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Consultor Jurídico

Carlos Eduardo: Ampliação da participação feminina no Judiciário

8 de outubro de 2023, 6h10

Por Carlos Eduardo Oliveira Dias

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"Um país em que as mulheres só podem ser a sua metade
está condenado a ter apenas metade do seu futuro."

Mia Couto

Em 2018, quando ocupava o cargo de corregedor-geral da Justiça do Trabalho, o ministro Lelio Bentes Corrêa atual presidente do TST publicou texto no qual revelava informações de um levantamento que começara a ser feito naquele ano durante as inspeções correicionais [1].

Na ocasião, apurados os dados de nove dos 24 Tribunais Regionais do Trabalho do país, confirmaram-se as percepções colhidas por pesquisa produzida pelo CNJ, no sentido de que a participação feminina no Judiciário era desproporcional à população do mesmo gênero. Na ocasião, o CNJ apontou que as mulheres representam apenas 38% da magistratura, enquanto os dados da Pnad da ocasião indicavam que, na composição da sociedade brasileira, as mulheres ultrapassavam os 51%.

No texto, o ministro destacou "a importância da implementação de políticas próprias que fomentem a distribuição mais apropriada entre os gêneros no âmbito do Poder Judiciário, de maneira a reduzir a flagrante desigualdade ainda persistente. Nesse sentido, são muito bem vindas as iniciativas tendentes a propiciar foro adequado para a discussão do tema em profundidade, favorecendo a elaboração de políticas eficazes, calcadas em evidências e comprometidas com a transformação da realidade". 

Passados cinco anos, o Censo do Poder Judiciário, produzido pelo mesmo CNJ, mostra uma discreta melhora na distribuição de gênero, de modo que, dentre os respondentes, 40,1% são mulheres e 59,6% são homens [2]. Considerando-se que a proporção feminina na sociedade brasileira permanece sendo de 51,1% [3], a desproporção no Judiciário ainda é gritante.

Por isso, em boa hora, o CNJ decidiu pela modificação da sua Resolução 106, que estabelece parâmetros objetivos para a promoção de juízas e juízes pelo critério de merecimento. A partir da vigência do texto, nas vagas destinadas ao merecimento, os tribunais deverão formar listas exclusivas para mulheres, alternando-a com a lista mista tradicional. Isso sem prejuízo da alternância igualmente necessária para as promoções por antiguidade, critério que não foi alterado.

Não demoraram a surgir críticas das mais variadas a essa resolução, que atacaram tanto a sua constitucionalidade como a própria pertinência material do ato. No primeiro argumento, de caráter formal, temos que a questão não parece se sustentar. Com efeito, o STF já reconheceu que as resoluções do CNJ são atos normativos primários, ou seja, instrumentos jurídicos que retiram o seu fundamento de validade do próprio texto constitucional.

Dentro de sua competência lavrada na Constituição, o conselho pode disciplinar temas relativos à atividade da magistratura, como fez no presente caso, de modo a dar efetividade a preceitos que estão colocados no seu bojo. Afinal, todos sabemos que a paridade de gênero é um dos atributos essenciais da igualdade substancial, e deriva da inserção da mesma garantia em incontáveis instrumentos internacionais que o Brasil assimilou em seu ordenamento. Ademais, a Resolução 255, do CNJ, vigente desde 2018, instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, da qual decorre a resolução recém-aprovada.

Se no plano estritamente formal o CNJ agiu dentro da sua competência e de forma consonante com as demandas emanadas da Constituição, no plano material a resolução é mais do que pertinente. A discrepância da participação feminina na magistratura, quando comparada com o número de mulheres presentes na população brasileira, é um fenômeno tributável aos processos de promoção para acesso aos tribunais.

Dados colhidos pela Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho indicam que a distribuição de gênero nos cargos da magistratura de primeiro grau é equilibrada e consonante com os percentuais populacionais. E isso se explica, naturalmente, porque a forma de acesso é rigorosamente a mesma, ou seja, pelo concurso público de provas e de títulos. Além do mais, nas primeiras fases dos exames para a magistratura, os candidatos não são identificados pelos avaliadores, e o modo como se realiza a prova oral, nos dias de hoje, reduz consideravelmente a possibilidade de práticas discriminatórias.

O problema central está justamente no acesso das juízas ao segundo grau de jurisdição. Há levantamentos que apontam a existência de tribunais compostos por apenas 20 ou 25% mulheres, denotando uma total distorção da representatividade feminina. O mesmo se dá com maior gravidade ainda nos tribunais superiores: atualmente, há 25,95% de mulheres no TST; 18,18% no STJ e apenas uma mulher no STF (9,09%).[4]. A nova resolução, no entanto, não se aplica aos tribunais superiores, mas apenas aos regionais e estaduais.

