Averbação de sentença estrangeira de divórcio consensual
27 de setembro de 2023, 16h23
Estrangeiros casados e divorciados no exterior não averbarão o divórcio no Brasil. A prova desse divórcio emergirá de documento estrangeiro legalizado por consulado brasileiro — ou apostilado pela Convenção da Haia —, com tradução juramentada e registro no cartório de títulos e documentos, nos termos do artigo 129, 6º, da Lei nº 6.015/1973 e do Decreto Legislativo nº 148/2015 [1]. O divórcio também poderá ser comprovado — para fins de habilitação em casamento — por atestado de consulado estrangeiro no Brasil ou por testemunhas, como prescreve o artigo 68 da Lei nº 6.015/1973.
Diversamente, casamento de brasileiro no exterior deverá ser trasladado no Brasil, nos moldes do artigo 32 da Lei nº 6.015/1973, do artigo 1.544 do Código Civil e da Resolução nº 155/2012 do CNJ. Esse assento receberá a averbação do divórcio. Certidão do assento com averbação do divórcio realizado no exterior comprovará o estado familiar.
O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao liberar de homologação — pelo Superior Tribunal de Justiça — as sentenças estrangeiras de divórcio consensual:
"Art. 961. A decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação de sentença estrangeira ou a concessão do exequatur às cartas rogatórias, salvo disposição em sentido contrário de lei ou tratado.
§ 5º. A sentença estrangeira de divórcio consensual produz efeitos no Brasil, independentemente de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça."
O STJ, a partir da redação do CPC, passou a interpretar que a ausência de homologação incidiria no divórcio consensual simples — puro —, e não no divórcio consensual qualificado. Divórcio consensual puro trata somente da dissolução do matrimônio; divórcio consensual qualificado versa também sobre guarda de filhos, alimentos e/ou partilha de bens [2].
O Conselho Nacional de Justiça, ao regulamentar a averbação desse divórcio no registro civil das pessoas naturais, aparentemente teria sufragado a jurisprudência do STJ. O Provimento nº 53/2016 limitou as averbações — sem homologação — aos divórcios puros. Esse provimento foi revogado — em 2023 — pelo Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial do CNJ, que manteve a regra anterior:
"Art. 464. A averbação direta no assento de casamento da sentença estrangeira de divórcio consensual simples ou puro, bem como da decisão não judicial de divórcio, que pela lei brasileira tem natureza jurisdicional, deverá ser realizada perante o oficial de registro civil das pessoas naturais a partir de 18 de março de 2016.
§ 1º. A averbação direta de que trata o caput desse artigo independe de prévia homologação da sentença estrangeira pelo Superior Tribunal de Justiça e/ ou de prévia manifestação de qualquer outra autoridade judicial brasileira.
§ 2º. A averbação direta dispensa a assistência de advogado ou defensor público.
§ 3º. A averbação da sentença estrangeira de divórcio consensual, que, além da dissolução do matrimônio, envolva disposição sobre guarda de filhos, alimentos e/ou partilha de bens — aqui denominado divórcio consensual qualificado — dependerá de prévia homologação pelo Superior Tribunal de Justiça."
O entendimento cristalizado na norma administrativa do CNJ não se ateve a nuances jurídicas que demandariam maior reflexão.
Sentença estrangeira de divórcio consensual qualificado deve ser visualizada em capítulos. Dissolução do matrimônio, guarda de filhos, alimentos e partilha de bens constituem diferentes capítulos. Condicionar a averbação do capítulo do fim do casamento à homologação pelo STJ destoa do que estatui o CPC.
A sentença pode, por exemplo, determinar a dissolução do matrimônio e a partilha de bens localizados no exterior. O capítulo da dissolução do casamento seria averbado no registro civil — sem homologação pelo STJ —, e o capítulo da partilha de bens nem sequer exigiria homologação [3]. O registrador, por cautela, mencionaria que a partilha de bens não integraria o escopo da averbação [4].
O Enunciado nº 10 da 1ª Jornada de Direito Notarial e Registral, promovida pelo Conselho da Justiça Federal — em 2022 —, corrobora a crítica ao Código de Normas do CNJ:
"É possível a averbação, diretamente perante o Registro Civil de Pessoas Naturais, do divórcio consensual decretado no exterior, independentemente de intervenção judicial, cabendo ao interessado providenciar a homologação, pelo Superior Tribunal de Justiça, apenas dos demais capítulos da sentença estrangeira, tais como alimentos, partilha de bens e guarda (Artigo 961, §§ 2º e 5º, CPC/2015)."
