Opinião

Os 8 gaps da Lei de Igualdade Salarial entre mulheres e homens

Autores

  • Larissa Campos Soares

    é mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco—Universidade de São Paulo (USP) e bacharel pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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  • Daniel de Paula Neves

    é mestrando em Direito da Empresa na Universidade de Lisboa pós-graduado em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito e em Direito do Trabalho pela PUC e bacharel pela Universidade São Judas Tadeu.

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10 de outubro de 2023, 6h37

A busca da igualdade entre mulheres e homens não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, estando, atualmente, consagrada como direito constitucional previsto no inciso I do artigo 5º da CF/1988.

Além da isonomia entre ambos, a CLT já traz em seu corpo, desde sua redação original de 1943, o conceito de equiparação salarial, o qual foi aprimorado ao longo dos anos, tendo a reforma trabalhista de 2017 conferido a sua redação atual.

Apesar de garantida pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, o ideal de isonomia salarial entre mulheres e homens nunca foi atingido. Persistem diferenças salariais históricas e sistêmicas, motivo pelo qual deputados e senadores aprovaram a Lei 14.611/23, a qual foi sancionada pelo Ppesidente da República e publicada no Diário Oficial da União no último dia 4 de julho.

A própria exposição de motivos da lei [1] retrata o objetivo de atingir a ampliação da igualdade entre mulheres e homens e o combate à pobreza, ao racismo, à opressão sobre as mulheres, bem como a todas as formas de discriminação social que se refletem em desigualdades históricas.

Esta ampliação da igualdade está evidenciada em dados extraídos da Câmara dos Deputados [2] e que atestam a necessidade do reforço das medidas recém adotadas pelo Congresso Nacional, para que sejam atingidos patamares reais de equivalência e igualdade entre mulheres e homens. Os dados que mais chamam a atenção são os relativos à efetiva diferença salarial pelo exercício da mesma função e a baixa ocupação de cargos de chefia por parte das mulheres em relação aos homens, apesar de elas serem em maior número na população brasileira e terem um percentual maior de conclusão do nível superior.

Contudo, em que pese seja louvável e necessária a conduta praticada pelos deputados e senadores ao aprovarem a Lei 14.611/23, destacam-se, adiante, alguns gaps (lacunas) que demandam um esclarecimento maior à sociedade, de modo a evitar uma enorme insegurança jurídica que contribuirá negativamente à ratio da referida lei:

Das mudanças promovidas na CLT
O artigo 3º da Lei 14.611/23 fez alterações significativas no artigo 461 da CLT, sendo que o §6º do referido artigo passou a ter a seguinte redação:

"§ 6º Na hipótese de discriminação por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade, o pagamento das diferenças salariais devidas ao empregado discriminado não afasta seu direito de ação de indenização por danos morais, consideradas as especificidades do caso concreto."

Verifica-se que foi incluída uma inafastabilidade do direito de ação de indenização por danos morais, "consideradas as especificidades do caso concreto".

Em um primeiro momento, a alteração legislativa parece querer limitar o exercício da jurisdição pelos magistrados, impossibilitando-os de indeferir o pedido de danos morais em razão do objeto litigioso se referir a um dano exclusivamente patrimonial. Contudo, a parte final do §6º, em um segundo momento, afasta a aparente tentativa de interferência na atividade jurisdicional, ao indicar que, para o deferimento da indenização por danos morais, deverão ser consideradas as "especificidades do caso concreto".

Mas o que seriam as "especificidades do caso concreto"? Aqui, identificamos o primeiro ponto a ser esclarecido pelo Decreto. A redação do §6º parece indicar que o pagamento de eventuais diferenças salariais não afastaria, por si só, a indenização por danos morais, mas, ao mesmo tempo, que a existência de desigualdade salarial entre mulheres e homens não representaria dano in re ipsa.

Consequentemente, permaneceria a regra geral: seria necessária a efetiva demonstração de violação à "intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas", nos termos do artigo 5º, X, da Constituição para o deferimento da indenização por danos morais. Ou seja, ao final, a lógica seria a mesma de qualquer potencial ofensa moral: caberia ao ofendido o ônus de comprovar a violação moral. Se assim fosse, qual o motivo da alteração do texto legal? Seria essa a intenção do legislador? Não se sabe, diante da vaga e imprecisa redação do §6º, do artigo 461 da CLT.

É essencial, portanto, que o decreto esclareça a imprecisão do texto legal, evitando-se a insegurança jurídica e o possível aumento exponencial de pedidos de indenização por danos morais.

