Opinião

Avanço legislativo na efetivação do princípio da concentração dos atos na matrícula imobiliária

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1 de abril de 2024, 15h20

Há muito o direito imobiliário brasileiro se apoia na ideia de que a publicidade registral é essencial para a produção de efeitos perante terceiros, fortalecendo a segurança jurídica dos negócios ao impedir que atos privados não registrados sejam opostos em face do terceiro adquirente de boa-fé.

Todavia, muitas situações sem ingresso no mundo registral não registradas poderiam afetar a segurança de um negócio jurídico, como as existentes no âmbito administrativo e processual. Em outras palavras, um adquirente poderia, depois da aquisição, sofrer uma surpresa desagradável: uma limitação administrativa ou, pior, a ineficácia do negócio perante o credor do alienante.

Nesse sentido, o princípio da concentração dos atos na matrícula estabelece que nenhum fato ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica do imóvel deva ficar fora da publicidade registral, sob pena de inexistir juridicamente para terceiros. A Lei nº 6.015/73, em sua redação originária, já trazia disposição que parecia permitir a averbação de “ocorrências” que pudessem afetar a propriedade:

Art. 247. As averbações abrangerão, além dos casos expressamente indicados no inciso III do artigo 168, as sub-rogações e outras ocorrências que por qualquer modo alterem a matrícula ou os registros, em relação aos imóveis e às pessoas que neles figurarem, inclusive a prorrogação do prazo da hipoteca.

Entretanto, como atos externos ao assento registral ainda poderiam ser opostos a terceiros, não se pode dizer que havia concentração dos atos na matrícula.

No próprio Código Civil de 2002, já se entendia que o registro é essencial para a produção de efeitos perante os terceiros. É o caso do artigo 521, que trata da venda de bem móvel com reserva de domínio, e de diversas disposições sobre direito empresarial, que protegem os terceiros em face dos atos não registrados na junta comercial (v. artigo 997, parágrafo único, artigo 1.057, parágrafo único, artigo 1.063, §3º, dentre outras).

Além disso, o Código já previa que o registro imobiliário produziria efeitos ainda que inválidos enquanto não promovido o cancelamento por meio de ação própria:

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

§ 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

§ 2 o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.

Isso significa dizer que um terceiro de boa-fé, ao adquirir um imóvel fundado em registro nulo, não seria afetado pela posterior anulação do registro. Porém, ainda assim, o terceiro poderia ser afetado por atos não registrados, como no caso em que o transmitente possui débito tributário inscrito em dívida ativa, nos termos do artigo 185 do Código Tributário Nacional:

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.

O STJ, em 2009, editou a súmula nº 375, dando um passo adiante no fortalecimento do princípio da concentração, uma vez que exige o registro da penhora do bem ou a prova de má-fé para que haja o reconhecimento da fraude à execução.

“O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.”

Ou seja, o registro gera presunção absoluta de conhecimento de terceiros, mas a ausência de registro não impede que o credor demonstrasse a má-fé do terceiro. Esse princípio foi consagrado com a promulgação da Lei nº 13.097/2015, que previa, em seu artigo 54, uma série de atos que só poderiam ser opostos em face de negócios jurídicos caso registrados na matrícula imobiliária:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;

III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

(redação originária).

Embora a lei tenha sido objeto de muitas discussões, é de percepção geral que ela não teve aderência no mercado, possivelmente pela falta de uma “cultura da segurança jurídica” com base na matrícula.

A Lei nº 14.382/2022, que dispõe sobre o sistema eletrônico dos registro públicos (Serp), trouxe ainda mais novidades, também caminhando para a concentração dos atos na matrícula, especialmente quando retocou o artigo 54 da Lei 13.097/2015, fazendo referência ao Código de Processo Civil de 2015, e não ao de 1973, e quando alterou o artigo 246 da Lei de Registros Públicos, que estabelece o seguinte:

Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do art. 167 desta Lei, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel.

É evidente que o legislador brasileiro tem buscado o aumento da segurança jurídica nas operações imobiliárias, dando prevalência às informações na matrícula para mitigar a assimetria de informações entre os negociantes. O princípio da concentração recebeu um incremento na sua efetividade quando publicada, recentemente, a Lei nº 14.825/2024, que incluiu o inciso V no artigo 54 da Lei nº 13.097/2015:

V – averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária.

Esse inciso trouxe a garantia de que, caso não ingresse no assento registral a informação sobre a constrição judicial de um bem, o negócio jurídico que leve à sua disposição, mesmo que depois da decisão constritiva, deve ser reputado válido. E, de outro lado, também trouxe uma sanção implícita para o credor que não providencia a averbação da constrição: a impossibilidade de opor o ato em face de terceiros.

Desse modo, o princípio da concentração dos atos na matrícula, antes consagrado pela Lei nº 13.097/2015, passa a valer no direito brasileiro com sentido e eficácia que se aproximam ao seu conceito doutrinário: de que nenhum fato ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica do imóvel possa dispensar o registro ou a averbação da respectiva matrícula, de modo que esta seja tão completa que dispense outras diligências. Isso significa dizer que, à exceção dos créditos tributários inscritos em dívida ativa, a lei brasileira avança para tornar a matrícula como o único documento necessário para a análise em due diligence imobiliária.

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