Garantias do Consumo

Responsabilização de plataformas segundo STJ: aplicação-fornecedora

Autores

  • é doutor e mestre em Direito pela UFRGS especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra e em Direito Comparado dos Contratos e do Consumo pela Université de Savoie Mont Blanc pós-doutorando em Direito pela UFF e em New Technologies Law and Social Sciences pela Università "Mediterranea" di Reggio Calabria professor e assessor no Comitê Estratégio de Proteção de Dados Pessoais do MPRJ e diretor de ecommerce e plataformização do Brasilcon.

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  • é advogado sênior da área de Direito do Consumidor do escritório Trench Rossi Watanabe mestre em Direito pela Stanford University e em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) pós-graduado em direito público pela Escola Superior do MP/SP e pós-graduando em direito do consumidor pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).

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4 de outubro de 2023, 8h00

Que plataformas são um dos agentes sociais mais proeminentes e poderosos da atualidade ninguém tem dúvidas. As razões deste papel central exercido por elas contemporaneamente são diversas e remontam, pelo menos, à década de 1990. Foi a partir deste período que, devido a escolhas políticas, jurídicas e econômicas, se possibilitou com maior intensidade a exploração comercial da internet, abrindo espaço para o desenvolvimento e o aprimoramento de múltiplos modelos de negócios, adaptados ou nativos digitais [1].

Esses modelos são diversos e comportam classificações igualmente diferentes. Por exemplo, pode haver comércio eletrônico entre empresas (B2B) e entre fornecedores e consumidores (B2C)  que são modos "tradicionais". Mas com a plataformização  fenômeno referente à interposição de uma camada de plataformas em todos os âmbitos da experiência humana, especialmente no que tange ao consumo , as relações jurídicas que se estabelecem na economia digital passaram a ficar mais complexas, consagrando "novas" atuações, "novos" atores e "novos" arranjos comerciais e contratuais [2].

No cerne da novidade, encontra-se a estrutura dessas interações que culminam na contratação de produtos e serviços. Será comum, portanto, que a relação tenha não dois polos (como na B2B ou na B2C), mas três. Ou seja, as relações havidas entre as partes será triangular: quem oferece produto ou serviço, a plataforma e quem contrata, com configurações variáveis. Se pensarmos em consumo compartilhado, temos a plataforma que viabiliza, organiza e controla a relação de cunho econômico subjacente entre duas pessoas (C2B2C); no caso do trabalho por aplicativos, será uma pessoa natural prestando serviços geralmente para empresas por intermédio de um portal (C2B2B) [3].

Marketplaces virtuais não fogem dessa mentalidade. Trata-se de fornecedores que se utilizam de uma plataforma, aproveitando-se de sua marca e de seu prestígio (leia-se: a confiança dos consumidores como um ativo comercial) para ofertar ao mercado produtos e serviços de maneira centralizada, possibilitando, com isso, um maior alcance do público e do nicho que pretendem atingir. Daí que se tem um modelo B2B2C: do fornecedor direto, à plataforma, ao consumidor destinatário final. Este é um exemplo da racionalidade store-in-store digital que, efetivamente, traz benefícios aos consumidores, como maior comodidade na comparação de preços, avaliações de produtos e serviços mais robustos, maiores opções de escolhas, pagamentos pretensamente seguros, logística integrada e entrega mais rápida e assim por diante.

Mas também traz maiores riscos. Verificação da identidade do fornecedor direto, formas de resolução de controvérsias, atendimento facilitado, assimetrias informacionais e a identificação do responsável por eventual reparação em caso de danos são alguns exemplos. Em outras palavras, além das vantagens, há uma série de situações em que será preciso aprofundar e sofisticar a hermenêutica e a metodologia de aplicação de leis aos casos concretos que sejam levados ao Poder Judiciário  como é a responsabilidade civil  para que o consumidor vulnerável encontre o amparo legal do qual é merecedor por determinação constitucional (artigo 5º, XXXII, CF).