É fato notório que as promoções por merecimento, em muitos tribunais, continuam sendo conduzidas por critérios não-republicanos, decorrendo as escolhas de preferências eminentemente pessoais dos desembargadores; pela ocupação de determinados cargos ou funções de confiança e, até mesmo, por razões ideológicas. Não é de se estranhar, portanto, que sejam assacadas assertivas consistentes no sentido de que as mulheres e os demais segmentos minoritários da magistratura sejam suprimidos das disputas.

Em breve consulta ao repositório de jurisprudência do CNJ, identifica-se mais de 200 procedimentos instaurados naquele conselho denunciando a violação de regras da Resolução 106. Esse texto teve o mérito de instituir critérios objetivos para essas promoções, mas ao longo dos anos vão sendo criados artifícios para driblar a incidência dos elementos necessários para a aferição daqueles que realmente mereceriam a promoção.

As práticas mais corriqueiras são o rebaixamento ou a ampliação desmesurada de notas de um candidato em face de outro, ou mesmo as mudanças injustificadas de atribuição de notas entre os concursos, ainda que subsequentes, retirando da disputa pessoas que tinham sido bem classificadas em certames anteriores. O pior de tudo isso é que, em muitos tribunais, as notas atribuídas não são acompanhadas da correspondente justificativa exigida pela Resolução 106.

Ocorre com alguma frequência de candidatos altamente produtivos à promoção serem preteridos por outros com baixa produtividade, por exemplo, sem que isso seja minimamente explicado nas justificativas de votos. E os dados estatísticos do conselho com certeza estão imprecisos, pois muitos dos casos não chegam a ele, em razão do receio de juízes e juízas de sofrerem represálias em seus tribunais.

Esse fato que passa ao largo do conhecimento de grande parcela da sociedade é um dos muitos que justificam a adoção de medidas inclusivas como a que nos referimos neste texto. Vimos várias reações à resolução, justificadas pelo argumento de que não ocorre discriminação de gênero no Poder Judiciário, mas isso está longe de ser uma verdade absoluta. É evidente que essas práticas, no mais das vezes, não são explícitas.

A fim de eliminar candidatos e candidatas indesejáveis à promoção, usam-se os subterfúgios permitidos pela própria resolução 106, em que pese todos os esforços no sentido do seu constante aprimoramento. O fato concreto é que os tribunais federais, trabalhistas e estaduais continuam a inserir nas suas listas de promoção por merecimento as pessoas que são de seu interesse, de acordo com as conveniências políticas, ideológicas ou pessoais, e isso naturalmente pode também se sustentar em preconceitos estruturais da sociedade.

Enquanto não houver uma mudança radical de comportamento, mulheres, negros, homossexuais, pessoas com deficiência e outras populações minoritárias dentro da magistratura serão discriminadas nos processos de promoção, como também ocorre com juízes e juízas cujo alinhamento político não coincida com o daqueles que estão no comando dos tribunais.

A resolução, portanto, é um motivo para ser comemorado, depois de uma era de tantos retrocessos sociais. Qualquer política inclusiva deve ser saudada efusivamente, assim como as práticas excludentes devem ser repudiadas com veemência. A sociedade contemporânea, coberta de diversidades e interseccionalidades, não admite mais atitudes tão latentemente preconceituosas, e que se escondem atrás do já superado mito da cordialidade brasileira.

Que o exemplo da Resolução 525 possa ser replicado, e que os tribunais brasileiros compreendam a necessidade de mais participação feminina em seus colegiados, bem assim nos cargos de assessoria e de direção. Que outras políticas inclusivas possam também ampliar a participação de outros segmentos minoritários da magistratura nos colegiados judiciais.  E que a sociedade clame para que, cada vez mais, isso também aconteça nos tribunais superiores, inclusive e, principalmente   no Supremo Tribunal Federal.

 


[1] Igualdade de gênero ainda é uma realidade a ser construída no Poder Judiciário, disponível em https://www.tst.jus.br/web/corregedoria/-/nova-pagina-da-corregedoria-ger-1

[2] Houve, ainda, respondentes que preferiram não informar o sexo (0,3%). A designação da pesquisa se refere à classificação por “sexo biológico”. No entanto, em outro questionamento formulado, a respeito da identidade de gênero, 96,4% se identificaram com o sexo biológico com o qual nasceram (cisgênero) e 2,7% dos(as) respondentes preferiu não informar;, 0,3% se declararam agênero e 0,1% dos(as) magistrados(as) se identificou com o gênero fluído. Isso equivale a dizer que, na percepção dos respondentes, o sexo biológico, para a maioria esmagadora, coincide com sua identidade de gênero. Por isso, usamos essa expressão ao enunciar o resultado da pesquisa.

[4] Por uma questão de justiça, cabe citar que, para a última vaga do TST, atualmente ocupada pela ministra Liana Chaib, foi elaborada uma lista exclusivamente feminina. E, no caso do STJ, o presidente da República indicou Daniela Teixeira para a vaga oriunda do quinto constitucional da advocacia, mas escolheu dois homens para os cargos decorrentes da carreira