Opinião

Autoridades não solicitam e não requisitam relatórios de inteligência financeira

Autores

  • Carlos Renato Xavier de Resende

    é agente de Polícia Federal especialista em Direito Público coordenador da Rede Nacional de Laboratórios de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (Rede-Lab) professor da Academia Nacional de Polícia (ANP) e instrutor do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD).

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  • Márcio Niederauer Nunes da Silva

    é delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul especialista em Ciências Penais e em Direito Público coordenador do Laboratório de Tecnologia Contra Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (PC-RS) e professor da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (Acadepol-RS).

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  • Thaianne Barbosa de Moraes Cavalcante

    é delegada de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro vice-presidente da Fundação de Apoio ao Ensino e Pesquisa da Polícia Civil (Faepol) mestre em Direito e professora de Direito Constitucional e da Academia Estadual de Polícia Sylvio Terra (Acadepol-RJ).

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21 de outubro de 2023, 6h05

O objetivo deste artigo é contribuir para o debate proveitoso sobre a produção pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) dos RIFs (relatórios de inteligência financeira) por intercâmbio de informações com as autoridades competentes da persecução penal. Especialmente, sobre a utilização de expressões que não são sinônimas de RIF de intercâmbio, mas como tal vem sendo utilizadas, erroneamente. São exemplos: RIF a pedido, solicitação de RIF, requisição de RIF, entre outros.

Essas expressões são na verdade muito inadequadas, pois não apresentam acertadamente a realidade dos fatos e o fundamento correto da produção do RIF de intercâmbio. Apesar da inadequação, infelizmente, tornaram-se comuns e são utilizadas com certa frequência por autoridades policiais, membros do Ministério Público, juízes, advogados e demais operadores do direito.

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Como exemplo, recentemente, repercutiu entre os operadores do direito a decisão da 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que declarou a ilicitude dos relatórios de inteligência financeira solicitados diretamente pela autoridade policial ao Coaf (RHC Nº 147707-PA).

Em apertada síntese, por maioria de seus ministros, a Turma do STJ julgou que a autoridade policial solicitou diretamente ao Coaf o envio dos relatórios de inteligência financeira, sem a existência de autorização judicial, situação, portanto, diversa da análise pelo STF no RE nº 1.055.941/SP.

Como se verá adiante, tecnicamente, as autoridades competentes não solicitam ou requisitam ao Coaf a produção de RIF.

Sistema de prevenção à lavagem de dinheiro
O Brasil, como resultado de compromissos internacionais assumidos e orientado pelos padrões internacionais recomendados pelo Grupo de Ação Financeira (Gafi), promulgou a Lei nº 9.613 em 3 de março de 1998 que, entre outras providências, criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e estabeleceu o sistema brasileiro de prevenção à lavagem de dinheiro.

O sistema contempla: a definição dos setores econômicos cujas atividades são mais suscetíveis às práticas de Lavagem de Dinheiro (artigo 9°); os deveres de vigilância e de comunicação de operações suspeitas de serem lavagem de dinheiro (artigos 10 e 11); e a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) do Brasil, como órgão central desse sistema (artigo14).

Pessoas obrigadas
As pessoas que exercem as atividades econômicas listadas no artigo 9º estão sujeitas às obrigações gerais de vigilância e de comunicação para prevenção à Lavagem de Dinheiro, conforme estabelecem os artigos 10 e 11 da Lei nº 9.613/98. Por isso, pessoas obrigadas.

Em síntese, por possuírem expertise e conhecimento aprofundado sobre seus clientes e os diversos tipos de operações que ocorrem nas suas respectivas áreas de atuação, as pessoas obrigadas têm o dever legal de comunicar ao Coaf operações suspeitas de serem sérios indícios do crime lavagem de dinheiro ou com ele relacionar-se.

