Constelação familiar no Judiciário reforça preconceitos e contamina mediações
17 de outubro de 2023, 8h42
Com a intenção de reduzir as pilhas de processos que tramitam nos tribunais, o Novo Código de Processo Civil, publicado em 2015, fomentou o uso de métodos alternativos para resolução de conflitos, como as audiências de mediação e conciliação.
Alguns anos antes, a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça fora publicada com o mesmo objetivo. Esses textos, todavia, abriram espaço para que misticismos — em especial a chamada Constelação Familiar — norteassem decisões judiciais no Direito de Família e contaminassem as tratativas para resoluções de conflitos.
A prática, também chamada de “Constelação Sistêmica Familiar”, se autodenomina uma espécie de terapia — mesmo sem aval dos conselhos de psicologia — e usa subjetividades espirituais e metafísicas para supostamente encontrar a razão e solução dos conflitos. Suas bases foram delineadas nos anos 1980 pelo autointitulado “terapeuta” alemão Bert Hellinger, cujo nome tem relações vultosas com o nazismo (ele chegou a combater pelo Eixo na Segunda Guerra).
Seu uso já consta nos processos de Família no Brasil há mais de uma década, mas voltou aos holofotes após críticas enviadas por pesquisadores ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania no final de agosto (leia o documento no final desta reportagem).
As críticas à prática chegaram ao apogeu em março, quando o Conselho Federal de Psicologia emitiu nota técnica afirmando que o uso dessa “terapia” era incompatível com o exercício da profissão de psicólogo. A teoria da Constelação, diz a nota, reforça estigmas e preconceitos contra mulheres e homossexuais, já que parte do pressuposto de que regras “naturais” definem as questões familiares.
No caso das mulheres, por exemplo, há uma perspectiva dentro dessa teoria de que elas são hierarquicamente inferiores aos homens; o mesmo ocorre entre pais e filhos.
Nas constelações, um “constelador” atende o “constelado” por meio de uma dramatização (por vezes com atores, mas também com bonecos e outros objetos) a fim de simular sua estrutura familiar e, dessa forma, apontar os problemas e soluções de determinado litígio, incluindo os que envolvem violência doméstica ou contra crianças e adolescentes. Não há qualquer comprovação científica de sua eficácia e, na prática, a Constelação Familiar é um tipo de religião.
Seu próprio nome é objeto de certa disputa. O precursor da Constelação Familiar no Direito brasileiro, o juiz Sami Storch, do Tribunal de Justiça da Bahia, registrou a patente do termo “Direito Sistêmico” no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) em 2017 e detém a marca até 2027. Nas seções estaduais da Ordem dos Advogados do Brasil, pulularam comissões de “Direito Sistêmico”, ainda que esse não seja efetivamente um campo de estudos jurídicos e verse única e exclusivamente sobre o uso da Constelação.
Por outro lado, o Conselho Federal de Psicologia cita que uma confusão foi criada em torno do termo “Sistêmico”, posto que há terapias válidas que utilizam essa expressão, como a Terapia Familiar Sistêmica, que é pautada pela singularidade de cada família. A prática da Constelação é diametralmente oposta: todas as famílias obedecem às mesmas leis e regras ditadas pela “teoria”.
Neste contexto, seminários, palestras e cursos, alguns bancados pela própria OAB, se intensificaram e delinearam um mercado de “Direito Sistêmico” no Brasil. É um mercado proeminente e único, posto que o uso da Constelação no Judiciário, em termos quantitativos, é uma idiossincrasia do país, e sua prática não é regulada nem fiscalizada.
Para os advogados e especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, não só há uma série de problemas de ordem social a partir do uso da Constelação no Direito Familiar, como a prática também contamina o instituto da mediação, de suma importância para a celeridade processual. A “teoria” ainda coloca a figura da mulher como inferior ao homem (lei da hierarquia), o que reforça sua vulnerabilidade como parte nos processos de Família e viola princípios básicos do Direito, como o da isonomia.
“A teoria também tem passagens que naturalizam a violência sexual sofrida pelas meninas dentro da família, e também naturaliza a responsabilização da mulher e a isenção dos homens em caso de violência sexual. Isso é o que diz a nota do CFP, que foi subscrita pelos maiores profissionais da área. E a gente vê isso sendo usado com dinheiro público”, diz o advogado Francisco Campis, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e estudioso das Consetelações Familiares sob a perspectiva hermenêutica.
Nas jurisprudências em que se encontra o uso da Constelação, aparece um pouco de tudo: casos de violência doméstica em que o acusado é intimado a participar da prática e, quando a recusa, a negativa é citada em sentença para negar sua apelação; argumentações metafísicas em casos de divórcio litigioso, ações de alimentos ou de guarda; “perícias” que têm como base a Constelação Familiar em casos de aposentadoria por invalidez, entre outros.
Mesmo nos casos em que a prática, de alguma forma, ajuda a selar acordos para contornar os litígios, ela não deixa de preocupar os advogados. Luiz Kignel, sócio do PLKC Advogados e especializado em mediação, atuou em uma única ação de herança em que as partes não chegavam a acordo e também se recusaram a participar da própria mediação. Uma das partes então propôs a Constelação e, a partir disso, houve acordo. À época, ele não conhecia a prática.