A compreensão da sentença em capítulos constitui debate antigo, capitaneado por Cândido Dinamarco [5] e impulsionado pelo CPC atual.
O artigo 961, § 2º, do CPC, preceitua que a sentença estrangeira poderá ser homologada parcialmente; ou seja, o STJ pode homologar todos ou alguns dos capítulos da sentença estrangeira. Na vigência do CPC anterior – em que não havia regra expressa nesse sentido — Barbosa Moreira assim defendia: "Se a sentença estrangeira compõe de duas ou mais partes ou capítulos distintos, deve considerar-se cada qual em separado para fins de homologação (tot capita quot sententiae)" [6].
A 3ª Turma do STJ fixou entendimento de que capítulos autônomos da mesma decisão podem transitar em julgado em momentos distintos. Capítulo da sentença não impugnado por apelação seguiria o cumprimento definitivo; capítulo objeto de impugnação obedeceria ao cumprimento provisório. No precedente, evocou-se o conceito de sentença em capítulos como fundamento da coisa julgada progressiva [7].
Em relação aos divórcios no Brasil, a concepção de capítulos de sentença consolidou-se ao longo dos anos. Anteriormente à entrada em vigor do CPC de 2015, o Enunciado nº 602 da VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, preconizou:
"Transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição do mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento."
Mais recentemente, ganhou tração — na doutrina e na jurisprudência — a ideia de que o divórcio pode ser concedido liminarmente — inaudita altera parte — com expedição imediata de mandado de averbação no registro civil. Após a citação, a demanda poderá continuar com discussão dos demais capítulos que integrarão a sentença — guarda de filhos, alimentos e partilha de bens. Configura-se o divórcio liminar, calcado no direito potestativo de a parte obter a dissolução do vínculo matrimonial [8], como ilustram as seguintes ementas:
"Divórcio que constitui direito potestativo e incondicional, por depender somente da vontade daquele que não mais deseja permanecer casado, cabendo ao outro a simples aceitação da manifestação de vontade. Por se tratar de direito potestativo, não se vislumbra a possibilidade de a parte contrária impedir, modificar ou extinguir a pretensão autoral, motivo pelo qual deve ser admitida a decretação, in limine litis, do divórcio, ainda que a parte contrária não tenha sido previamente ouvida. Recurso conhecido e provido, na forma do artigo 932, II, do CPC/15, para reformar a decisão recorrida e conceder a tutela de evidência, com a decretação liminar do divórcio das partes e sua averbação no Registro Civil competente." (TJ-RJ – 0063248-32.2023.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARIANNA FUX – Julgamento: 16/08/2023 – 19º CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 25ª )
"Inconformismo contra decisão que indeferiu o pedido liminar de decretação de divórcio direto – Análise crítica acerca da divergência doutrinária e jurisprudencial em relação à matéria e morosidade excessiva de projeto de lei que trata do "divórcio impositivo" no âmbito extrajudicial – Possibilidade de decretação de divórcio em sede liminar – Direito potestativo – O não deferimento do pedido de decretação liminar do divórcio por puro preciosismo jurídico atinente ao enquadramento legal da medida no âmbito da legislação processual civil acaba por impor desmesurado e desnecessário sofrimento à jurisdicionada – Decisão reformada, sendo possível a decretação, em sede liminar, do divórcio das partes, devendo prosseguir a ação para efetivar a regular triangularização processual." (TJ-SP; Agravo de Instrumento 2182730-42.2023.8.26.0000; relator (a): José Carlos Ferreira Alves; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Lençóis Paulista – 3ª Vara Cumulativa; Data do Julgamento: 28/7/2023; data de registro: 28/7/2023)
Nesse sentido, o capítulo da dissolução do matrimônio mereceria ser julgado de forma antecipada, como explicita o Enunciado nº 18 do Instituto Brasileiro de Direito de Família:
"Nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas."
Discute-se no Congresso Nacional projetos de lei acerca do divórcio impositivo — unilateral —, que seria averbado diretamente no registro civil por requerimento unilateral de um dos cônjuges, ampliando-se as hipóteses atuais de divórcio extrajudicial [9].
A evolução legislativa — desde a Emenda Constitucional nº 9/1977 — evidencia a facilidade cada vez maior para obtenção do divórcio.
O artigo 961, § 5º, do CPC, trilha esse caminho, ao atribuir ao divórcio consensual estrangeiro efeitos jurídicos imediatos no Brasil; efeitos que, nas relações jurídicas entre os divorciados, independem de homologação judicial e de averbação no registro civil. A averbação agregaria publicidade, oponibilidade erga omnes e maior segurança jurídica, além de constituir meio de prova [10].
