Opinião

As bodas de coral da Constituição

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5 de outubro de 2023, 6h32

A celebração de 35 anos de casamento é chamada de bodas de coral, considerando que os corais marinhos levam anos até se constituírem totalmente e representam amadurecimento e fortificação.

Apesar de serem fundamentais para a vida marinha, segundo a Rede Global de Monitoramento de Recife de Corais [1], os recifes estão entre os ecossistemas mais vulneráveis do planeta a pressões antropogênicas, incluindo ameaças globais das mudanças climáticas e da acidificação dos oceanos, além da poluição e pesca predatória.

Spacca
Tal como os corais são essenciais para o biossistema marinho, a Constituição é o coração do ordenamento jurídico de um país.

A Constituição brasileira, que hoje completa 35 anos desde a sua promulgação, foi desejada como o "vigia espera a aurora", nas palavras do grande UlYsses Guimarães. Fruto de muita luta, conseguiu expurgar os anos difíceis da ditadura e levantou a moral do povo brasileiro em defesa da grande transformação social há muito tempo almejada.

Destemida, ampliou direitos, renovou garantias e, pela primeira vez, sob o signo da dignidade da pessoa humana, reforçou a cidadania e a Jurisdição Constitucional, numa proposta democrática nunca vivenciada na história nacional.

O sistema de direitos fundamental é o ponto central da Constituição. A carta de 1988 ampliou as liberdades públicas, proibiu a censura e a licença, em defesa da livre manifestação de expressão individual e coletiva. Garantiu a tão esperada igualdade entre homens e mulheres, proibiu a tortura e o tratamento desumano ou degradante. Tratou racismo como crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.

Foi sob a égide do atual texto constitucional que a saúde, até então tratada como um serviço público, tornou-se direito fundamental de todos e dever do Estado. A educação recebeu dez artigos próprios, minudenciando a responsabilidade dos entes federativos desde a educação infantil até os níveis mais elevados do ensino. A ordem econômica foi convertida em compromissória, vinculada aos valores sociais do trabalho e ao desenvolvimento nacional.

Trata-se da primeira das nossas constituições a contemplar a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao patrimônio cultural e às comunidades indígenas, além das diferentes identidades culturais e étnicas que compõem a nação brasileira.

O constituinte ainda cuidou dos direitos dos mais vulneráveis, sejam eles idosos, mulheres, consumidores ou pessoas com deficiência, abrindo assim a fenda necessária para a adoção de inúmeras ações afirmativas que elevaram o nosso patamar civilizatório nos últimos anos.   

Sob a égide da Constituição da liberdade, foi-se possível reconhecer, por decisão judicial, a união homoafetiva como verdadeira família, reforçando o compromisso de todos na construção de uma sociedade mais fraterna e respeitosa com as diferenças.  

A Constituição também voltou os seus olhos para a proteção do regime democrático. Sob o fundamento do pluralismo político, concedeu o direito de voto ao analfabeto, ampliou o objeto da ação popular para contemplar a sua defesa da moralidade administrativa e do meio ambiente, consagrou o voto direto, secreto, universal e periódico como cláusula pétrea, além de garantir a liberdade de imprensa, um dos baluartes da democracia.

A despeito de tantos avanços que merecem ser comemorados, ainda que apresentados aqui de forma muito sucinta, os desafios são incontáveis.

A Constituição brasileira, segundo critério ontológico proposto pelo jurista alemão Karl Loewenstein, pode ser classificada como nominal, ou seja, aquela que ainda não conseguiu cumprir todas as suas promessas e, o descompasso entre o que é afirmado no texto e vivenciado, principalmente pelos mais necessitados, é desolador. 

É certo que temos muito a comemorar, mas, da mesma forma que os corais, a Constituição também sofre sérias ameaças, principalmente por aqueles que deveriam defendê-la e assumiram os seus postos jurando amor à pátria.

 

 


[1] A Global Coral Reef Monitoring Network (GCRMN), criada em 1995, é uma rede de cientistas, gestores e organizações que monitoram a condição dos recifes de coral em todo o mundo, com o objetivo de fornecer a melhor informação científica disponível sobre o status e as tendências dos ecossistemas de recifes de coral para sua conservação e manejo.

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