Opinião

A política de ação afirmativa no CNJ diante da dominação masculina nos tribunais

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25 de setembro de 2023, 7h06

O CNJ está julgando o Ato Normativo nº 0005605-48.2023.2.00.0000, de relatoria da conselheira Salise Monteiro Sanchotene. Definirá a implementação de política de ação afirmativa temporária para o acesso das juízas aos cargos de magistratura no segundo grau dos tribunais brasileiros, tendo em vista a sub-representação feminina no cargo de desembargador até se alcançar a paridade.

O Brasil possui aproximadamente 25% juízas com assento nos tribunais de 2º grau. Nos tribunais do Amapá e Rondônia nenhuma mulher é desembargadora. O Tribunal de Justiça do Pará foge do padrão. Possui 57% de magistradas.

Segundo o Fórum Mundial Econômico, o Brasil está em 93º lugar em termos de igualdade de gênero.

O CNJ, em 2018, instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário e na próxima terça-feira, dia 26, decidirá se vai instituir a política de ação afirmativa para ampliação de acesso de juízas aos cargos de 2º grau nos tribunais, em face da assimetria de gênero na ocupação destes cargos no Brasil.

Segundo o próprio CNJ a representação feminina na magistratura brasileira é cerca de 38%. No entanto, o percentual cai pela metade quando se verifica a ascensão na carreira e se agrava quando se trata do topo do poder judiciário: hoje temos duas Ministras no STF, podendo ser reduzido para apenas uma. Nos tribunais superiores (STJ, TST, TSM, TSE) as mulheres representam 19,6%.

O julgamento foi iniciado no dia 19/09/2023 e adiado para próxima semana, em razão do pedido de vista do conselheiro Richard Pae Kim. A decisão parcial foi de três votos a favor da implementação da regra de gênero para promoção de juízes: da relatora, do conselheiro Mário Goulart Maia e do ministro Vieira de Mello Filho. Durante a sessão a ministra presidente, Rosa Weber, lembrou que por no mínimo 12 anos não haverá uma mulher na presidência do STF.

O argumento para barrar a regra da paridade, defendido pelo Conselho de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil (Consepre), é de que haveria necessidade de lei formal, estando fora do âmbito normativo do CNJ e um silêncio eloquente da Constituição sobre o modelo de indicações para o poder judiciário. O CNJ não poderia inovar no plano normativo. O advogado, durante a sustentação oral, enfatizou que trataria de questões exclusivamente técnicas, formais.

Verifica-se que caso enfrentado o mérito, não teria como rebater os argumentos a favor da ação afirmativa em questão.

A relatora, em seu voto, enfrentou tais argumentos. No seu voto, a conselheira iniciou pelos antecedentes da propositura do ato, analisando a questão da participação feminina nos tribunais e depois passou para os fundamentos jurídicos, na seguinte ordem: tratou da imperiosidade das ações afirmativas propostas, da atribuição normativa do CNJ para disciplinar a matéria, da possibilidade de se tratar da matéria no âmbito da Resolução n.º 106 e da possibilidade de a ação afirmativa abranger também critérios de merecimento e antiguidade. Finalizou seu voto tratando da ação afirmativa propriamente dita.

Destacou que a espinha dorsal do seu voto foi o parecer pro bono do professor Daniel Sarmento Leite requerido pelo CNJ. Constatou que além da baixa representatividade feminina nos tribunais, a mera passagem do tempo não conseguiu transformar a predominância masculina. A discrepância é maior quando se está diante da interseccionalidade de sexo e raça.

Fez um apanhado dos diplomas internacionais sobre a necessidade de eliminar de todas as formas de discriminação contra a mulher e promover a igualdade entre homens e mulheres, inclusive na ocupação de cargos públicos.

Destacou que se figura a discriminação direta no passado e indireta no presente, sendo constitucionalmente necessária a adoção de medidas em prol da igualdade substantiva. A legitimidade democrática do judiciário se dá também por ele ser entendido como um poder representativo. O pluralismo na diversidade de vozes e a representatividade igualitária torna a justiça mais responsiva aos anseios da sociedade.

A atribuição normativa do CNJ para disciplinar a matéria não é novidade. A inserção do corte racial em concurso público e a reserva mínima de 3% vagas para indígenas para concursos da magistratura e 20% para população negra, incorporando o elemento racial ao processo seletivo são exemplos da atuação legítima e eficaz do CNJ. A adoção de políticas afirmativas de gênero não desnatura os critérios de merecimento e antiguidade, apenas os complementa.

A Constituição conferiu ao CNJ o poder normativo para expedir atos regulamentares no exercício da sua competência. O CNJ tem o poder de expedir normas no âmbito da atuação e organização do judiciário que concretizem o princípio constitucional da igualdade de gênero, não dependendo de lei formal.

A conselheira concluiu seu voto a favor da implementação da ação afirmativa para o acesso das mulheres aos tribunais de 2º grau, diante da sub-representação feminina.

Até a primeira metade do século 19, a voz de poucas mulheres ecoava para além dos ambientes caseiros. Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) foi uma delas. Na segunda metade do mesmo século, a gaúcha Luciana de Abreu (1847-1880) defendeu o acesso das mulheres à educação superior. E tantas outras heroínas brasileiras que abriram a possibilidade de a mulher formar-se e tornar-se juíza.

Em 1879 o Brasil teve instituições de ensino superior para as mulheres. Ainda assim o acesso era difícil, principalmente para as mulheres de classe inferior.

A primeira brasileira a se formar em direito foi Myrthes Gomes de Campos (1875-1965), em 1889. A primeira juíza no Brasil foi a cearense Auri Moura Costa (1911-1991). Ingressou na magistratura em 1939. Em termos históricos, recente.

A criação e sistematização do sistema de justiça foi inteiramente integrada por homens. A participação da mulher no sistema de justiça era pela imagem alegórica da justiça ou em processos judiciais, como vítima ou acusada. A mulher não administrava a justiça, nem ensinava as leis, tampouco advogava. Não faz muito tempo, a ideia de que as mulheres exercessem as profissões jurídicas era tida como absurda, surreal.

Os dados quantitativos e qualitativos, documentos históricos, jurisprudência, legislação, coleções de jornais, revistas, periódicos, obras em série e a necessidade da iniciativa do CNJ abordada mostram a ironia da alegoria da justiça ser feminina, já que ela é masculina.

Espera-se que o CNJ decida pela implementação da regra de paridade nos tribunais de 2º grau. Assim teremos esperança de ter um poder judiciário oxigenado, plural e igualitário, preparado para atender às demandas da sociedade brasileira que conta com 51% de mulheres.

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