Opinião

Mercado de carbono, povos tradicionais e colonialismo climático

Autor

  • Leandro Mitidieri Figueiredo

    é procurador da República coordenador do Grupo de Trabalho de Unidades de Conservação integrante do Grupo de Trabalho Quilombos e Titular do Ofício Extraordinário para Crise Yanomami no MPF.  Doutorando em sociologia e direito e mestre em Direito Constitucional pela UFF (Universidade Federal Fluminense) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa especialista em Direito Público pela UnB (Universidade de Brasília).  Ex-professor da UFF e da PUC-SP.

    View all posts

21 de outubro de 2023, 17h14

Diante da crise da mudança climática e das ameaças ambientais, foi construída a ideia de justiça ambiental, em que medidas seriam elaboradas em detrimento dos que se beneficiaram com o uso dos recursos do planeta e em favor daqueles que não o fizeram (RAIZER, L., 2011).

Cap and trade do Governo Bush
Na sua campanha presidencial de 1988, George H. W. Bush prometeu que, como presidente, introduziria uma legislação que reduziria milhões de toneladas de poluentes conhecidos por gerarem a chamada "chuva ácida".

Bush propôs o que veio a ser conhecido como "cap and trade", estabelecendo um "orçamento" global para a poluição por chuva ácida para todo o setor energético e permitiu que as fábricas comprassem e vendessem licenças de poluição. Os que enfrentavam reduções de baixo custo fariam o maior número de cortes e venderiam o seu direito de poluir não utilizado aos que enfrentavam reduções de alto custo.  Trata-se do embrião do negócio com créditos de poluição ou "mercado de carbono" [1].

Clean Development Mechanism (Protocolo de Quioto — 1997)
O Clean Development Mechanism (CDM) ou Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), advindo do Protocolo de Quioto, é a primeira sistematização internacional de negociação ou financiamento de emissões de carbono do mundo.

O mecanismo consiste nas empresas adquirirem créditos de redução de emissões, uma vez certificado que fizeram investimentos em conservação de energia e novos projetos energéticos em países em desenvolvimento, de acordo com as regras do tratado, e que os investimentos contribuíram para a redução das emissões de carbono.

O Protocolo de Quioto trata de dois mercados de carbono: o regulado e o voluntário.  O regulado é estabelecido com base no limite máximo de emissões e, a partir disso, é permitida a compra e venda de permissões.  É um mercado institucionalizado, em que uma entidade faz sua gestão, por meio de mecanismos de verificação e controle (artigo 17 do protocolo).

Já no mercado voluntário os créditos são comprados livremente, por conta própria, para compensar emissões de carbono. É uma forma opcional, em que particulares adquirem créditos de carbono com o interesse de fomentar a redução da emissão de CO2 ou com o interesse de demonstrar que contribuem com essa iniciativa.

Artigo 6 do Acordo de Paris de 2015
O Acordo de Paris entrou em vigor vinte anos após a criação do Protocolo de Kyoto, também prevendo metas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

O artigo 6 do acordo prevê dois instrumentos de mercado de carbono. O primeiro é uma espécie de comércio dos resultados de mitigação atingidos por um país. O segundo instrumento é a mitigação por meio de projetos de redução de emissões ou remoção de gases de efeito estufa certificados por um mecanismo vinculado ao Acordo de Paris, nos moldes do que ocorria com o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Quioto.

Na COP 27, realizada em novembro de 2022, não houve avanço significativo quanto ao artigo 6.  A discussão quanto às chamadas "emissões evitadas" foi postergada para 2024, não se levando em conta o "desmatamento evitado", que mensuraria os estoques de carbono que deixam de ser eliminados para a atmosfera quando uma floresta é mantida de pé.

Mercado de carbono no Brasil
O Brasil ainda não tem um mercado regulado de carbono [2]. Já o mercado voluntário acontece há muito tempo e já colocou o Brasil como um dos países com mais projetos no âmbito do CDS, principalmente no primeiro período de compromisso do Protocolo de Quioto, até 2012.

Até abril de 2017, o Brasil tinha ficado em terceiro lugar na quantidade de projetos registrados, o que correspondia a 4,4% do total global (China em primeiro lugar e Índia em segundo) [3].

Mercado de carbono na legislação brasileira
A Lei 12.187/2009 (PNMC) previa que ela visaria ao estímulo ao desenvolvimento do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões — MBRE (artigo 4º).

A Lei 14.119, de 13 e janeiro de 2021, instituiu a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, o Cadastro Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (CNPSA) e o Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais (PFPSA), dispondo sobre os contratos de pagamento por serviços ambientais.

