Observatório Constitucional

Considerações sobre o nascimento do sentimento constitucional

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21 de outubro de 2023, 8h00

Em 1884, durante uma conferência da Sociedade Jurídica de Viena, Jhering [1] tratou do nascimento do sentimento jurídico. Iniciou sua fala com uma confissão: não estava se sentindo capaz de concluir com seu propósito, mas tinha alguma esperança em dizer algo a respeito do assunto. Assim como Jhering, neste brevíssimo artigo não há intenção de esgotar as ideias aqui apresentadas, mas oferecer reflexões na esperança de proporcionar o despertar para o tema: precisamos de sentimento constitucional.

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Nos últimos tempos, algumas vozes passaram a demandar por uma nova Constituição. Supostamente, o texto aprovado em 1988 estaria defasado e inadequado para os atuais valores da sociedade brasileira. Há muitos direitos e poucos deveres, dizem. Comparam a Constituição de 1988 com a americana, em que só há o essencial. Questionam a necessidade de manutenção de algumas instituições como o Supremo Tribunal Federal. Criticam até mesmo a república como forma de governo, por entenderem que a monarquia seria a forma mais adequada para o país. A possibilidade de convocação de uma nova Constituinte já foi até mesmo proposta por candidatos à Presidência da República de esquerda e de direita [2]. Ou seja, não importa a ideologia, a insatisfação com a atual Constituição existe.

É no mínimo curioso perceber essa insatisfação quando é por meio da existência do texto constitucional de 1988 que os direitos das pessoas que a criticam são garantidos. A propriedade, a liberdade em todas as suas formas, a privacidade, os direitos sociais, acesso à justiça e o devido processo legal são exemplos de Direitos Fundamentais garantidos a todos e podem ser diariamente identificados na realidade social, ainda que muitos não percebam a proteção constitucional nas suas relações sociais.

Por meio do Direito é possível saber quais expectativas encontrarão aprovação social ou não. Luhmann explica que, abstratamente, o Direito tem a ver com os custos sociais da vinculação temporal de expectativas, mas, quando observado de modo concreto, o Direito tem a função de estabilização de expectativas normativas. Quando há certeza quanto às expectativas, aumenta-se o grau de confiança dos indivíduos [3].

O que acontece, então? Seria um problema da Constituição, do Direito ou do sistema político? Independentemente da resposta, há uma expectativa social não atendida e ainda que a Constituição garanta instrumentos para efetivar as normas constitucionais, na realidade, as pessoas não percebem assim. Há um pessimismo generalizado quanto ao funcionamento da estrutura proposta pela Constituição que contamina o debate social e inviabiliza a defesa do seu texto. Essa tendência de degradação da Constituição foi alertada por Marcelo Neves, quando abordou a ideia de constitucionalização simbólica e a discrepância existente entre a norma e a realidade [4].

O conhecimento constitucional pertence a poucos e costuma ser restrito a discussões acadêmicas e jurídicas. Mesmo no ambiente jurídico, a norma constitucional foi por muito tempo estudada a partir de certo tecnicismo, cujo foco estava em compreender a sua estrutura, ou seja, como a Constituição organizava o Estado e distribuía competência entre os Poderes da República.

Entretanto, conhecer a Constituição de 1988, compreender seu propósito e seus valores demanda algo mais. Aqueles que lidam com o Direito logo percebem que no estudo do Direito Constitucional não é mais suficiente compreender apenas a classificação das constituições e a organização do Estado. A sofisticação da hermenêutica constitucional e a complexidade do sistema de controle de constitucionalidade impõem um novo olhar para o Direito Constitucional, sobretudo porque evidenciou a necessidade de comunicação com outras áreas como a Teoria do Direito, a Filosofia do Direito, a Sociologia e a Ciência Política.

Mas tudo isso tudo faz parte de um aspecto ainda tecnicista do conhecimento constitucional. Juristas, advogados, magistrados e acadêmicos de Direito precisam estudar o Direito Constitucional. A preocupação aqui é com outro aspecto do conhecimento constitucional, o qual, na linha da teoria proposta por Jhering, preocupa-se com o nascimento do sentimento constitucional.