“As pessoas confundem muito Constelação Familiar com mediação, são coisas completamente diferentes, embora caminhem para o mesmo objetivo, que é terminar um conflito sem litígio. A mediação é regulamentada e trabalha, na verdade, com o emocional, o intangível, mas a mediação é o intangível pautável, você discute fatos e eventos que as pessoas conhecem. A Constelação é outra conversa, mexe com o subconsciente, com o passado”, diz. “Tive só esse caso, foi curioso, mas se o Conselho Federal de Psicologia diz que não está abençoado, a gente tem que ter reservas.”
Fundamentação metafísica
À boca pequena, há centenas de relatos de mediações e audiências com o uso da Constelação Familiar que mostram desde endosso a visões sexistas em casos de divórcio até situações mais graves, como em casos de violência doméstica em que a própria vítima é culpabilizada. Nesses processos mais delicados, muitas vezes os “constelados”, por conta da exposição de traumas e outras violências, têm medo de falar publicamente sobre suas experiências.
Mestre e doutorando em Direito, Mateus França, que estuda o uso da Constelação Familiar no Poder Judiciário e é signatário da carta enviada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, diz à reportagem que já recebeu contatos de mulheres que atuam em grupos de apoio a vítimas de violência sexual e citaram que a Constelação reforçou traumas e as “revitimizou”.
“As pessoas que vieram fazer desabafos a mim sobre terem passado por revitimização na condução de práticas de Constelação no Judiciário não queriam denunciar publicamente porque tinham medo de retaliação. Muitas têm processo em tramitação, então elas tinham medo de ser prejudicadas por isso, justamente por essa relação desigual no Judiciário.”
Outro problema é que, conforme relatos colhidos e analisados pela reportagem, há casos em que a prática da Constelação é imposta às partes, o que contraria a própria natureza da mediação. A título de exemplo, em uma ação que tramita sob sigilo na 5ª Vara de Família e Registro Civil de Recife, e que versa sobre regulamentação de visitas, diz a juíza Wilka Pìnto Vilela em despacho:
“Considerando, que este juízo vem aplicando o projeto ‘Um Novo Olhar para conciliar’ desde o ano de 2016, e através da Resolução de nº 410/2018 e Instrução Normativa do nº 23/2018 do Nupemec do TJPE, através da constelação sistêmica familiar que é uma ferramenta terapêutica muito útil, que atuar dentro do sistema familiar indo na causa do problema apresentado com a finalidade de resolução dos conflitos. Considerando que o presente processo se encontra apto a julgamento e tendo o juízo que obedecer ao disposto do § 3º do art. 12 do CPC, Resolvo, por colocar o presente feito, para participar da PALESTRA VIVÊNCIA SOBRE CONSTELAÇÃO SISTÊMICA FAMILIAR, a ser ministrada por essa magistrada, enquanto o feito segue a ordem cronológica, deste modo, ficando as partes, convocadas para comparecerem a esta Unidade Judiciária no dia 17 de maio de 2019 às 09h00.”
No caso em questão, não só as partes foram intimadas a participar da “palestra”, como a própria juíza, ao que indica seu despacho, atuou como “consteladora”.
“O que acontece em uma Constelação Familiar não são as partes se manifestando como elas se sentem, como elas acham que o conflito deve ser solucionado. O que temos é um ‘constelador’ que, analisando supostas informações vindas de um campo morfogenético, essa pessoa faz a análise do que aconteceu, a causa do conflito e a solução do conflito. Isso é muito diferente de se pensar nos meios consensuais”, diz França.
“Em outros mecanismos de mediação, você tem uma voz ativa das partes, no sentido de eles mesmos poderem falar de onde vem o conflito. Quando você coloca a Constelação no processo, o que acontece é que eles partem de um pressuposto que não é cientificamente validado, de que existe um campo impalpável, capaz de transferir informações sobre qualquer ser vivo.”
Em outro processo, a “teoria” da Constelação Familiar é utilizada como fundamentação jurídica para definir se um pai pode ou não ver sua filha presencialmente.
Também sob segredo, o processo tem como base um divórcio litigioso, que envolve ainda uma criança que passa por tratamentos psiquiátricos.
A mãe, no processo, alega que a criança estava enfrentando crises de ansiedade por conta do contato virtual que mantinha com o pai. Este, por outro lado, alegava que queria ver a filha presencialmente.
Assim sentenciou o juiz Alysson Floriano, da 1ª Vara de Família, Órfãos, Sucessões, Interditos e Ausentes de Itabuna (BA), em abril deste ano:
“Observa o pesquisador alemão [Hellinger] que é importante para o equilíbrio emocional humano alinharmos a presença da figura paterna à consciência de tudo o que ela representa. Ou seja, deve-se olhar para o pai, permitir-se percebê-lo além de qualquer julgamento que se tenha do homem que está neste papel e se conectar com a força da vida e do masculino que chega até nós por meio dele. Essa consciência é libertadora e traz cada vez mais clareza de quem somos e nosso papel social.”