Podem ser objeto do Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais (PFPSA) unidades de conservação de proteção integral, reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, além de áreas de exclusão de pesca, assim consideradas aquelas interditadas ou de reservas, onde o exercício da atividade pesqueira seja proibido transitória, periódica ou permanentemente, por ato do poder público (artigo 8º, inciso III e VI).

Também são elegíveis para provimento de serviços ambientais as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) e as áreas das zonas de amortecimento e dos corredores ecológicos cobertas por vegetação nativa, além de outros espaços territoriais especialmente protegidos como áreas de preservação permanente e reservas legais, conforme regulamento (artigo 9º, inciso III e parágrafo único).

Em maio de 2022, em seu último ano de governo, Bolsonaro atropelou o Congresso e editou um decreto criando um "mercado regulado de carbono". Em verdade, o Decreto 11.075/2022 somente deu as bases para os setores estabelecerem suas próprias metas, sem a mínima instrumentação para a criação de um mercado.  Foi revogado.

O estado do Ceará instituiu recentemente a Política Estadual sobre Pagamento por Serviços Ambientais (Lei 18.427/2023).  A conservação do conhecimento e da biodiversidade pelos povos e pelas comunidades tradicionais está definido como serviço ambiental também e o pagador do serviço pode ser o poder público ou particular.

Regulamentação do mercado de carbono (PL 412/2022)
A Comissão de Meio Ambiente do Senado aprovou em outubro de 2023 o projeto de lei que regulamenta o tema, com uma seção específica para as questões relativas a terras tradicionais e unidades de conservação:

"Artigo 47. Fica assegurado aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, por meio das suas entidades representativas no respectivo território, o direito à comercialização de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões e de créditos de carbono gerados com base no desenvolvimento de projetos e programas nos territórios que tradicionalmente ocupam, condicionado ao cumprimento das salvaguardas socioambientais e às seguintes condições:
I – o consentimento resultante de consulta livre, prévia e informada, nos termos da Convenção nº 169 da Convenção Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais;
II – a definição de regra para repartição justa e equitativa e gestão participativa dos benefícios monetários derivados da comercialização dos créditos de carbono e de Certificados de Reduções ou Remoções Verificadas de Emissões provenientes do desenvolvimento de projetos e programas nas terras que tradicionalmente ocupam, depositados em conta específica, conforme regulamento;
III – apoio por meio de programas, subprogramas e projetos voltados para as atividades produtivas sustentáveis, a proteção social, a valorização da cultura e a gestão territorial e ambiental, nos termos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenase da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; e
IV – a inclusão de cláusula contratual que preveja indenização aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais por danos coletivos, materiais e imateriais, decorrentes de projetos e programas de geração de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões e de créditos de carbono.
Parágrafo único. O processo de consulta de que trata o inciso I do caput será custeado pela parte interessada, não cabendo tal ônus aos povos indígenas e aos povos e comunidades tradicionais.
Artigo 48. Consideram-se áreas aptas ao desenvolvimento de projetos e programas de geração de créditos de carbono e de Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões, observados os demais requisitos estabelecidos neste Capítulo e na regulação do órgão gestor do SBCE:
I – as terras indígenas, os territórios quilombolas e outras áreas tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades tradicionais;
II – as Unidades de Conservação previstas nos artigos 8º e 14 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, desde que em conformidade com o disposto no Plano de Manejo da unidade;."

Na previsão de indenização aos povos por danos decorrentes de projetos e programas, não fica claro que esta indenização também deve abarcar os casos de negócios de terceiros envolvendo suas terras tradicionais, sem sua participação, como nas hipóteses de grilagem de terras indígenas por exemplo.

Para unidades de conservação, é exigida a conformidade com o disposto no seu plano de manejo, devendo haver anuência prévia dos órgãos e entidades responsáveis pela gestão das áreas, em se tratando de áreas de domínio público.  Já em relação às terras tradicionais, há menção subentendida à exigência de conformidade com o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), instrumento da Politica Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída pelo Decreto 7.747/2012.

Créditos de carbono em terras tradicionais
Diante de preocupações com a pressão que o mercado voluntário já exerce sobre os povos tradicionais, principalmente os indígenas, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Pará lançaram nota técnica com recomendações a respeito da proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no contexto do mercado voluntário de carbono, em julho de 2023 (Disponível aqui: acesso em 2.set.2023).