Ausente legislação específica e a atualização do CDC na matéria, aos magistrados e aos tribunais foi dada a tarefa de definir os parâmetros para compreender e determinar pela responsabilização de uma plataforma de marketplace quando houver algum dano ao consumidor. Não é empreitada fácil, pois a multimodalidade da economia digital, por vezes hibridizando em um mesmo locus diferentes modelos de negócio e dificultando saber a qualificação jurídica das partes contratantes, pode levar a compreensões menos ou mais protetivas. A questão principal, por mais que o tema seja complexo, é simples: integra ou não integra a cadeia de fornecimento a plataforma de marketplace que oferece produtos e serviços para fins de responsabilização objetiva e solidária nos moldes do CDC?

Uma linha de entendimento segue uma análise contextual na interpretação do conceito de fornecedor  baseado não na noção de vulnerabilidade do agente econômico, por óbvio, mas na de atuação, o que está em consonância com o conteúdo do artigo 2º, VI, do Marco Civil da Internet, que dispõe sobre a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, e que parece estar sendo seguida pelo Superior Tribunal de Justiça.

O substrato do caso que deu origem ao acórdão do Recurso Especial n. 1.836.349-SP, aqui comentado, é bastante comum nas dinâmicas online. Por intermédio de uma plataforma de marketplace bem estabelecida no cenário nacional, consumidores adquiriram um carro, depositando valores em conta de pessoa física sem tomar medidas de diligência em realizar consultas em registros a respeito do automóvel e dos vendedores, tornando-se vítimas de fraude. Com isso, ingressaram com uma ação, incluindo a plataforma no polo passivo, por entenderem que ela fez parte da cadeia de fornecimento. Na primeira instância, a plataforma foi condenada solidariamente ao pagamento dos valores em favor dos autores; na segunda, o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu essa condenação, compreendendo que a sua atuação se tratava de um mero site de buscas.

Importante ressaltar que não se trata de perquirição acerca da natureza da relação jurídica do consumidor com a plataforma nos serviços em si que presta, visto que pacífico se tratar de relação de consumo com todos os consectários da aplicação do CDC. Como constou no acórdão, "a relação da pessoa que utiliza provedor de serviço de busca de mercadorias à venda na internet sujeita-se aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, ainda que o serviço prestado seja gratuito, por se tratar de nítida relação de consumo, com lucro, direto ou indireto, do fornecedor".

A controvérsia levada ao STJ foi justamente saber se a plataforma, que disponibiliza espaço para anúncios de mercadorias e serviços, faz parte da cadeia de consumo da relação subjacente, nos moldes do artigo 3º e 7º, § único, do CDC. Do acórdão, é possível extrair dois tipos de atuação, a seguir apresentados, os quais podem ocorrer, inclusive, simultaneamente no mesmo provedor de aplicação.

1) Atuação facilitadora:  uma característica marcante das plataformas de atuação facilitadora é a sua natureza de anúncios e não de intermediadoras dos negócios jurídicos que ocorrem em seu ambiente virtual. Ao contrário de intermediar as transações, essas plataformas oferecem ferramentas de pesquisa e filtragem, permitindo que os consumidores encontrem produtos e serviços de acordo com suas preferências. A contratação, portanto, é realizada diretamente entre o fornecedor e o consumidor, sem a ingerência da plataforma.

Essa abordagem de não intermediar contratos traz consigo algumas implicações legais. Como atuam como meros anunciantes, elas não assumem, em princípio, a responsabilidade pelas obrigações celebradas entre as partes. Isto é, a plataforma não garante o sucesso do negócio jurídico, não se responsabilizando por eventuais fraudes ou descumprimentos contratuais por parte dos fornecedores. No entanto, poderão ser responsabilizadas quando forem identificadas falhas nos serviços da própria plataforma, como atos próprios aptos a dar causa ao dever de indenizar.

Argumento bastante enfatizado é que a simples exposição de produtos e serviços pode ser comparada a uma página de classificados online. Essas plataformas não determinam os preços ou a avaliação das características dos produtos e serviços oferecidos, limitando-se a fornecer o espaço de um dado anúncio que é alcançado pelo consumidor conforme os as suas necessidades. Outro ponto relevante é a forma da remuneração da plataforma: diferentemente das de intermediação, que frequentemente cobram comissões ou taxas sobre as transações realizadas, as plataformas facilitadoras geram receitas por meio de anúncios publicitários e do valor econômico dos dados pessoais coletados durante a jornada do consumidor. Isso significa que os fornecedores pagam pela visibilidade de seus produtos e serviços, independentemente de eventual garantia do sucesso das negociações.

