Crime de atentado a democracia: uma análise jurídica
21 de setembro de 2023, 8h00
O Código Penal, no Título XII da Parte Especial, trata "Dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito". No capítulo II desse título estão os "Crimes contra as Instituições Democráticas", dentro do qual se insere o artigo 359, L, que tipifica o delito de atentado violento ao Estado democrático de Direito. De acordo com mencionado dispositivo, constitui infração penal punível com reclusão de 4 a 8 anos, mais a pena correspondente à violência, "tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais".
O crime, originário da junção dos artigos 17 e 18 da revogada Lei de Segurança Nacional, consiste em tentar abolir o Estado Democrático de Direito de duas maneiras: (a) impedindo (totalmente) o exercício dos poderes constitucionais; (b) ou restringindo (parcialmente) tal exercício. Sua realização exige que o agente efetivamente consiga impedir ou restringir o exercício de pelo menos um dos poderes constitucionais. Parece se tratar de um delito de atentado, quando a lei fala em "tentar abolir", no entanto, a leitura atenta do tipo penal revela ser necessária a efetiva obstrução ou restrição do exercício dos poderes constitucionais. O tipo protege bem jurídico fundamental para a preservação da democracia.
Em um Estado de Direito, todos se submetem às mesmas regras jurídicas, abstratas e impessoais, substituindo-se a vontade unipessoal do líder político, espiritual, príncipe ou ditador, pela vontade objetiva e impessoal da lei. O Estado democrático de Direito vai além. Consiste também na obrigação de intervenção efetiva a fim de reduzir as desigualdades sociais. O Estado de Direito atende às aspirações dos direitos humanos de primeira geração e protege o indivíduo contra o arbítrio. O Estado Democrático de Direito tem exatamente o mesmo compromisso, acrescido da obrigação de prestações positivas para garantir saúde, educação, dentre outros e aplacar o abismo social que separa a miséria da opulência. É o Estado atuante, que deixa de ser um espectador inerte das distorções provocadas pelo sistema capitalista, mantendo, no entanto, seus princípios básicos, como respeito à propriedade privada, livre iniciativa, liberdade econômica, liberdade de expressão e pluralismo político. É um Estado de Direito qualificado pela busca da justiça social.
Um dos seus fundamentos básicos reside no princípio da reserva legal (CF, artigo 5º, XXXIX). Somente a lei pode definir crimes e cominar penas, sendo necessário descrever o fato que se entende criminoso com todos os seus elementos e circunstâncias, de modo que somente seja considerado crime a conduta que corresponder integralmente àquela descrição. Tal requisito denomina-se taxatividade, sem a qual o Estado não pode punir o indivíduo.
É precisamente neste ponto, para garantir a segurança jurídica, que entra a dogmática do Direito Penal. Trata-se do estudo sistemático e metodológico das normas penais, com o fim de fixar seu exato alcance e real significado. O penalista espanhol Gimbernat Ordeig resumiu com precisão: "A dogmática jurídico-penal, ao assinalar limites e definir conceitos, faz possível uma aplicação segura e calculável do Direito Penal, retirando-lhe da irracionalidade, da arbitrariedade e da improvisação. Quanto mais pobre seja o desenvolvimento de uma dogmática, tanto mais previsíveis serão as decisões dos tribunais…" [1].
A ciência jurídica fornece parâmetros técnicos e objetivos para que situações assemelhadas sejam tratadas de modo semelhante, sem a interferência de fatores externos, sejam eles sociais, políticos ou emocionais. A dogmática se submete a um método técnico-jurídico, dedutivo, lógico e abstrato. Até que se atingisse a fase científica do Direito Penal, houve paulatina evolução da humanidade. Inicialmente, havia o poder absoluto do líder tribal ou pajé com suas superstições e crendices. Mais adiante, surgiu o Talião (de talio, de talis, retaliar), retribuição do mal pelo mal ("fractura pro fractura, oculum por oculo, dentem pro dente" — Levítico, XXIV: 19 e 20 e Deuteronômio 19:21).