A segunda lacuna legal que demanda a regulamentação pelo Poder Executivo, também pode ser evidenciada no mesmo §6º, eis que a sua redação atual é divergente e mais abrangente da prevista no caput do art. 461, conforme se verifica dos trechos destacados abaixo:

  • Caput: "[…] sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade".
  • §6º: "[…] por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade […]".

Foram incluídos os critérios da raça e da origem como motivos para a caracterização da discriminação salarial, os quais não constam do artigo 461 da CLT, sendo, ainda, excluído o critério da nacionalidade previsto, originalmente, na redação atual do caput.

Logo, necessário que o decreto retifique este ponto, de modo que a redação dada ao parágrafo sexto não divirja ou seja mais abrangente do que à do artigo 461 da CLT, do qual é proveniente.

Descrição dos conceitos genéricos contidos na lei
Uma terceira situação identificada na lei 14.611/23 refere-se à necessária regulamentação de conceitos genéricos ali contidos, no intuito de evitar uma ampliação indesejada e subjetiva por parte dos operadores do direito, gerando uma total insegurança jurídica. Além da imprecisão do conceito de "especificidades do caso concreto" do §6º, do artigo 461 da CLT, vislumbram-se outros conceitos abertos que merecem a necessária definição pelo legislador:

  • Critérios Remuneratórios: em diversos trechos da nova lei menciona-se esta expressão, mas não há nela ou em outra vigente em nosso ordenamento jurídico, a descrição do seu conceito legal, fato que dificultará muito sua aplicação, por ser completamente abrangente.
  • Origem: da mesma forma, aparentemente, deduz-se que houve a substituição da expressão "nacionalidade" contida no caput do artigo 461 da CLT por "origem", mas sem classificá-la, não sendo, portanto, viável caracterizar, objetivamente, a existência de uma eventual discriminação por este motivo
  • Raça: tal palavra foi incluída na redação do novo parágrafo sexto do artigo 461 da CLT, no entanto, estudos demonstram [3] que sua utilização nos dias de hoje é equivocada e ultrapassada, uma vez que só existe uma raça humana, não havendo, portanto, diversas subespécies, sendo o mais correto utilizar "etnia", conceito que reúne condições sociais e culturais similares a alguns povos ou grupo de pessoas e que já está descrito, tanto no caput, quanto no próprio §6º.

Medidas garantidoras da igualdade salarial e de critérios remuneratórios
No artigo 4º da Lei 14.611/2023 foram estipuladas cinco medidas para assegurar a efetividade da igualdade salarial entre mulheres e homens, como o estabelecimento de mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios;

o incremento da fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens; a disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial; a promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho que abranjam a capacitação de gestores, de lideranças e de empregados a respeito do tema da equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados; e fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.

Contudo, surge aqui o quarto e mais evidente gap da nova lei, pois não é possível ao operador de direito, sem a devida regulamentação, dizer se tais medidas ficarão a cargo das empresas ou do governo, nem quais os requisitos mínimos que deverão ser observados para o cumprimento da determinação legal.

Cite-se, por exemplo, os incisos I (mecanismos de transparência), III (disponibilização de canais de denúncias) e IV (promoção e implementação de programa de diversidade) acima.

Pode-se afirmar, com absoluta certeza, que tais obrigações serão impostas às empresas?

Da mesma forma, é possível assegurar que competirá, exclusivamente, ao governo a implementação dos incisos II (incremento da fiscalização) e V (fomento à capacitação e formação de mulheres)?

Além da razoável dúvida existente sobre quem será o responsável por implementar cada uma das medidas que assegurarão a efetividade do direito, permanecem inconclusivos e subjetivos os seguintes requisitos, o que podemos classificar como quinto ponto de omissão legal:

  • Em que consistirá o mecanismo de transparência a ser criado?
  • Canais de denúncias já existentes nas empresas não poderão servir para o recebimento de relatos a respeito de desigualdade salarial, pois a lei fala em canal específico?
  • Como deverão ser os programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho? Como aferir os resultados destes programas?
  • Médias, Pequenas e Microempresas deverão criar estas medidas ou apenas as empresas com cem ou mais empregados, conforme critério descrito no artigo 5º?

Relatórios de transparência salarial
Finalizando nossa avaliação sobre a Lei 14.611/2023, compete-nos abordar, exaustivamente, o disposto no artigo 5º que vem sendo um dos mais preocupantes para as empresas de um modo geral, cujo caput assim dispõe:

"Art. 5º Fica determinada a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 (cem) ou mais empregados, observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais)."

Apesar de já estar em vigor, patente que aludida disposição não é autoaplicável, sendo este o sexto ponto que demanda uma regulamentação imediata pelo Poder Executivo, pois não há qualquer delimitação de como deveriam ser elaborados os relatórios citados na lei, não sendo, portanto, minimamente razoável que se afirme que tal prazo já esteja a decorrer.