Jhering certamente movimentou a filosofia jurídica do seu tempo ao negar as concepções jusnaturalistas de que verdades éticas do homem são inatas [5]. No seu entendimento, a História instruiu o homem sobre a ética. A Natureza proporcionou ao homem a possibilidade de encontrar o que é ético, mas, com o tempo, o homem encontrou princípios fundamentais da ética a partir da influência das ações a que estava exposto [6].

Ao trazer a ética como parte do sentimento jurídico, Jhering trata, na verdade, de uma perspectiva interna: o que é considerado justo ou injusto. Afirma que esse conteúdo da consciência também tem uma perspectiva histórica [7], assim como a criação do bem e do mal, desenvolvida com o tempo. A consciência ou o sentimento ético não é inato, recebe influência do seu meio [8]. Em sentido semelhante, Jonathan Haidt acredita que as pessoas nascem para serem justas, mas precisam aprender sobre o que devem ser justas [9].

Assim, o sentimento jurídico, traduzido por Jhering como um sentimento ético, é o conteúdo das verdades jurídicas e éticas como um produto histórico. Os enunciados jurídicos, as instituições jurídicas e as normas éticas surgiram em razão de necessidades práticas que conduziram ao seu estabelecimento [10].

Portanto, o sentimento jurídico depende de fatos, da realidade, da história. Jhering afirma que a natureza dotou o homem, como um animal, de egoísmo, mas também de ordem ética. Desse modo, ao precisar conviver com os demais, deve acomodar-se a certas leis. O acúmulo dessas experiências fez surgir princípios para orientar a convivência com outros [11].

Jhering utiliza um exemplo capaz de ilustrar a relação entre sentimento jurídico e a realidade. Recorda que em Roma o roubo era proibido, mas isso não impedia que após a morte de uma pessoa, alguém pudesse pegar para si, como herança, tudo que quisesse. Como não havia mais proprietário, a atitude não poderia ser considerada como um roubo. Compreender isso como um crime, posteriormente, foi fruto do desenvolvimento do Direito, por meio da abstração do sentimento jurídico [12].

A característica observada da regra de não poder roubar demandava a observação da existência de um proprietário, mas a transição ocorreu quando se passou a questionar o porquê de ter que haver um proprietário se um herdeiro também poderia ter direito sobre as coisas. Desse modo, tanto o jurista quanto o povo demandam uma antecipação sobre o direito, quando se trata de sentimento jurídico, mas a história mostra a necessidade da colaboração de motivos práticos para realizar tais exigências [13].

O sentimento jurídico não seria inato porque a sua formação recebe influência do exterior, dos preceitos jurídicos e das instituições para, depois, se estabelecer e ir além. É a capacidade de abstração [14] do ser humano que permite abstrair de cada sucesso concreto algo [15]. Assim, a capacidade de abstração demandaria um trabalho interior, uma elaboração interna da matéria para que o próprio homem tenha consciência dela, mas ainda assim é um processo inconsciente. O progresso da ciência e todos os progressos dos nossos juízos em vida seriam assim construídos de modo abstrato e não consciente. É a atividade inconsciente da abstração que permite que o sentimento jurídico venha antes dos preceitos jurídicos determinados pelas instituições [16].

E como essa capacidade de abstração impacta na nossa percepção constitucional? Será que o nascimento do sentimento constitucional também demanda essa capacidade de abstração? Se, por meio da compreensão dada por Jhering, o sentimento jurídico depende da abstração, poderíamos dizer que o sentimento constitucional também demanda abstração e, assim, também demanda tempo. Isso porque a capacidade de abstração nesses termos exige da sociedade uma reflexão das experiências. É um exercício de olhar para os fatos, compreender as consequências para entender o sentido das normas constitucionais, sobretudo quando se trata de hermenêutica constitucional.

Nesse aspecto, não há como não observar a história constitucional brasileira para entender essa relação de causa e efeito. Diante de tantos fatos sociais e dos acontecimentos históricos o constitucionalismo brasileiro é distinto de outros constitucionalismos. A cada nova constituição, novas normas e nova demanda de capacidade de abstração na tentativa de formar esse sentimento constitucional. Em 1988, a consolidação democrática demandou dos poderes instituídos e da sociedade uma reorientação jurídica com impactos normativos ainda ajustados até hoje. Apenas em 2015 o Código de Processo Civil foi reestruturado de modo a se adequar aos valores constitucionais de modo mais sistêmico e, atualmente, repensamos a estrutura do Código Civil, que apesar de ter entrado em vigor em 2002, teve seu texto ainda elaborado em uma realidade constitucional passada.