B) Atuação intermediadora: ao contrário das plataformas facilitadoras ou de anúncios, que apenas facilitam a exposição de produtos e serviços, as plataformas intermediadoras assumem um papel mais ativo, estabelecendo uma conexão direta entre consumidores e fornecedores e, muitas vezes, influenciando profundamente o processo de contratação. Uma característica distintiva das plataformas intermediadoras é sua capacidade de comercializar bens de terceiros, servindo como ponto de encontro virtual onde uma ampla gama de produtos e serviços é disponibilizada para os consumidores. No entanto, o que realmente diferencia essas plataformas é a forma como elas interferem na dinâmica de contratação entre as partes envolvidas.

Em alguns casos, as plataformas intermediadoras adotam uma abordagem de intervenção parcial. Nesse contexto, a plataforma atua como um facilitador inicial da negociação entre consumidores e fornecedores. Ela fornece o espaço virtual onde essas partes podem se encontrar, explorar produtos e serviços, e até mesmo iniciar a negociação. Em outras situações, a intervenção das plataformas intermediadoras é total. Nesses casos, a plataforma não só inicia a negociação como também a conduz até a conclusão, estabelecendo preços e medidas de segurança e de qualidade, como avaliações e ranqueamentos, além de outras atuações que extrapolam a noção de simples anúncio. Isso implica que a plataforma não apenas conecta as partes interessadas, mas também controla e facilita todos os aspectos do processo de contratação, incluindo pagamento, entrega e possíveis resoluções de disputas.

A escolha entre uma intervenção parcial ou total muitas vezes depende da estratégia de negócios do marketplace, do tipo de produtos ou serviços oferecidos e das expectativas dos consumidores. A intervenção parcial pode ser preferível em cenários em que a plataforma visa criar um ambiente de descoberta e conexão, mas não deseja assumir o controle total das transações. Por outro lado, a intervenção total pode ser adotada quando a plataforma busca criar um ambiente altamente controlado e de confiança para os consumidores, onde todas as etapas do processo de contratação são conduzidas dentro de sua infraestrutura, mesmo que o cumprimento do avençado se dê de forma "analógica".

Outro ponto de diferença destacado foi a forma de remuneração pelo serviço prestado pelas plataformas intermediadoras, a qual pode variar de acordo com o modelo de negócios adotado. Algumas plataformas optam por gerar receita por meio de publicidade, permitindo que fornecedores paguem por maior visibilidade de seus produtos ou serviços. Além disso, nas viabilizadoras, geralmente se cobrarão taxas ou comissões sobre as transações concluídas além da publicidade, sem falar nos dados pessoais que, sabe-se, muitas das vezes servem de contraprestação no mercado de consumo.

O STJ, ao considerar estes argumentos no caso em destaque, forneceu uma sistematização importante, bem como determinou a análise da responsabilidade civil de forma contextual, a partir da atuação em um caso concreto e não abstratamente, haja vista a maleabilidade e a diversidade dos modelos de negócio digitais: "o regime de responsabilidade civil aplicável dependerá da modalidade de comércio eletrônico adotada na operação e, para defini-lo, é imprescindível que o juiz analise as particularidades de cada hipótese concreta".

Conforme se depreende do julgado  e da observação da realidade fática , a mesma plataforma de marketplace pode ser tanto intermediária quanto facilitadora em diferentes contextos. Por isso que uma abordagem one fits all não é a mais aconselhável em análises como essas. O site ou app deverá ter sua responsabilidade definida caso a caso, na medida do nível de intervenção que tenha exercido na relação jurídica subjacente. Daqui, dois resultados possíveis: um, não lhe caberá responder pelo que tenha sido ajustado entre as partes no caso de se tratar de uma atuação meramente facilitadora, ou; dois, a plataforma responderá pelo fracasso do avençado se tiver realizado publicidade sobre isso ou tenha de fato empregado mecanismos que controlem as performances (dentro e fora do ambiente digital), aufiram a qualidade ou promovam a segurança dos consumidores [4].

