão, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e, nos conexos do Presidente da República, pelos órgãos competentes para o processo e julgamento deste”. O artigo 101 definia a competência do Supremo para julgar o presidente da República nos crimes comuns e, mesmo depois da Emenda Constitucional 16 de 1965, os ministros de Estado e membros de diversos tribunais.

O provimento da referida reclamação, para manter a competência do STF mesmo após o reclamante ter deixado cargo de ministro da Saúde, relembra a concessão da ordem de Habeas Corpus nº 33.440 de 1955 em favor de Ademar de Barros, para que fosse julgado pelo Tribunal de Justiça de SP, e o precedente do HC 38.409 em favor do ex-governador do Paraná Moisés Lupion.

Outro precedente citado foi o HC 35.501, de 1957 (RTJ 4/63), da relatoria do ministro Ary Franco em favor do juiz Anibal Quintão, cuja ementa definia a prerrogativa mesmo que após o fim do mandato: “Praticado o crime na função e em razão da função, embora deixando depois o cargo, deve subsistir o foro por prerrogativa da função”. A decisão de Victor Nunes Leal, apesar de na vigência da Constituição de 1946, tem fundamentos inalterados pela Constituição de 1988.

“(…)

E, pois, em razão do interesse público do bom exercício do cargo, e não do interesse pessoal do ocupante que deve subsistir, que não pode deixar de subsistir a Jurisdição especial, como prerrogativa da função, mesmo depois de cessado o exercício.”

Revogação da Súmula 394

Em 2001, o Supremo altera a jurisprudência, cancelando a Súmula 394. No Inquérito 687-4/SP, o ministro Sydney Sanches recapitula a posição do Supremo até aquele momento, destacando precedente do ministro Moreira Alves, seguindo o ministro Octavio Gallotti no HC 69.156-SP, a quem a cassação de Jarbes Ponto Rabelo como deputado federal extinguiria a competência do STF:

“26. Quando a Súmula foi aprovada, eram raros os casos de exercício de prerrogativa de foro perante esta Corte.

Mas os tempos são outros. Já não são tão raras as hipóteses de Inquéritos, Queixas ou Denúncias contra ex-Parlamentares, ex-Ministros de Estado e até ex-Presidente da República. (…)

31. Se não se chegar a esse entendimento, dia virá em que o Tribunal não terá condições de cuidar das competências explicitas, com o mínimo de eficiência, de eficácia e de celeridade, que se deve exigir das decisões de uma Suprema Corte.

Os riscos, para a Nação, disso decorrentes, não podem ser subestimados e, a meu ver, hão de ser levados em grande conta, no presente julgamento.”

Apesar de a revogação da súmula ter sido unânime, importa-nos analisar o voto do inigualável Sepúlveda Pertence, que conclui pedindo a edição de uma nova súmula, a qual de fato mantinha a prerrogativa de foro. Compara, então o ministro, a competência de Foro em outros sistemas legais:

Nesse ponto, só pude encontrar regra semelhante na Constituição da Espanha (art. 71, 4); na Venezuela (Const., art. 215, 1º e 20), com relação a parlamentares e outras autoridades (…)

Na Itália, por exemplo, a redação primitiva do art. 134 da Constituição adstringia a competência da Corte Constitucional para julgar os Ministros de Estado aos crimes ministeriais, os “reati ministeriali”: na expressão de Zagrebelsky, aqueles “che possono compiersi solo da chi è ministro e perchè è ministro” (…)

Na França, a Constituição de 1958 (art. 68, 2) restringiu a competência da Haute Cour de Justice aos crimes funcionais dos ministros; mas que a prerrogativa se entende compreensiva dos processos contra ex-ministros, por delitos cometidos em razão da função, se extrai de que por ela, há alguns anos, hajam sido condenado Abel Bonnard, ministro do governo de Vichy (Debbasch e outros, Dr. Constitutionnel e Institutions Politiques, Economica, 1990, p. 754) e, faz poucos meses, um ex-Ministro da Saúde, no caso do “sangue contaminado”, amplamente noticiado.

A Constituição da Espanha, é certo, tal como a nossa, não restringe aos delitos propter officium a competência da Sala Penal do Tribunal Supremo para os processos criminais contra Deputados e Senadores (art. 71, 3) ou contra o Presidente e os demais membros do Governo (art. 102, 2).