O artigo 5º suscita diversas dúvidas objetivas de interpretação, das quais se destacam: Qual será o formato do relatório? Onde ele será publicado? Como ocorrerá a divulgação da sua publicação?

É de ressaltar que o §1º deste comando legal buscou trazer algum conceito sobre referido relatório, abordando que conterá dados anonimizados, informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, no entanto, a nosso ver, tal disposição exige uma complementação que deve ser feita através de Decreto emitido pelo Poder Executivo.

O sétimo ponto que demanda intervenção do Poder Executivo está presente no § 2º do artigo 5º, o qual é evidenciado pelo seguinte trecho "Nas hipóteses em que for identificada desigualdade salarial ou de critérios remuneratórios, independentemente do descumprimento do disposto no art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho […]".

Aparentemente, a Lei 14.611/2023 criou um direito distinto e completamente autônomo daquele previsto no artigo 461 da CLT, tanto que dispôs ser possível caracterização da desigualdade salarial e de critérios remuneratórios sem que haja violação do preceito que cuida da equiparação salarial, fato que contraria todos os motivos que levaram à promulgação da lei de igualdade salarial.

A nosso ver, tal disposição cria um verdadeiro paradoxo, pois dispõe ser viável a caracterização de desigualdade salarial entre mulheres e homens nos termos da Lei 14.611/2023, sem que reste configurada a violação ao artigo 461 da CLT, que trata da equiparação entre empregados que exerçam funções idênticas. Ou seja, se os salários de ambos estão equiparados, como haverá a desigualdade salarial?

O §2º, do artigo 5º apresenta ainda outro problema de imprecisão conceitual – o oitavo gap. Há a previsão de que a entidade privada infratora deverá apresentar e implementar um "plano de ação para mitigar a desigualdade [salarial], com metas e prazos". A primeira dúvida que surge: quais seriam os elementos desse plano? Se constatada a existência de desigualdade salarial, seria possível a criação de um cronograma para mitigar eventual disparidade, com o estabelecimento de "metas e prazos" para a adequação ao comando legal? A adoção das medidas do artigo 4º, da Lei 14.611/2023 seria suficiente para a execução do referido plano ou seriam necessárias outras medidas? Quais medidas seriam essas?

E mais. O plano deverá ser apresentado a quem? Deverá ser aprovado por algum órgão público, ou bastará a iniciativa da empresa? Ou mais, o plano deverá passar pelo crivo dos "representantes das entidades sindicais e de representantes dos empregados nos locais de trabalho", indicados como partícipes ao final §2º? Como se vislumbra da sua confusa redação, seria garantida a participação de representantes dos sindicatos (sem identificar se profissional, econômico ou ambos) e dos empregados (da mesma forma, sem dispor sobre como se dará esta representação: eleição, indicação etc.) na apresentação e implementação do plano de ação necessário à mitigação da desigualdade com metas e prazos. Contudo, quais seriam as faculdades e limites dessa participação? Em relação ao sindicato, por exemplo, haveria uma paridade no atual posicionamento do STF em relação à participação do sindicato em dispensas coletivas e plúrimas?

E por fim, porém não menos relevante, surge uma dúvida central: como poderá ser considerado cumprido o plano empresarial, "com metas e prazos"? Isto é, a quem caberá definir se houve a implementação do referido plano? O sindicato e os empregados citados ao final do artigo? O Ministério do Trabalho? A própria empresa? Trata-se de mais uma enorme lacuna que demanda a devida especificação e regulamentação.

Enfim, como nossas palavras finais, propomos as seguintes reflexões:

  • A efetiva satisfação da igualdade salarial entre mulheres e homens exige a regulamentação dos pontos ora expostos, sob pena de haver uma enorme insegurança jurídica, tanto para as empresas, quanto para as próprias empregadas que poderiam ser tuteladas pela proteção legal.
  • Como será o Poder Executivo o responsável pela regulamentação, fatores ideológicos podem afetar fortemente o intuito original pelo qual foi concebida a lei, sendo que, diante de conceitos genéricos e dúbios, a regulamentação poderá gerar alterações significativas na alteração legislativa, a depender do direcionamento interpretativo a ser dado aos gaps aqui citados.

Vejamos o que decorrerá e como se desdobrará tão importante tema para as empregadas e empresas.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco—Universidade de São Paulo (USP) e bacharel pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • é mestrando em Direito da Empresa na Universidade de Lisboa, pós-graduado em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito e em Direito do Trabalho pela PUC e bacharel pela Universidade São Judas Tadeu.

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