E prosseguiu: “Assim, com o propósito de oferecer à menor o pleno desenvolvimento como figura humana e social, à luz dos ensinamentos sistêmicos, que atribuem ao pai a responsabilidade pelo nosso movimento na vida e para a vida, deve ser assegurada a convivência com o seu genitor, de forma presencial.”
Neste caso, a decisão do magistrado foi contrária ao entendimento do Ministério Público, que se manifestou por manter o regime que vigorava até aquele momento, ou seja, encontros virtuais semanais entre pai e filha.
Há ainda uma série de vídeos e outros materiais publicados que mostram, empiricamente, a aplicação da Constelação Familiar no âmbito do Judiciário. Uma dessas gravações, captadas pela Ordem dos Advogados do Brasil, subseção Minas Gerais, mostra o advogado Frederico Ciongoli, “pioneiro” da técnica no Brasil, exibindo uma performance do que seria, hipoteticamente, a Constelação em meio a um processo que envolve menor infrator.
Aos “atores” que fazem parte da Constelação, ou seja, interpretam a suposta estrutura familiar, o advogado diz: “Lembrando que as pessoas que vão representar…ela entra no vazio. Pronto. Vai seguir os impulsos, vão começar a vir os impulsos.”
“A gente vai observar esses movimentos. Então vocês deixem se capturar por esses movimentos. Então entrem no vazio, é lento um pouquinho, a gente tem que ter um pouco de paciência até os impulsos começarem a surgir”. Depois, ele induz o homem que interpreta o “filho” a dizer: “Querido pai, cometer delitos é uma forma de me aproximar de você, de tentar me aproximar de você.”
Ao final dessa parte da performance, Ciongoli diz:
“A pessoa ou o menor que comete delito, muitas vezes, o delito é uma forma de procurar o pai excluído. É tudo inconsciente. E você ve que comprova nossos representantes na reação: ‘nossa, eu não gostei de ouvir isso’. Por quê? Está comprovando exatamente isso. É uma forma destrutiva, óbvio, de tentar chegar no pai. O Sami tem várias experiências também na área penal com isso, menor infrator, 95% é pai excluído.”
Blindagem necessária
Seja por meio de resolução do CNJ ou dos próprios tribunais, ou pela via legislativa, os advogados que conversaram com a reportagem são unânimes em defender uma regulamentação da prática ou sua total proibição. Hoje, além dos pormenores já citados que são incompatíveis com o exercício do Direito, há também ausência de padrão, o que implica em práticas desregradas que muitas vezes fundamentam sentenças nas varas de Família e impactam diretamente a vida das partes.
No Congresso, um Projeto de Lei de deputados do PT, que visa regulamentar a prática da Constelação, aguarda parecer na Comissão de Trabalho. No Senado, corre a Sugestão Legislativa nº 1 de 2022, que propõe o banimento da prática nas instituições públicas. A matéria aguarda parecer do relator Eduardo Girão (Novo), bolsonarista e defensor da Constelação Familiar.
Na Assembleia Legislativa de São Paulo, corre o PL 293/2023, assinada por Andréa Werner (PSB), Mônica Seixas (PSOL) e Marina Helou (Rede), que proíbe a prática nas instituições públicas paulistas. A pauta se tornou mais relevante após a revelação, pela Agência Pública, de que os tribunais estaduais brasileiros gastaram ao menos R$ 2,6 milhões com cursos, passagens e outras questões relacionadas a Constelação Familiar.
O valor é subnotificado, tendo em vista que 11 tribunais não responderam sobre suas despesas com a prática.
“Enquanto o Conselho Federal de Psicologia não se manifestar, não pode nem entrar em discussão no CNJ. Se o próprio Conselho diz que isso não é uma terapia aceitável, como vamos levar isso pro Judiciário?”, questiona Luiz Kignel. “Não se tem uma aceitação mínima, se o conselho não aceita, você vai aceitar?” Para o advogado, acoplar a Constelação à mediação, que tem uma regulamentação própria, “é uma loucura”.
“Tem que passar pela via do Legislativo, tem de ser feita uma discussão com a sociedade civil para normatizar isso. A gente não pode ter simplesmente uma prática que pode gerar várias consequências nocivas. É importante que o CNJ também estude e se debruce e gere no mínimo uma forma de padrão para que isso seja feito ou, de preferência, para que não seja autorizado nas mediações e conciliações”, afirma Francisco Campis.
França diz que o melhor caminho, assim como foi feito na psicologia, é proibir a prática no Judiciário. Mesmo com a regulamentação, diz, a prática e suas problemáticas permaneceriam. “O Direito de Família, mesmo em ações em que não há violência contra mulheres ou crianças, é uma parte importante na vida das pessoas. Por isso vejo que o melhor é se limitar, e restringir esse uso no Judiciário ao máximo.”
Clique aqui para ler a carta enviada ao Ministério dos Direitos Humanos
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Processo 0031351-18.2015.8.17.0001
Processo 0500121-44.2019.8.05.0113
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