Colonialismo climático
A ausência do devido reconhecimento do papel dos povos tradicionais na mensuração dos estoques de carbono que deixam de ser eliminados para a atmosfera quando uma floresta é mantida de pé demonstra que os mercados de carbono ainda reproduzem o chamado colonialismo climático.

Há uma grande variedade de definições, mas, na essência, colonialismo é um ato de dominação política e econômica que envolve o controle de um país e do seu povo por colonos de uma potência estrangeira (BACHRAM, H., 2004).

A linguagem do colonialismo é cada vez mais invocada para descrever uma variedade de atos de dominação e controle associados às injustiças produzidas pelas alterações climáticas e às respostas às mesmas.  O termo é empregado como uma descrição abrangente para uma série de atos de violência, expropriação, controle e injustiças que não são historicizados.

Fundamentalmente, a razão pela qual o mecanismo de desenvolvimento limpo do Protocolo de Kioto (Clean Development Mechanism) e o mecanismo do Artigo 6 do Acordo de Paris não promovem efetivamente resultados em termos globais é que, apesar dos enfeites retóricos, eles são mercados.  Em outras palavras, não se trata de um fundo de desenvolvimento nem de um mecanismo de promoção de conservação e direitos. O seu objetivo é fornecer créditos de redução de emissões negociáveis ao menor custo num período de tempo limitado, e não direcionar o financiamento para projetos que proporcionem o maior benefício ambiental e social ou que ajudem a orientar um país em desenvolvimento para um caminho sustentável (PEARSON, 2007, p. 247-252).

Conclusão
Assim, há um longo caminho para que os mercados de carbono se constituam em alguma medida como instrumento de redução de desigualdade, a contribuir para a ideia de Giddens de development imperative ou representar algo consentâneo com justiça ambiental.

Esse longo caminho, tanto na perspectiva ambiental como na dos povos tradicionais perpassa os desafios de ordem ambiental:  concernente na verificação da idoneidade dos créditos e sua efetividade em preservar a natureza de determinadas áreas e em reduzir as emissões de carbono; de ordem cultural e de direitos humanos:  partindo da garantia da devida consulta livre, prévia e informada até o cuidado com os impactos causados por vultosas somas de dinheiro em termos de desagregação de uma comunidade;  e de justiça socioambiental:  consistente no estabelecimento do justo prêmio pela preservação das enormes áreas das terras tradicionais, reconhecendo-se esses povos e comunidade como fator de preservação da natureza e, em muitos casos, a razão para ainda estarem de pé florestas nesses locais.

Na legislação de um mercado regulado no Brasil deve estar previsto minimamente:

– participação dos órgãos e entidades públicas ambientais no processo de obtenção dos certificados e de utilização dos créditos de carbono no sistema;
– 
verificação da propriedade/posse/ocupação incidente sobre a área objeto da captura de carbono;
– 
consentimento mediante consulta livre, prévia e informada dos Povos e Comunidades Tradicionais em relação a iniciativas em suas terras, respeitado o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA);
– 
regra para repartição justa e equitativa e gestão participativa dos benefícios monetários devidos aos povos tradicionais, depositados em conta específica, comprovado o respeito à sua autonomia e aos direitos humanos por parte dos operadores, certificadores ou beneficiários por meio de ouvidorias externas para o encaminhamento de denúncias e auditorias a serem encaminhadas aos órgãos ou entidades públicas com atribuição;
– 
direito de indenização para os povos tradicionais, principalmente no caso de suas terras serem objeto de negociação de terceiros indevidamente, sem sua participação.

A ausência do devido reconhecimento do papel dos povos tradicionais na mensuração dos estoques de carbono que deixam de ser eliminados para a atmosfera quando uma floresta é mantida de pé demonstra que os mercados de carbono ainda reproduzem o colonialismo climático.  Nestes termos, os mercados de carbono continuam a reproduzir o colonialismo na sua vertente climática, nessa nova versão que já é apelidada de "CO2lonialismo".

 


[2] Em setembro de 2023.

[3] Disponível em: <https://goo.gl/gzSnSw/> Acesso em:  22 set. 2023.

Autores

  • é procurador da República, coordenador do Grupo de Trabalho de Unidades de Conservação, integrante do Grupo de Trabalho Quilombos e Titular do Ofício Extraordinário para Crise Yanomami no MPF.  Doutorando em sociologia e direito e mestre em Direito Constitucional pela UFF (Universidade Federal Fluminense), especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa, especialista em Direito Público pela UnB (Universidade de Brasília).  Ex-professor da UFF e da PUC-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!