Opinião

Rodadas interpretativas: uma solução para a harmonia dos Poderes

Autor

  • Herick Feijó Mendes

    é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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10 de outubro de 2023, 17h17

A proposta de emenda à Lei Fundamental, com o objetivo de permitir que o Parlamento possa cassar as decisões da Suprema Corte, renova uma antiga discussão e evidencia que ainda não estamos maduros institucionalmente para o debate. Tenho procurado fazer minhas avaliações buscando compreender um pouco da história e dos contextos em que surgem algumas proposições legislativas.

O Brasil teve uma experiência com a Constituição de 1937 (parágrafo único do artigo 96), em que se permitia, quando necessário ao "bem do povo", que o Parlamento, por dois terços dos votos de cada Câmara, tornar sem efeito a decisão tomada pelo tribunal. O então dispositivo foi revogado pela Lei Constitucional nº 18 de 11 de dezembro de 1945.

De lá até os dias atuais, o Brasil, na atual década, passou por diversos acontecimentos relevantes, sobretudo políticos, que, sem dúvidas, mudaram os rumos institucionais e a percepção social sobre as atribuições dos Poderes, seja para ajustá-los ou para ratificar a importância daqueles que devem guardar a Lei Fundamental.

A Constituição Federal de 1988 confere à Suprema Corte e, em alguns casos, a outras instâncias judiciais, o poder de realizar o controle de constitucionalidade das leis. Isso significa que a Corte tem a autoridade para revisar e, se necessário, invalidar leis que sejam consideradas incompatíveis com a Constituição. No entanto, essa função muitas vezes gera controvérsias significativas, devido ao conflito inerente entre sua função contramajoritária e sua capacidade de autocontenção.

Esse equilíbrio funcional nem sempre é fácil de ser observado, pois a depender da ideologia — quando voltado para uma perspectiva mais radical —, parcela da sociedade interpreta as decisões a partir de suas paixões, além do componente político-partidário envolvido pelos participantes processuais.

Não obstante, é possível perceber, racionalmente, a importância da Suprema Corte na interpretação constitucional (papel contramajoritário), assim como, na mesma medida, da imperativa reavaliação de suas atribuições nas interpretações eminentemente políticas (papel de autocontenção).

Recordo da ADI 5.938 — discutia normativos da CLT —, que obteve como resultado o entendimento de que trabalhadoras grávidas e lactantes não poderiam atuar em atividades insalubres, ou seja, pela força majoritária, afrontas à Lei Fundamental, sem decisões da Suprema Corte, poderiam ser perpetuadas, afinal de contas, as leis são produzidas pelo Parlamento e, acaso houvesse a possibilidade de sustar tal decisão, mulheres e lactantes estariam a desempenhar suas funções mesmo em ambientes insalubres. Por outro lado, a autocontenção da corte também é relevante à própria obediência da Constituição — a exemplo dos polêmicos e inconstitucionais inquéritos instaurados de ofício —, já que a confiabilidade no Poder Judiciário é decorrência da persuasão das decisões judiciais.

É indiscutível que a justeza e conformidade na distribuição organizacional dos Poderes deve ser debatida de maneira séria e responsável e o Parlamento possui um protagonismo distinto, desde que o faça sem impulsividade e submeta ao debate, de fato, perspectivas que fortaleçam a representatividade, as garantias e os direitos fundamentais e o fortalecimento das instituições democráticas.

Entretanto, quando passamos a analisar as oportunidades em que o Parlamento se propõe a alterar a Lei Fundamental para cassar as decisões da Suprema Corte, extrai-se elementos característicos de enviesamento ideológico político-partidário, geralmente vinculados a situações de interesses econômicos e/ou de demandas majoritárias que excluem peremptoriamente direitos de minorias ou grupos vulneráveis.