Seguindo as ideias de Jhering, é por meio da história que o sentimento jurídico nasce, não é uma concepção inata que o homem concebe por alcançar a consciência. Chega-se aos poucos ao reconhecimento das verdades que o Direito adota. Elas não nascem válidas, no sentido social, porque demandam tempo de reconhecimento, de sentimento.

Assim seria possível compreender a verdade constitucional. Ela não é inata de um povo ou de uma sociedade, demanda tempo de reconhecimento, de validação social, para que o sentimento constitucional nasça, se desenvolva e se solidifique. No caso do constitucionalismo brasileiro, com um histórico de sete Constituições, é mais evidente ainda que a verdade constitucional não é inata, mas precisou ser desenvolvida.

Nesses 35 anos, identifica-se no ordenamento jurídico um momento de reestruturação, adequação e ajustes, pois ainda se vivencia um período de transição constitucional. A fase ainda é de aprendizado, o que demanda observação das características por meio de experiências. Em períodos de ajuste, é natural que existam conflitos, debates e questionamentos sobre significados e compreensões dos fenômenos observados. O Direito institucionaliza a abstração, mas professores, juristas, magistrados, advogados e acadêmicos de direito, enquanto conhecedores da técnica jurídica, precisam observar, diferenciar e encontrar as verdades constitucionais. Contudo, aos cidadãos e a todos aqueles que vivem no Estado constitucional brasileiro, sustentado pela Constituição de 1988, demanda-se conhecimento do nosso desenvolvimento histórico constitucional e a observância da experiência que o ambiente proporciona para fins de desenvolvimento dessa abstração.

Jhering acreditava que a sua teoria pertencia ao futuro: "Haverá um tempo em que a minha teoria terá lugar. Sei que esse momento está um pouco longe, mas desejo que chegue para que, deste modo, a questão possa ser considerada seriamente" [17]. Apenas 35 anos não são suficientes para o nascimento do sentimento constitucional. É preciso tempo e conhecimento, mas espera-se que não esteja tão longe quanto Jhering imaginou.

 


[1] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008.

[3] LUHMANN, Niklas. O Direito da sociedade. Tradução: Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 175.

[4] "A 'discrepância entre a norma e a realidade' parece que tende a deixar de estar associada à 'ficção tornando-se realidade e a realidade ficção', para transformar-se em manifesto de desrespeito à Constituição e ao direito. Por um lado, o cinismo das elites prevalece. Por outro, aprofunda-se a apatia do público. Em contradição com isso, os movimentos sociais radicalizam-se e, correspondentemente, o 'Estado de repressão social' encontra o pretexto para assumir a dianteira" (NEVES, Marcelo. Constituição e Direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. p. 414).

[5] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 34.

[6] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 38.

[7] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 58.

[8] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 59-61.

[9] HAIDT, Jonathan. The Righteous Mind: Why good people are divided by politics and religion. New York: Vintage Book,2012, p. 31.

[10] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 39.

[11] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 40.

[12] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 64.

[13] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 65.

[14] "Em que se baseia senão nesta capacidade de abstração o fato de que as crianças aprendam a linguagem; que saibam o que significa uma ou outra expressão, que possam diferenciar um animal doméstico, uma flor ou outra coisa? Quem ensinou à criança diferenciar uma coisa de outra? Ninguém. A criança escutou os nomes: a esta animal escutei chamar de cachorro, ao outro de gato. Isso é tudo. O que faz agora a criança? A criança abstrai, certamente de forma inconsciente, as características de um cachorro; abstrai as características de um gato e, depois de algum tempo, é capaz de diferenciar ambos os animais por suas características abstratas. O mesmo acontece com a linguagem. A criança assimila e conjuga sem que ninguém tenha ensinado para ele sobre as regras abstratas. De onde a criança retira essas regras? Abstrai essas regras das palavras que ouve e a criança, como toda a sua habilidade, leva a cabo uma tarefa intelectual que certamente é incrível." (JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 61-61)

[15] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 61.

[16] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 64.

[17] JHERING, Rudolf von. Sobre el nacimiento del sentimento jurídico. Madrid: Trotta, 2008, p. 66.

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