Conselho de controle de atividades financeiras
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras tem como atribuição principal receber as ocorrências suspeitas de serem lavagem de dinheiro, examiná-las em cotejo com outras informações e identificar se as ocorrências suspeitas possuem fundados indícios de Lavagem de Dinheiro ou de outro ilícito. É o que se extrai do artigo 14 c/c o artigo 15.

Assim, quando o Coaf conclui existirem os fundados indícios da lavagem de dinheiro ou de outro ilícito, por obrigação legal (artigo 15), ele deve comunicar às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis. Essa comunicação leva o nome de Relatório de Inteligência Financeira (RIF).

Relatório de Inteligência Financeira (RIF): espécies e produção
O Coaf produz três espécies de RIF, a saber: RIF de ofício ou espontâneo, RIF de intercâmbio ou de cooperação e RIF da Rede Egmont. Para fins deste artigo, serão apresentados os dois primeiros.

RIF de ofício ou espontâneo
As pessoas obrigadas enviam para o Coaf as comunicações de operações suspeitas de prática do crime lavagem de dinheiro. Recebidas as informações, o Coaf tem o dever legal de examiná-las em cotejo com outros elementos de informação em busca de identificar se existem os fundados indícios da prática de lavagem de dinheiro ou de outro ilícito.

As comunicações enviadas pelas pessoas obrigadas passam pelos critérios e métricas de análise do Coaf, sendo que todas elas são armazenadas (diferidas) em seu banco de dados. Ao final desse processo, apenas as comunicações para as quais o Coaf identificar fundados indícios de lavagem de dinheiro ou de outro ilícito comporão os relatórios de inteligência financeira.

É, portanto, denominado RIF de ofício porque é produzido pelo Coaf por imperativo legal sem a necessidade de autorização ou manifestação de outro órgão. Também é conhecido como RIF espontâneo, mas, neste caso, do ponto de vista da autoridade competente que o recebe espontaneamente, sem necessidade de qualquer intercâmbio de comunicação com o Coaf.

RIF de intercâmbio ou de cooperação
Embora a Recomendação 31 do Gafi oriente que durante as investigações de lavagem de dinheiro, crimes antecedentes e financiamento do terrorismo, as autoridades competentes deveriam poder solicitar quaisquer informações relevantes à UIF (Coaf), e talvez venha daqui a confusão, o Brasil não adotou essa recomendação na sua completude, fazendo-o em conformidade com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico.

No RIF de intercâmbio, a autoridade competente, a exemplo do Delegado de Polícia, já tendo instaurado o procedimento apropriado e no âmbito deste, identifica existirem fundados indícios da prática de lavagem de dinheiro. A partir disso, comunica esses indícios ao Coaf, exclusivamente, pelo Sistema Eletrônico de Intercâmbio do Coaf (SEI-C), sistema seguro e totalmente auditável. Além da comunicação com os indícios da lavagem de dinheiro, a autoridade policial envia pelo SEI-C a cópia da portaria de instauração do procedimento ou documento equivalente, por exemplo, auto de prisão em flagrante.

Por sua vez, o Coaf recebe a comunicação da autoridade competente e passa a verificar, exclusivamente na sua base de dados, se existem comunicações recebidas das pessoas obrigadas com operações suspeitas de serem lavagem de dinheiro envolvendo as pessoas informadas pela autoridade comunicante. Significa dizer que o Coaf não deve consultar as pessoas obrigadas sobre a existência de possíveis operações suspeitas envolvendo as pessoas informadas pela autoridade comunicante, o que configuraria fishing expedition, ou seja, uma busca especulativa e ilegal.

Dessa forma, caso o Coaf não possua em sua base de dados comunicações com operações suspeitas envolvendo as pessoas comunicadas, ele não produz o RIF de Intercâmbio.