Ultrapassada a fase pré-penal [2], seguiu-se na Baixa Idade Média, o sistema das ordálias, com suas provas irracionais, vigorando até 1215 , quando abolidas pelo Concílio de Latrão. Havia também o sistema da prova privilegiada, que considerava como plena, meros indícios, no caso de crimes mais graves [3]. Com o fim da Idade Média (1453), veio o Absolutismo (séculos 15 ao 18), no qual o monarca era fonte suprema de poder, com apoio de filósofos como Jean Bodin e Thomas Hobbes. Símbolo dessa época foi Luís 14, conhecido como Rei Sol, cujo reinado se resume na frase: "l´état c´est moi" (o Estado sou eu).
Com o Iluminismo (final do século 18), surgiu um movimento de contestação ao arbítrio com filósofos como Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), La Metrie (1709-1751), Diderot (1713-1784), D'Alembert (1717-1783), Helvetius (1715-1771), D'Holbach (1723-1789) e Rousseau (1712- 1778). A obra de Rousseau, Teoria do Contrato Social (1762) e de Cesare Bonnessana (Beccaria), Dos Delitos e das Penas (1764), tiveram grande influência na Revolução Francesa de 1789, a qual, contou ainda com a maior crise agrária do século, agravando a fome e a revolta da população contra a nobreza e o rei Luís 16.
Com a Revolução Industrial, a nova classe de poder, a burguesia ascendente busca segurança jurídica, ideia que dominará todo o século 19. Nesse novo ambiente político, Feuerbach redescobre um documento de 1215, imposto pela nobreza britânica ao rei John Lackland (João Sem Terra), denominado Magna Charta Libertatum, cujo artigo 39 estampava um princípio que mudaria os rumos do direito penal: "nullum crimen nulla poena sine praevia lege". Somente a lei, de forma estrita e taxativa, pode descrever crimes e cominar penas. Estava aberto o caminho para o desenvolvimento científico da ciência criminal.
Com isso, surgem as escolas penais numa fase de ebulição científica e fortalecimento das garantias individuais. A evolução da democracia, tal como a compreendemos nos dias de hoje, é uma jornada histórica complexa que atravessou séculos e foi marcada por transformações significativas no sistema jurídico e na estrutura de governo. No Brasil, nossa CF superou o liberalismo radical do laissez faire, laissez passer e impôs ao Estado deveres de natureza social (CF, artigo 3º). Esse foi o compromisso assumido pela Carta de 1988.
Daí decorre: (a) ser necessário proteger o Estado democrático de Direito contra incursões que visem à sua eliminação; (b) nessa defesa, empregar os instrumentos democráticos previstos em lei. Nesse ponto entram a dogmática e a ciência jurídica, com seus princípios e métodos, orientando o exercício da pretensão punitiva do Estado.
O artigo 359, L, do CP, tem como bem jurídico tutelado a democracia. Cumprindo sua função de taxatividade e a fim de evitar excessivo alargamento de seu alcance punitivo, o tipo penal em questão descreveu as duas formas pelas quais se atenta contra o Estado Democrático de Direito: impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Deste modo, de acordo com a descrição típica do artigo 359, L, do CP, haverá tentativa de abolição do Estado democrático de Direito quando o agente praticar conduta capaz de impedir ou ao menos restringir o funcionamento dos poderes constitucionais.
Não basta vontade ou intenção de impedir ou restringir tal funcionamento, sendo necessário aferir a eficácia dos meios empregados, sob pena de configuração de crime impossível. O artigo 17 do CP considera ser crime impossível, quando a tentativa for impossível pela ineficácia absoluta do meio ou impropriedade absoluta do objeto. É a chamada tentativa inidônea, inadequada ou quase-crime.
É imprescindível que a ação tenha efetiva capacidade de impedir ou restringir de fato, o exercício dos poderes constitucionais. Só a intenção não basta. Quando o agente imagina, por erro, estar praticando um crime, mas na verdade não chega a colocar em risco o bem jurídico tutelado, surge a figura do delito putativo por erro de tipo e não existe crime. Quem atira num cadáver pensando estar matando pessoa viva, quer matar, mas não comete crime algum, face à impropriedade absoluta do objeto material.
