Opinião

Ensaio sobre o direito "líquido"

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4 de outubro de 2023, 15h55

A Filosofia do Direito [1] pode ser útil para ajudar a interpretar o Direito da maneira necessária, para que este tenha o alcance e a atuação adequadas, levando em conta a rápida evolução social. Pode torná-lo também mais eficiente na proteção dos interesses, principalmente na atual sociedade brasileira pluralista — até mesmo por ser o Poder Legislativo moroso ao ponto de não acompanhar o surgimento de situações jurídicas de forma a tratá-las de maneira mais específica, autorizando o uso de princípios para que as decisões judiciais sejam eficazes, tornando o Direito, portanto, um meio para a busca da justiça. Afinal, não é a sua característica ser fixo, estático, concretizado somente pela lei, mas sim líquido, flexível, elástico, protegendo direitos que vão além dos interesses de determinada classe ou atores sociais [2].

Em que pese se pensar primeiramente em direito líquido como sendo um dos requisitos do mandado de segurança elencado no artigo 5º, inciso LXIX da Constituição, o direito líquido, em conformidade com a conotação dada por Bauman na sociedade descrita em seus livros, modernidade líquida [3], vigilância liquida [4], amor liquido [5] e medo líquido[6], leva a refletir o Direito como objeto de mudança e de acompanhamento das progressões ou regressões sociais, principalmente quanto aos comportamentos e interpretações da sociedade sobre certas condutas, não alcançadas e estudadas juridicamente de maneira efetiva.

Para entender essa mudança social e seus efeitos sobre o Direito, levando em conta que este é uma ciência social aplicada e que acompanha a evolução da sociedade [7], justamente para proteger o que ela fixa como necessário à vida digna [8], é que a filosofia acaba sendo utilizada, dando aos intérpretes a base de entendimento suficiente e o aprofundamento para que os direitos, nessa sociedade plural, alcancem a efetividade [9].

Percebendo que o Direito não é somente lei e justiça e sim um fenômeno dialético em movimentação, absorvendo toda a cultura, interesse e realidade social externalizada dentro de certos momentos, é que a filosofia ganha força, para auxiliar o intérprete a resolver problemas, até então não analisados.

O Direito não é corporificado, não possui estrutura, é uma manifestação da realidade e por isso precisa ser efetivo, interpretado e aplicado, levando em conta questões sociais, históricas e relacionadas à evolução da sociedade, até mesmo, por exemplo, por existir situações que antigamente causavam sérias reflexões e que hoje são reconhecidas como comuns, sem problemas morais ou comportamentais. Ainda, como o Direito disciplina a convivência humana, algumas vezes pode proteger comportamentos que ferem até mesmo os seres humanos, não sendo efetivo ao ponto de concretizar direitos fundamentais [10], como a liberdade.

Assim, necessário se faz utilizar-se da filosofia como instrumento para a análise de questões de existência e de justiça, auxiliando na interpretação do Direito, para que a sociedade e o Direito atuem para buscar o bem comum coletivo, isto é, racional, valorativo e justo.

Trazendo por esse ponto, essa necessidade ainda é observada com a realidade social vivenciada hoje, onde as relações sociais são líquidas, não duradouras, mutáveis, isto é, não enraizadas em conceitos e contextos sociais concretizados com o tempo [11], piorados pela evolução tecnológica.

Percebe-se que a individualidade na sociedade de hoje não persiste, não é real, pois a sociedade chega até mesmo a consumir imagens e sinais, reproduzindo as ideias que são vendidas pelas redes sociais, onde o ser humano é medido pela amplitude do fluxo de mensagens que produz e não em seus ideais naturais, fixando valores através de simulacros e simulações, como tratou Jean Baudrillard em seu livro, com o mesmo tema [12].

Desta forma, necessita-se de um Direito flexível [13], capaz de lidar com os problemas do cotidiano com um certo grau de maleabilidade e aprofundamento, com a utilização de princípios capazes de proteger os direitos e buscas sociais, que algumas vezes são diversos dos antigamente protegidos.

Com a morosidade do Poder Legislativo em legislar sobre determinados temas com a velocidade que eles devem ser tratados, o Direito viu-se desamparado, ao ponto de precisar o Poder Judiciário da utilização de princípios, para que pudesse cumprir com a sua função, não modificando direitos, mas sim tornando-os aptos à proteção da interesses legítimos por meio de uma justiça não temporária, volúvel e que a todo tempo precisa ser modificada.

Por essa razão, o Direito precisa atingir a todos e da forma mais eficaz possível, tendo como finalidade a sua efetividade na pluralidade social [14] vivenciada hoje, para que a vida digna seja alcançada.

Assim, apresenta-se o direito líquido como uma definição inicial para o uso pelo Poder Judiciário, levando em conta a Filosofia do Direito com seus conceitos, somado a atual contextualização do Direito e da sociedade e a liquidez de Bauman, para a busca da justiça, seja ela particular ou universal, como definiu Aristóteles [15], pois o Direito não é somente o que é trazido pela lei ou fixado pelo Poder Judiciário, mas sim o que a sociedade vivencia e aponta como Direito.


Referências

Alves, A. C., Comparato, F. K., Telles Júnior, G. da S., Grau, E. R., Lafer, C., & Ferraz Júnior, T. S. (2004). O que é a filosofia do direito? Barueri, SP: Manole.

BAUMAN. Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2001.

BAUMAN. Zygmund. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2014.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Editora Antropos, 1991.

POSNER, Richard. Perspectivas filosóficas e econômicas. In: Para Além do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

RAMOS. André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva Jur. 2023.

ROULAND. Norbert. Nos Confins do Direito: Antropologia Jurídica na Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SARMENTO. Daniel. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. Editora Fórum. 2ª Edição. 1ª Reimpressão. 2019. Belo Horizonte.

SARMENTO. Daniel. NETO. Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. Editora Fórum. 2ª Edição. 1ª Reimpressão. 2016. Belo Horizonte.

SOUZA, J. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009


[1] Alves, A. C., Comparato, F. K., Telles Júnior, G. da S., Grau, E. R., Lafer, C., & Ferraz Júnior, T. S. (2004). O que é a filosofia do direito? Barueri, SP: Manole.

[2] SOUZA, J. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

[3] BAUMAN. Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro. Editora Jorge Zahar. 2001.

[4] BAUMAN. Zygmund. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro. Editora Jorge Zahar. 2014.

[5] BAUMAN, Zygmund. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

[6] BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008.

[7] POSNER, Richard. Perspectivas filosóficas e econômicas. In: Para Além do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

[8] SARMENTO. Daniel. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. Editora Fórum. 2ª Edição. 1ª Reimpressão. 2019. Belo Horizonte.

[9] SARMENTO. Daniel. NETO. Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. Editora Fórum. 2ª Edição. 1ª Reimpressão. 2016. Belo Horizonte.

[10] RAMOS. André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva Jur. 2023.

[11] BAUMAN. Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro. Editora Jorge Zahar. 2001.

[12] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Editora Antropos, 1991.

[13] ROULAND. Norbert. Nos Confins do Direito: Antropologia Jurídica na Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[14] SOUZA, J. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

[15] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2002. Pg. 108-109.

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