Sepúlveda lembrava que “nas duas vezes em que se quis restringir o foro especial, que tornou-se expresso que, determinados ex-dignatários não teriam mais a prerrogativa, foram os atos institucionais”. A súmula editada após o golpe de 64 havia alterado jurisprudência que já estava consolidada há um século.

Divergências entre o Supremo e o Legislativo

No ano seguinte à publicação do julgado, em 2002, o Congresso Nacional editou a Lei 10.628, que tentava manter a prerrogativa centenária. A lei incluiu que a ação de improbidade deveria ser proposta no mesmo foro da competência criminal [2].

Fernando Fernandes, advogado

Os conflitos de entendimento do STF e do Legislativo continuam a ocorrer em diversos temas. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucional, de nº 2.797, contra a Lei 10.628/02, sendo Sepúlveda Pertence sorteado relator. O ministro Sepúlveda votou pela inconstitucionalidade da alteração da interpretação do STF que, no seu entender, seria como uma usurpação da competência do STF.

Eros Grau discorda e julga parcialmente procedente a ação, mantendo o foro após a função, e faz distinção de quando poderá ou não legislativo fazer alterações de lei em razão de posicionamento do STF:

“Há de ficar bem-marcado, de todo modo, o que afirmou LOEWENSTEIN: 0 Poder Legislativo pode exercer a faculdade de atuar como intérprete da Constituição, para discordar de decisão do Supremo Tribunal Federal exclusivamente quando não se tratar de hipóteses nas quais esta Corte tenha decidido pela inconstitucionalidade de uma lei, seja porque o Congresso não tinha absolutamente competência para promulgá-la, seja porque há contradição entre a lei e um preceito constitucional. Neste caso, sim, o jogo termina com o último lance do Tribunal; nossos braços então alcançam o céu.”

O ministro Gilmar Mendes votou pela improcedência total de ação do Ministério Público sobre prerrogativa além da ocupação do cargo, dando inúmeros exemplos de utilização política e de perseguição no uso de ações de improbidade. Ao fim, em 2005, o STF, por maioria, julga inconstitucional a prerrogativa de foro estabelecida do artigo 84 do CPP.

“Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente a ação, nos termos do voto do relator, para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acresceu os §§ 1° e 2° ao artigo 84 do Código de Processo Penal. Plenário, 15.09.2005.”

Ação Penal 937 e nova mudança de entendimento

Em 2018, o tema da prerrogativa é novamente modificado pelo Supremo. “O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas” acabou decidindo a corte na AP 937 QO/RJ.

O ministro Barroso justificou a mudança citando o ministro Celso afirmando que “mutação constitucional em sentido técnico, que é quando uma corte constitucional muda um entendimento consolidado, não porque o anterior fosse propriamente errado, mas porque a realidade fática mudou, ou porque a percepção social do Direito mudou, ou porque as consequências práticas de uma orientação jurisprudencial revelaram-se negativas”.

A AP 937 inaugurou uma nova aplicação do foro de prerrogativas em que, mesmo no exercício do mandato, as acusações de crimes comuns ocorridas antes da diplomação passaram a ser julgadas em primeira instância. A distorção é que deputados reeleitos passaram a ter casos declinados iniciados no exercício anterior.

Histórico recente

O Supremo terá que revisitar o tema do foro de prerrogativa. Se era raro o envolvimento de ex-presidente em processos criminais — e em 1964 foi necessário a edição da súmula inclusive para a proteção de ex-presidentes como Juscelino Kubitschek, como destacou no debate o ministro Carlos Velloso [3] —, nos últimos 10 anos tivemos dois ex-presidentes presos, Lula e Temer, e há relevante denúncia contra o ex-presidente Bolsonaro por crimes de abolição violenta do Estado de Direito Democrático (artigo 359-L do CP) e de golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal). Tais crimes que só puderam ser tentados em função do exercício do cargo.

O ex-juiz Sérgio Moro, declarado parcial pelo Habeas Corpus 164.493/PR, se utilizou do cargo para sequestrar, em um processo fraudulento, o atual presidente da República. Utilizou-se do processo para condenar Lula com consequências irreparáveis – mesmo com a anulação do processo. A franchising carioca da “lava jato” prendeu o ex-presidente Temer, que depois fora absolvido de todas as acusações em Brasília.