Ao se considerar essa dualidade, fica evidente que esses provedores não podem ser rotulados nem como um, nem como outro sumariamente sem uma detida análise do caso concreto. O foco central será, como muito bem reconheceu o Superior, a atuação e o controle que a plataforma exerce, diretamente ou remotamente, já que, com isso se cria, se mantém, e se administra a confiança dos consumidores nesses arranjos comerciais, sem a qual não há  sequer  o estabelecimento das relações de consumo.

Todavia, não se deve ter este caso como paradigmático com função de balizar todos os outros que, eventualmente, apresentem situações semelhantes (não idênticas)  já ressaltando a importância na análise da pertinência de se utilizar este julgado em ocorrências análogas. No mais, algumas melhorias argumentativas podem ser mais bem exploradas e esclarecidas em outras oportunidades pelo STJ, como, por exemplo, a irrelevância do meio de cumprimento do contrato, se totalmente ou parcialmente online ou offline, como parâmetro para a análise do controle que a plataforma exerce sobre uma determinada relação subjacente. Ora, no caso de plataformas locomoção privada isso não faz sentido, porque a plataforma controla toda a relação de consumo desde a solicitação do serviço por um consumidor até eventuais reclamações após a corrida.

Do mesmo modo, do ponto de vista da proteção do consumidor, será irrelevante o modo de remuneração do fornecedor, pois esta não é uma condição para a desconfiguração da relação de consumo [5], de maneira que não se deve pautar discussões a respeito da responsabilidade civil nesses casos por este parâmetro também. Bastará, em rigor, que ela extrapole a função de meio para que seja possível reconhecê-la como fornecedora da relação de consumo que se estabelece por seu intermédio, enquadrando-se como fornecedora nos moldes tradicionais do artigo 3º, do CDC  com todas as decorrências lógicas e jurídicas desta qualificação.

A atuação dos marketplaces, por evidente, não é um absoluto entre controle total e controle mínimo. Existe um amplo espectro contínuo que varia de acordo com algumas condições, como o modelo de negócios, a multimodalidade das performances de uma mesma plataforma, os mecanismos de segurança que oferece, garantias de qualidade etc.

Haverá casos difíceis em que nem sempre será possível visualizar, de pronto, o nível de ingerência das plataformas nas relações subjacentes. Entretanto, será sempre possível reconhecer a vulnerabilidade (também digital) dos consumidores, a qual deve ser o guia da harmonização dos interesses dos partícipes das relações de consumo e da coibição de todos os abusos praticados no mercado de consumo  incluindo o argumento comum de ilegitimidade passiva para fins de isenção de eventual responsabilidade.

 

[1] De Gregorio, Giovanni. Digital Constitucionalism in Europe. Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. Passim.

[2] Bergstein, Laís; Seyboth, Ricardo. Desafios e Possibilidades da Conexidade Contratual Formadora dos Marketplaces no Brasil. Revista Científica Disruptiva, volume IV, número 1, p. 39-52, jan-jun/2022.

[3] Veja sobre direito do consumidor e do trabalho, respectivamente: Mucelin, Guilherme. Conexão online e hiperconfiança: os players da economia do compartilhamento e o Direito do Consumidor. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020; Mucelin, Guilherme; Cunha, Leonardo Stocker P. Relações trabalhistas ou não trabalhistas na economia do compartilhamento. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

[4] Martins, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. São Paulo: Gen, 2023 [e-book].

[5] Marques, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. [e-book].

Autores

  • é doutor, com período na Nova de Lisboa, e mestre em Direito Privado pela UFRGS. Pós-doutorando em Direito, Instituições e Negócios pela UFF e em Direito e Novas Tecnologias pela Università degli Studi Mediterranea di Reggio Calabria. Research Fellow no Information Society Law Center da Università degli Studi di Milano. Diretor de e-commerce e plataformização das relações humanas do Brasilcon.

  • é advogado sênior da área de Direito do Consumidor do escritório Trench Rossi Watanabe, mestre em Direito pela Stanford University e em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), pós-graduado em direito público pela Escola Superior do MP/SP e pós-graduando em direito do consumidor pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).

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