Falta de magistradas reduz concessão de direitos a mulheres, diz conselheira do CNJ
13 de outubro de 2023, 8h46
A falta de mulheres nos tribunais prejudica o acesso igualitário à Justiça. Hoje, predomina no Judiciário uma visão masculina, que reduz a concessão de direitos às mulheres.
Foi por isso que a magistrada, na condição de supervisora do Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Judiciário, sugeriu ao CNJ uma regra de alternância de gênero no preenchimento de vagas para os tribunais de segunda instância. A proposta foi relatada por ela no Plenário e aprovada em sessão extraordinária no final de setembro.
Agora, para preencher suas vagas pelo critério de merecimento, as Cortes de segundo grau deverão alternar entre uma lista exclusiva de mulheres e a tradicional lista mista. Essa ação afirmativa valerá até que a paridade seja atingida em cada tribunal.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Salise justifica a medida. Segundo ela, as mulheres enfrentam dificuldades maiores na magistratura, especialmente para conciliar a profissão com a vida pessoal e o cuidado de familiares. Além disso, sofrem com atitudes discriminatórias, como interrupção e descredibilização de suas falas. A progressão na carreira também é penosa, pois mulheres recebem menos promoções por merecimento ou mesmo indicações para cargos de confiança.
A conselheira ainda rebate argumentos que questionam a constitucionalidade da resolução aprovada. Para Salise, o CNJ pode editar atos normativos "voltados à concretização de princípios constitucionais", mesmo que não haja lei sobre o tema correspondente.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres para ingressar na magistratura e progredir na carreira?
Salise Monteiro Sanchotene — As principais barreiras das mulheres para ingresso na magistratura e progressão na carreira estão relacionadas aos papéis sociais, ao modo de vida e à divisão sexual do trabalho que ainda existe na sociedade.
De acordo com pesquisas, as barreiras mais comuns são: a maior afetação da carreira profissional sobre a vida pessoal; um número mais elevado de oportunidades de ascensão perdidas por dificuldade no deslocamento de todo o grupo familiar com filhos pequenos ou familiares sob seus cuidados (circunstância que é mais custosa para as mulheres do que para os homens); maior dificuldade no exercício do cargo, ou exercício por um período mais extenso do que os homens, quando com filhos pequenos ou familiares sob seu cuidado; atitudes discriminatórias — como comportamentos masculinos de interrupção da mulher durante sua fala, explicação mais didática à mulher do que aos demais sobre temas nos quais ela tem expertise, apropriação do conteúdo de fala da mulher e grande descredibilização para abalo de sua confiança —; e menos indicações para cargos de confiança ou promoções, especialmente por merecimento.
ConJur — Como surgiu a ideia da regra de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Poder Judiciário?
Salise Monteiro Sanchotene — No Brasil, a ideia de alternância de gênero já foi objeto de debate em outras oportunidades. Para aplicação no Poder Judiciário, há notícia de que esta possibilidade já foi discutida durante o processo da Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como reforma do Judiciário. Além disso, ao menos desde 2007 as listas alternadas entre homens e mulheres são objeto de debate dentro da pauta da reforma política.
No âmbito do CNJ, a forma de acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau esteve em discussão pública ao menos desde o evento "Mulheres na Justiça: Novos Rumos da Resolução 255/2018", realizado em novembro de 2022.
ConJur — Em seu voto no Plenário do CNJ, a senhora disse que a ausência de mulheres nos tribunais compromete interesses sociais relevantes. Quais são eles?
Salise Monteiro Sanchotene — A ausência de mulheres nos tribunais representa a inexistência de uma das perspectivas da sociedade. O poder decisório dos tribunais será tão melhor exercido quanto mais representar, na sua composição, a diversidade da sociedade brasileira.
A ausência da perspectiva feminina, ou sua existência minoritária, prejudica de uma maneira geral o acesso à Justiça por mulheres e meninas. A concessão de direitos no Poder Judiciário está permeada por uma visão que tem origem em perspectiva masculina e isso, por inúmeras vezes, reduz a percepção de que a Justiça implica a concessão de determinados direitos àquela mulher.
O tratamento conferido, há poucos dias, por um tribunal a uma advogada gestante que, em razão do possível parto, requereu o adiamento do processo pautado com pedido de sustentação oral e recebeu como resposta o argumento de que gravidez não é doença é bem representativo da perspectiva masculina no acesso à Justiça. Há uma incompreensão, fundada em estereótipos, sobre determinadas questões femininas que são rotineiramente desconsideradas.
ConJur — Em quanto tempo se espera que seja atingida a paridade de gênero em todas as Cortes de segundo grau?
Salise Monteiro Sanchotene — Ainda não é possível estimar o tempo para a paridade em todos os tribunais de segundo grau. Alguns tribunais já possuem paridade. Outros estão muito próximos de alcançar o critério previsto na Resolução 525/2023 do CNJ [aprovada na sessão do fim de setembro]. Outros irão demorar muitos anos, porque são Cortes integralmente constituídas por homens.
ConJur — Outra corrente de entendimento considera que o CNJ não tem competência para criar um novo critério de promoção da magistratura, por falta de previsão constitucional. Assim, a via correta para uma alteração do tipo seria a legislativa. Como a senhora rebate tal argumento?
Salise Monteiro Sanchotene — Conforme o voto que proferi no Plenário, entendo que o Supremo Tribunal Federal já confirmou a possibilidade de edição de atos normativos pelo CNJ voltados à concretização de princípios constitucionais, independentemente de existência de lei infraconstitucional. Foi assim com atos normativos vedando nepotismo ou instituindo ações afirmativas de raça nos concursos públicos da magistratura.
ConJur — A proporção de mulheres magistradas também é menor no primeiro grau de jurisdição. É possível melhorar essa situação e atingir uma paridade?
Salise Monteiro Sanchotene — De um modo geral, não há prognóstico de paridade de gênero na magistratura como um todo. Embora o percentual de mulheres nos níveis iniciais da carreira seja maior, a série histórica nas estatísticas do CNJ aponta que o ingresso não corresponde a 50% de juízas. Se o Poder Judiciário revisar normativos para favorecer perspectivas femininas na carreira, é possível que haja aumento de mulheres no ingresso da carreira da magistratura.
ConJur — E quanto aos tribunais superiores? Quais medidas poderiam ser tomadas?
Salise Monteiro Sanchotene — Nos tribunais superiores vão incidir as mesmas questões de discriminação direta ou indireta, mas este ponto não foi objeto de maior aprofundamento, porque a forma de acesso é distinta da que se dá em relação aos tribunais de apelação.
A discussão sobre a paridade nos tribunais de segundo grau é antecedente, em grau de jurisdição mais próximo da sociedade e mais abrangente no que se refere à carreira da magistratura como um todo.
Além de que, com mais desembargadoras nos tribunais de apelação, ampliaríamos a visibilidade do trabalho das mulheres e aumentaríamos naturalmente a possibilidade de mais mulheres ascenderem aos tribunais superiores, porque, nas vagas destinadas à magistratura nos tribunais superiores, as candidaturas possíveis estariam restritas hoje ao universo de 25% de mulheres para 75% de homens.
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