Como o critiquei no livro Geopolítica da Intervenção, a prisão de Delcidio do Amaral [4] e a ordem de impor uma tornozeleira em Aécio Neves[5] mostram que o STF, quando muda de jurisprudência, não torna o lugar mais seguro. Em especial porque o artigo 53 da Constituição veda prisão preventiva de deputado federal, que somente pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável.  As ilegalidades lavajatistas e a mudança jurisprudencial sobre a presunção de inocência levou à definição de um processo eleitoral.

A recente é a prisão do deputado Chiquinho Brazão pelo por suspeitas de ser mandante do assassinato de Marielle Franco trouxe novamente um ruído constitucional. O assassinato de Marielle precisa de resposta e consequência. Mas o precedente sem a cassação do deputado, quanto a um crime cometido anos antes de sua diplomação, seria de competência original do Júri. O foro por prerrogativas atrai a competência quando se trata de deputado. Mas para isso o STF não pode manter  a interpretação de 2018.

A jurisprudência tem, há muito, decidido que o foro de prerrogativa constituído pelo próprio texto constitucional atrai a competência para julgamento, exceto aqueles decorrentes de constituição por delegação nas Constituições estaduais (HC 70474-3/RS). Bem como, conforme a Súmula 45 do STF, prevalece a competência do Tribunal do Júri “sobre foro por prerrogativa de função estabelecida exclusivamente pela Constituição estadual”.

Considerações finais

É indiscutível que o processo histórico seria mais estável se não houvesse o Supremo alterado a jurisprudência centenária sobre o foro de prerrogativa. Lula e Temer não teriam se submetidos as ilegalidades que passaram e Bolsonaro, para ser julgado pela Suprema Corte, é necessário se estabilizar a competência em relação aos ex-presidentes e aos chefes das forças armadas. O mesmo em relação aos deputados.

Se a interpretação constitucional deve ser dinâmica, também deve ser estável. É o momento de o STF revisitar o tema, mantendo o foro de prerrogativas mesmo após o exercício do cargo, fixando-se a atração da competência com a diplomação. Voltar à interpretação originária e centenária. Não é caso mais do Supremo omitir-se dos processos referentes aos fatos ocorridos durante o exercício do mandato. Que se criem estruturas necessárias para que o tribunal cuide desses processos, com estabelecimento dos procedimentos no Regimento Interno.

 


[1] RCL 473 primeira, Dj 19/11/1964, RTJ 22/47.

[2] §1º. A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.   (Incluído pela Lei nº 10.628, de 24.12.2002)  (Vide Adin nº 2.797)

§2º. A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o.

[3] “Volto a repetir, Victor estava diante de fatos especiais e raciocinou da forma que Vossa Excelência mencionou longamente. Hoje, não temos essas mesmas circunstâncias. Não temos esses mesmos fatos. Felizmente, vivemos hoje uma democracia eficaz neste País, sob esse aspecto. Tribunais livres, decidindo com a maior liberdade; um Ministério Público que se aperfeiçoa, cada vez mais. De maneira que – apenas para dar resposta a essa indagação, a essa questão posta por Vossa Excelência – estamos diante de fatos”

[4] “Como se verá, demora-se para compreender no Supremo que o próprio STF seria vítima da Lava Jato. E o STF vai se omitindo dolosamanente também atento à sua popularidade. Em 24 de novembro de 2014, o STF cai em uma verdadeira esparrela. O Ministério Público Federal pede a prisão de um senador da República, Delcídio do Amaral.” Cf. FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da Intervenção: a verdadeira história da lava jato. São Paulo: Geração Editorial, 2020, p. 237.

[5] Conforme abordado: https://www.conjur.com.br/2022-mai-09/fernando-fernandes-imunidade-absoluta-parlamentar/

Autores

  • é pesquisador, advogado, doutor em Ciências Políticas (UFF), mestre em Criminologia e Direiro Penal (Ucam), presidente do Instituto Tristão Fernandes e diretor do IDD8 (Instituto de Defesa da Democracia 8 de Janeiro).

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