Opinião

CPI da Americanas e o crime de infidelidade patrimonial

Autor

  • Raul Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público (Unisinos/RS) e especialista em Direito Tributário (Estácio de Sá/RJ).

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19 de outubro de 2023, 6h08

Os trabalhos da CPI sobre a empresa Americanas S.A. foram concluídos com a apresentação de relatório final acompanhado de uma importante proposta de adequação da legislação penal, com a criação de nova hipótese legal de crime.

Razão para a instauração da CPI, o caso da empresa de capital aberto Americanas S.A desnuda a complexidade dos crimes empresariais. Basta ver que as apontadas inconsistências em lançamentos contábeis da empresa, que resultariam em uma discrepância de mais de R$ 20 bilhões em seus balanços financeiros, não teriam sido percebidas nem mesmo nas auditorias periodicamente realizadas nos balanços da Companhia, tarefa a cargo de duas das conhecidas Big Four, maiores empresas de auditoria do mundo.

Diferentemente dos delitos chamados "clássicos" (homicídio, roubo etc.), cuja materialidade é geralmente de fácil constatação (mesmo que a autoria, por vezes, não seja identificada), os crimes empresariais costumam demandar uma exaustiva e técnica apuração para que se possa afirmar, mesmo que apenas preliminarmente, sua provável ocorrência.

Justamente por essa razão, em um caminho semelhante àquele adotado para o combate à criminalidade organizada (com a instituição e o desenvolvimento do instituto da colaboração premiada), uma das propostas do relatório final da CPI é o aumento da recompensa oferecida ao informante de boa-fé para 10% do valor recuperado ou do montante da sanção pecuniária paga, a fim de potencializar o estímulo à denúncia e à cooperação por aqueles que têm acesso facilitado a informações internas de empresa envolvida em práticas ilícitas.

Outra medida voltada ao fortalecimento do sistema de apuração e responsabilização de ilícitos empresariais é a recomendação, também presente no relatório final da CPI, de expansão do orçamento e do quadro de servidores da Comissão de Valores Mobiliários, entidade com poderes de fiscalização e aplicação de penalidades no âmbito do mercado de valores mobiliários.

Em matéria criminal, entretanto, o ponto central do relatório final é a proposta de criação do delito de "infidelidade patrimonial", proposta que positivamente se socorre da academia, ao adotar a literalidade do tipo penal sugerido por Rodrigo de Grandis, autor de brilhante pesquisa sobre o tema, nos seguintes termos:

"Artigo 168-B. Abusar dos poderes de administração de um patrimônio alheio que lhe foram incumbidos por lei, ordem legal ou negócio jurídico, com o fim de obter vantagem de qualquer natureza em benefício próprio ou de outrem, mediante infração do dever de salvaguarda, causando prejuízo ao patrimônio administrado:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.

§1º. Compreende-se como prejuízo patrimonial a diminuição do patrimônio, a perda de uma oportunidade fundamentada na obtenção de um incremento patrimonial esperado ou a frustração de um fim almejado pelo titular do patrimônio.

§2º. A pena aumenta-se de um a dois terços se o crime for cometido na administração de pessoa jurídica de direito privado.

§3°. A pena será de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime for cometido na administração de instituição financeira, assim consideradas aquelas definidas no artigo 1º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986.

§4º. Sem prejuízo das penas previstas no caput deste artigo, o juiz poderá aplicar a pena de inabilitação temporária pelo prazo de até cinco anos para o exercício do cargo de administrador de pessoa jurídica de direito privado.

§5º. A ação penal proceder-se-á mediante representação".

Em relação à identificação de eventuais responsáveis pelas fraudes (termo utilizado pela própria Americanas, em comunicado emitido no dia 13 de junho de 2023) nas demonstrações financeiras da Companhia, o relatório da CPI transfere tal prerrogativa aos demais órgãos de apuração, inclusive com determinação de compartilhamento de toda a apuração com a Comissão de Valores Mobiliários, o Ministério Público Federal, e a Polícia Federal. Para além disso, é inegável a importância dos trabalhos da CPI na promoção do desenvolvimento da legislação penal brasileira, especificamente em relação ao ato de abuso de poderes de administração patrimonial.

Autores

  • é advogado criminalista, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-Novo Hamburgo (RS) e mestre em Direito Público pela Unisinos.

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