Em suma, sentença estrangeira de divórcio consensual independe de homologação. A jurisprudência do STJ interpretou que somente a dissolução do casamento está isenta de homologação. Sentença estrangeira — visualizada em capítulos — pode ser parcialmente homologada. Ao STJ cabe apenas o exame dos capítulos de guarda de filhos, alimentos e partilha de bens. No caso de homologação de divórcio consensual qualificado, o capítulo da extinção do casamento nem seria objeto de apreciação pelo STJ, por força do artigo 961, § 5º, do CPC. Assim, não há por que aguardar a homologação pelo STJ como requisito da averbação. Conclui-se que se conferiu ao artigo 464 do Código de Normas do CNJ redação incompatível com o artigo 961 do CPC, a jurisprudência e a doutrina.
[1] O Decreto Legislativo n. 148/2015, que aprovou a Convenção da Haia sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, possui status de lei ordinária. A Convenção da Apostila da Haia foi regulamentada, no âmbito do Poder Judiciário, pela Resolução n. 228/2016 do Conselho Nacional de Justiça. Informações sobre apostilamento e legalização de documentos: https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/portal-consular/legalizacao-de-documentos.
[2] STJ, SE 15.204/DE, decisão monocrática, rel. min. Francisco Falcão, j. 21.03.2016.
[3] Haveria obrigatoriedade de homologação pelo STJ se o capítulo da partilha do bem localizado no exterior fosse utilizado em processo judicial no Brasil ou demandasse efeitos materiais em território nacional.
[4] Defendem esse mesmo pensamento: GAGLIARDI, Andreia Ruzzante; SALAROLI, Marcelo; CAMARGO NETO, Mario de (Registro Civil das Pessoas Naturais. 4. ed. Indaiatuba: Foco, 2022. Capítulo 11.5.3). Maria Berenice Dias aponta que na averbação do divórcio deve constar se foi feita a partilha de bens, para fins de verificação futura de causa suspensiva de casamento (Manual de Direito das Famílias. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 569).
[5] Capítulos de Sentença. São Paulo: Malheiros, 2002.
[6] Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 68.
[7]REsp n. 2.026.926/MG, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023.
[8] Comungam desse entendimento: TARTUCE, Fernanda. Processo Civil no Direito de Família: teoria e prática. 5. ed. São Paulo: Forense, 2020. p. 359. DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 574-575. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: famílias. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 414-417. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. Cap. 4.2.2. Há doutrinadores que evocam o requisito do trânsito em julgado para que a averbação do divórcio ingresse no assento de casamento (GAGLIARDI, Andreia Ruzzante; SALAROLI, Marcelo; CAMARGO NETO, Mario de. Op. cit. Cap. 11.5.2).
[9] PL 8347/2017, PL 9041/2017, PL 3457/2019, PL 957/2021 e PL 2523/2022.
[10] Autores asseveram a eficácia meramente publicitária erga omnes da averbação do divórcio: "De forma desarrazoada a lei tenta emprestar efeito ao divórcio somente a partir da averbação no registro civil das pessoas naturais (LRP 29, § 1º, a), olvidando-se de que o registro tem efeito meramente publicitário". (DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 569). "A interpretação de que tais atos dependem do registro para que produzam todos os seus efeitos é extraída do texto de lei, todavia, pode ser questionada, sendo defensável que já produzem efeitos entre as partes mesmo antes do registro, o qual serviria como meio de prova, tornado públicos e oponíveis erga omnes os atos ou fato registrados". (GAGLIARDI, Andreia Ruzzante; SALAROLI, Marcelo; CAMARGO NETO, Mario de. Op. cit. Cap. 2). Carlos Ferreira de Almeida conceitua registro público com perfeito encaixe no direito brasileiro: "Registo público é o assento efectuado por um oficial público e constante de livros públicos, do livre conhecimento, directo ou indirecto, por todos os interessados, no qual se atestam factos jurídicos conformes com a lei e respeitantes a uma pessoa ou uma coisa, factos entre si conectados pela referência a um assento considerado principal, de modo a assegurar o conhecimento por terceiros da respectiva situação jurídica, e do qual a lei faz derivar, como efeitos mínimos, a presunção do seu conhecimento e a capacidade probatória" (Publicidade e Teoria dos Registos. Coimbra: Almedina, 1966. p. 97).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!