Uma das primeiras oportunidades em que se visualizou proposição dessa natureza (PEC 33/11) foi promovida pelo deputado Nazareno Fonteles (PT-PI). Diz-se que tal proposição era mais um revanchismo do que realmente uma intenção de discussão séria sobre medidas de equilíbrio institucional, pois naquele período (2011-2012), o processo pertinente ao mensalão estava prestes a ter seu julgamento iniciado na Suprema Corte. Em 2023, o deputado Domingos Sávio – PL/MG, em conjunto com outros parlamentares, apresentou a PEC 50/2023, que, talvez, esteja a percorrer o mesmo caminho e interesse subjacentes da PEC 33/11.

A problemática não é tratar do assunto, mas do contexto que se evidencia nos bastidores da proposição, até porque muitas medidas que saem do Parlamento carecem de compatibilidade da Lei Fundamental, apesar de entender que assuntos complexos da vida social demandam ampla discussão e amadurecimento deliberativo, que afasta, evidentemente, um ajuste via decisão da Suprema Corte.

Acaso uma emenda desta natureza seja concretizada, haverá a fossilização das atuações do Poder Judiciário, importantíssimo na garantia dos direitos fundamentais. Digo isso porque apesar de atualmente o Suprema externar a "última palavra" sobre a interpretação constitucional, isso não impede ou petrifica a atuação legislativa do Parlamento, podendo promover a superação de entendimento por aquilo que se denomina de efeito backlash ou ativismo congressual. Assim, o Congresso Nacional não está impedido de legislar, mas deverá comprovar que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou a decisão do STF no passado não mais subsistem.

As PECs 33/11 e 50/2023 demonstram que o Parlamento brasileiro não possui, ainda, a cultura de se inserir, como um dos agentes essenciais nas rodadas interpretativas da Lei Fundamental, a fim de discutir serena, técnica e continuamente o texto constitucional.

Entendo, portanto, que o diálogo interinstitucional é a principal saída na contínua compreensão da interpretação constitucional. Um sistema de revisão judicial de natureza mais fraca pode promover um diálogo construtivo entre os poderes judiciário e legislativo, já que as decisões judiciais não são absolutamente definitivas e podem ser sujeitas às revisões pelo legislativo, incentivando o parlamento a reavaliar e aperfeiçoar a legislação em questão. Isso fortalece um processo democrático mais transparente e participativo

As decisões proferidas pela Suprema Corte — em sede de controle de constitucionalidade —, não finalizam o debate, mas sim dão início a uma comunicação interinstitucional, vez que o Parlamento dever, doravante, lidar com os argumentos trazidos pela corte e conciliar objetivos sociais e direitos individuais. Portanto, "melhor seria falar em última palavra provisória da rodada procedimental, em que Corte e Congresso possuiriam a legitimidade para serem ativistas desde que engajados no diálogo e no convencimento. A derrubada da última palavra alheia daria reinício ao circuito decisório com ônus argumentativo ao Poder cuja decisão foi substituída" (KOZICKI; ARAÚJO, 2015, p. 126).

Dessa forma, deve-se entender que quando a Suprema Corte decide determinado assunto, o que ela faz é tão somente pôr fim a uma "rodada" na interpretação do texto constitucional (BARREIRO; SOUZA CRUZ, 2021 citando SOUZA NETO; SARMENTO, 2014). Todo processo tem um

O Brasil, como muitos outros países, enfrenta desafios complexos na relação entre seus poderes constitucionais. O caminho a seguir deve ser marcado por um compromisso contínuo com o respeito à Constituição, a separação de poderes e a busca por um sistema de revisão judicial que equilibre as funções contramajoritárias e de autocontenção da Suprema Corte.

As rodadas interpretativas promovem, portanto, uma abordagem constitucional a partir do processo dialógico em constante evolução, crucial para manter a integridade e a vitalidade do Estado de Direito e da persuasão democrática, sem que qualquer instituição casse definitivamente outra ou se compadece com intenções meramente populistas — do PT ao PL — para agradar mitos.

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  • é advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos (UERR), especialista em Direito Público, ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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