Na sua mente existe um crime sendo cometido, mas na realidade o bem jurídico não sofreu risco algum. Invadir edifícios vazios impede ou restringe o exercício dos poderes constitucionais apenas no local invadido, mas não os inviabiliza ou restringe, já que podem continuar sendo desempenhados em lugar diverso. Deve-se considerar também se a desocupação se deu no mesmo e se havia algum tipo de atividade pública sendo exercida naquele momento.
No Direito Penal, enquanto a conduta estiver aprisionada no claustro psíquico da mente humana, ela ainda residirá na fase da cogitação, a qual não é punida pela nossa legislação (cogitationis poena nemo patitur). A segunda etapa do percurso criminoso (iter criminis) é a preparação, quando o agente realiza atos antecedentes necessários ao início da execução. Nesta fase, também ainda não existe crime. A terceira fase é a execução, quando o crime começa a existir. Nesta, o sujeito inicia um efetivo ataque ao bem jurídico tutelado.
No caso do artigo 359, l, do CP, ele terá de realizar atos que efetivamente tenham probabilidade de impedir ou restringir o exercício dos poderes. A ação de impedir ou restringir o funcionamento de um poder pressupõe o emprego de armamento pesado, incluindo armas de uso restrito e uso proibido, organização paramilitar, com estratégia de guerra ou guerrilha. O Exército Brasileiro é sem paralelo a maior força militar da América Latina, sem contar as polícias militares, que constituem sua reserva, além da Polícia Federal e as polícias civis. Não é qualquer movimento que inviabiliza o exercício das funções constitucionais.
É precisamente isto que necessita ser avaliado de acordo com as provas disponíveis, com a necessária individualização das responsabilidades, como determina a ordem constitucional do Estado democrático de Direito (CF, artigo 5º, XLVI). Ainda que os fatos tenham sido cometidos por influência de multidão, é necessário apontar o que cada indivíduo acusado contribuiu causalmente para o desfecho delituoso.
No caso da tragédia do dia 8 de janeiro, mensagens trocadas entre os líderes do movimento indicam inequívoca intenção de derrubar o governo legitimamente eleito. Algumas delas impressionam pelo nível de agressividade e desrespeito. Pretendiam comprovadamente atentar contra o Estado Democrático de Direito. Não basta, no entanto, a intenção. Assim, resta saber quais deles e se algum deles chegou efetivamente a impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Estão configurados delitos de extrema gravidade como o do artigo 288-A do CP (integrar grupo ou milícia particular) ou artigo 288, parágrafo único (associação criminosa armada). Há outros delitos disponíveis como dano qualificado, com pena de até três anos, nos termos do artigo 163, parágrafo único, III. Na somatória, os delinquentes sofrerão merecida reprimenda, nos termos da lei. Há também outros que estavam na manifestação, mas não sabiam das intenções nefastas dos delinquentes que lideraram as reprováveis ações de baderna, desordem e anarquia generalizada. Esses deverão ser punidos de acordo com sua culpabilidade.
Como ensinava Ulpiano, o direito deve dar a cada um o que lhe pertence. A cada responsável, que se atribua o crime que merece, nem mais, nem menos. A imprensa, por vezes, nos casos de maior repercussão, acaba por influir decisivamente, e quase sempre negativamente, no ânimo do julgador. Como observa Carnelutti, "Por isso, antes de tudo, a técnica penal recorre à multiplicidade dos tipos e disponibiliza ao juiz uma espécie de mostruário, cada vez mais completo, para que ele tenha condições de encontrar um tipo penal mais assemelhado à concretização do fato" [4]. É disso que cuida este artigo.
[1] Apud Claus Roxin, Derecho Penal, parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña et alii. Madrid: Civitas, 1997 e 199, t.1, p. 207
[2] Gustav Radbruch. Historia de la criminalidade. Barcelona: Bosch, 1995, p. 22
[3] Antonio Magalhães Gomes Filho. Direito à prova no processo penal. SP: Revista dos Tribunais, 1997, p. 22.
[4] Francesco Carnelutti. As Misérias do Processo Penal. Campinas: Editora Servanda. 2012, p. 74
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