Noutro giro, caso possua, o Coaf passa a analisar a comunicação e o(s) documento(s) enviado(s) pela autoridade competente. Nas palavras do Coaf:

"Em seguida, o Coaf verifica se o procedimento de investigação informado pela autoridade é válido e se foi descrito o modus operandi criminoso investigado […]. Essas informações recebidas, quando confrontadas com o conjunto de informações já possuídas pelo Coaf, podem se revelar significativas para identificação de fundados indícios da prática de crime de lavagem de dinheiro e de outros ilícitos."

Dessarte, o Coaf analisa a comunicação e caso identifique que ela não é clara o suficiente, não descreve adequadamente a relação do fato investigado com a lavagem de dinheiro ou não apresenta os necessários fundados indícios, o RIF não é produzido.

Por fim, o Coaf só produzirá o RIF de intercâmbio se as condições anteriores estiverem adequadamente preenchidas, ficando todo o procedimento de intercâmbio registrado no Sistema Eletrônico de Intercâmbio do Coaf, salvaguarda de que todo o intercâmbio é feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo e certificação do destinatário, permitindo o estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios e sujeitos a posterior controle jurisdicional. Portanto, em total conformidade com a Tese de Repercussão Geral fixada pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 1.055.941/SP.

1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF […] com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB referido no item anterior deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

Assim, não se trata de pedido, solicitação ou requisição da autoridade competente para que o Coaf produza o RIF. Em verdade, o Coaf produz o relatório com base nas informações já recebidas das pessoas obrigadas, assim como o faz nos chamados RIFs de Ofício. Contudo, nos de intercâmbio, o Coaf é alertado sobre os fundados indícios por autoridade competente da persecução penal no âmbito de procedimento formalmente instaurado.

Não faz sentido, portanto, dar tratamento distinto ao RIF de Ofício frente ao de Intercâmbio. Ambos estão amparados na legislação nacional e independem de ordem judicial para serem recebidos e utilizados na persecução penal.

Tratamento dado ao RIF pelo direito brasileiro
O fundamento legal para a produção do RIF de intercâmbio está assentado no caput e §2º do artigo 14, c/c artigo 15, ambos da Lei nº 9.613/98. Destaca-se o §2º do artigo 14.

§2º O Coaf deverá, ainda, coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores.

No plano jurisprudencial, a já citada Tese de Repercussão Geral não estabeleceu tratamento discriminante em relação à espécie de RIF, e não faria sentido fazê-lo.

Assim, não se sustenta o argumento de que o RIF poderia implicar indevida quebra do sigilo bancário. Em primeiro lugar, nem todo relatório conterá informações bancárias. Em segundo lugar, quando disponíveis dados de ordem bancária, trata-se de um recorte relacionado à comunicação de atividades suspeitas identificadas pelo setor obrigado, ou seja, a indicação de que determinadas operações apresentaram indícios de possível lavagem de dinheiro.

Ademais, o envio de informações relativas a transações bancárias relacionadas à prática de infração penal ao Coaf e o uso pelas autoridades responsáveis pela persecução penal obedece também a ditame da Lei Complementar nº 105/2001. Não há, portanto, qualquer ilegalidade no uso dessas informações quando trazidas no bojo do RIF.

Entrave terminológico
O debate jurídico encontra um entrave anterior à própria concepção acerca do alcance e aplicabilidade do RIF perante as garantias constitucionais: o entrave terminológico.

Percebe-se que a dificuldade conceitual leva a distorções jurídicas. É o caso que se verifica nos julgados que se debruçam sobre o fluxo e compartilhamento dos RIFs.

Seja de ofício ou de intercâmbio, o RIF serve ao mesmo propósito e deve circular com o mesmo sigilo. O monitoramento e o combate a operações fraudulentas devem encontrar densificação perante a comunidade jurídica. Não o seu enfraquecimento através de construções equivocadas que atribuem ao RIF de intercâmbio um viés que nunca lhe pertenceu: o de uma requisição (ordem) para que o Coaf confeccione o Relatório de Inteligência Financeira no exclusivo interesse do requisitante.

Assim, é necessário o conhecimento dos institutos envolvidos, das terminologias adequadas e da sistemática de sua circulação, para que não haja espaço — em algum momento futuro e não muito distante — para discursos que muito mais confundem do que enobrecem o debate jurídico.

Conclusão
Frente às dificuldades em combater o crime de lavagem de dinheiro e toda a sorte de crimes relacionados, os standards internacionais fomentam que os países implementem medidas eficazes para prevenir e reprimir a prática desse crime. Nesse norte, o Brasil promulgou a Lei 9.613/98 e implementou o sistema de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo, sistema coordenado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o qual integra e fornece suporte da mais alta importância aos trabalhos dos agentes regulados, dos órgãos reguladores e das autoridades competentes para a persecução desses crimes.

Nessa linha, os relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Coaf, sejam de ofício ou de intercâmbio, são instrumentos legais e de grande relevância para que o Estado, por suas autoridades competentes, combata a lavagem de dinheiro e os crimes relacionados.

Não obstante, a utilização apropriada desse importantíssimo instrumento perpassa por utilizar a nomenclatura que o identifique corretamente e evite interpretações equivocadas que possam desvirtuar sua origem, produção e finalidade. Como demonstrado, não há se falar em RIF a pedido, solicitação de RIF, requisição de RIF etc., expressões inadequadas que levam à interpretação errônea de que as autoridades competentes solicitam ou requisitam informações financeiras de pessoas físicas e jurídicas ao Coaf à margem do controle jurisdicional e desprovidas de amparo legal, o que não acontece.

Aliás, sobre isso já decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE nº 1.055.941/SP, o que nos dá a garantia de que o procedimento adotado pelo Coaf e autoridades competentes para a produção de RIF de intercâmbio está em conformidade com os princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.

Ante o exposto, tem-se que as expressões citadas e outras similares são tecnicamente inadequadas e podem levar a grave erro de interpretação. Melhor seria padronizar sua nomenclatura como RIF de intercâmbio ou de cooperação com autoridades competentes.

 

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Referências
BRASIL. Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), e dá outras providências. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm > Acesso em: 09 out. 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001. Dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp105.htm > Acesso em: 09 out. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RE 1055941/SP. Tribunal Pleno. Relator: ministro Dias Toffoli (presidente). Disponível em < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754018828 > Acesso em: 07 out. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO EM HABEAS CORPUS RHC Nº 147707-PA. 6ª Turma. Relator: ministro Antônio Saldanha Palheiro. Disponível em < https://processo.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28RHC.clas.+e+%40num%3D%22147707%22%29+ou+%28RHC+adj+%22147707%22%29.suce.> Acesso em: 07 out. 2023.

Coaf, Relatório Integrado de Gestão 2022. Disponível em: < https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/publicacoes-do-coaf-1/rig-coaf-2022-publica-20230308.pdf > Acesso em: 03 out. 2023

FATF/GAFI. AS RECOMENDAÇÕES DO GAFI: Padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação. Fevereiro de 2012. Disponível em < https://www.fatf-gafi.org/content/dam/fatf-gafi/translations/Recommendations/FATF-40-Rec-2012-Portuguese-GAFISUD.pdf.coredownload.inline.pdf  > Acesso em: 10 out. 2023.

Autores

  • é agente de Polícia Federal, especialista em Direito Público, coordenador da Rede Nacional de Laboratórios de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (Rede-Lab), professor da Academia Nacional de Polícia (ANP) e instrutor do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD).

  • é delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul, especialista em Ciências Penais e em Direito Público, coordenador do Laboratório de Tecnologia Contra Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (PC-RS) e professor da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (Acadepol-RS).

  • é delegada de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, vice-presidente da Fundação de Apoio ao Ensino e Pesquisa da Polícia Civil (Faepol), mestre em Direito e professora de Direito Constitucional e da Academia Estadual de Polícia Sylvio Terra (Acadepol-RJ).

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