A falácia do termo 'litigância predatória'
22 de novembro de 2023, 8h00
A profissão de advogado é uma das mais antigas do mundo. A precisa antiguidade das profissões — com a jocosa exceção da primeira delas — é disputada entre os historiadores, mas é possível dizer, com relativa certeza, que desde os primórdios da relação entre líder e liderado houve a função de defensor. Os primeiros indícios da existência de uma profissão, ou ofício, que consistia no patrocínio e defesa de outrem remontam à Suméria antiga, três milênios antes do nascimento de Jesus Cristo.
É compreensível que essa função exista; afinal, há um claro desbalanço de poder entre aquele que sentencia e aquele que é sentenciado. Deve haver, então, alguém que fala em favor do sentenciado, pleiteando sua causa diante do juiz de forma a apresentar eloquentemente seu argumento e, se possível, reduzir ou impedir sua condenação.
Os romanos davam especial importância à eloquência de seus defensores. Dentre eles, um dos maiores políticos da história do mundo [1], Marco Túlio Cícero, dedicou-se ao ofício com tamanha capacidade que fez com que essa habilidade o levasse a ser senador, cônsul e, quando do assassinato de Júlio César, o único homem com coragem e virtude para impedir o completo caos e destruição da nação romana.
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Três (breves) notas sobre a litigância predatória
A longa introdução do assunto de que trata este artigo é necessária não só para demonstrar o indiscutível valor e prestígio de que já gozou o ofício de advogado, mas também, e principalmente, como forma de chamar ao testemunho esses grandes homens, em cujos ombros hoje põem-se de pé não só os contemporâneos patronos, como também os juízes, promotores, doutrinadores, delegados e operadores do Direito, que participam de um sistema construído sob a inarredável premissa de que todo homem merece defesa, e esta cabe a alguém capaz de prestá-la.
O termo “litigância predatória” é uma junção de palavras com curiosa função; não se trata de um termo jurídico — não deixe o litigância te enganar, leitor; não existe nada que se possa conceituar como litigância predatória. O Código de Processo Civil até fala em litigância de má-fé, capitulada nos artigos 79 a 81. Da primeira leitura, o intérprete pode entender que litigância predatória é o patrocínio de causas envolvendo leões, tubarões ou outras feras.
Não é isso; litigância predatória é o nome dado pelo Tema Repetitivo nº 1.198 à defesa dos direitos dos consumidores em face de atitudes ilegais, inconstitucionais, inescrupulosas e predatórias — talvez daí o nome — praticadas em desaforo ao consumidor e ao microssistema consumerista.
Diz o Tema Repetitivo nº 1.198: “possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como por exemplo: procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários”.
À primeira vista, o leitor pode questionar-se acerca da necessidade do presente Tema Repetitivo; ora, apresentar procuração[2], comprovante de residência[3], prova dos fatos que alega[4] (ou pelo menos evidência suficiente para a apreciação rarefeita[5] dos fatos): estas são todas exigências fundamentais da lei processual pátria já em vigor, de desnecessária repetição, especialmente pela via de Tema Repetitivo.
Em continuada análise, o leitor traria à memória a famigerada “indústria do dano moral”, aquele termo usado para transformar os escalabros contra o consumidor em “mero aborrecimento”, e dar às ofensas um ar de normalidade, como se fossem culpa do ofendido e não fruto direto da ação do ofensor.
Por fim, o leitor compreende: chamar a atuação do profissional do Direito de “litigância predatória” é uma pecha. Mais uma horrorosa pecha lançada contra o consumidor, contra o ofendido, contra o enganado, o lesado na relação de consumo. Além de ter seus direitos aviltados, o consumidor ainda tem que ouvir que a culpa é sua, especialmente num contexto em que os grandes fornecedores desenvolvem suas atividades no mercado de consumo com foco no que a doutrina conceitua como “dano eficiente” [6]. É a cereja do bolo, a última alcunha do consumidor que tenta lutar por seus direitos.
Falar em litigância predatória é colocar o advogado como um charlatão, um desonesto, um predador em busca de carne fresca. Como já citado neste artigo, o Tema Repetitivo não acrescenta nenhuma exigência que já não conste da lei hoje. Ele só dá aos infringentes da lei consumerista um escape, uma nova frase, um bordão para usarem em suas contestações padrão.
Ademais, com tal subterfúgio, o poder judiciário deita-se em berço esplêndido, ao passo que ao invés de buscar meios efetivos de prestação jurisdicional, independente da demanda, se esconde atrás de um termo sem qualquer lógica fonética para simplesmente extinguir processos e dar vasão às demandas.
Há que se frisar que os eventuais problemas éticos de patronos e patronas são de única competência dos tribunais de ética da OAB e por lá devem ser tratados. Agora, reduzir a um predador o advogado(a) que possui elevada demanda ou mesmo atua em vários estados da federação é desconhecer a ausência de limites impostos pelas novas tecnologias, dentre elas o PJe.
Ou seja, a criação do termo nos aparenta mais uma manobra do sistema em resposta às demandas cada vez mais legítimas dos consumidores que estão, dia após dia, sendo lesados e devorados (para entrar na piada do termo) pelas práticas legitimadas pelo Poder Judiciário, que não pune de forma adequada os ataques (mais um termo legal) do sistema fornecedor.
Ademais, a litigância só existe pela preexistência do litígio, ou seja, punir a consequência ao invés da causa é mais uma demonstração de ineficácia do sistema de justiça brasileiro.
Palavras têm sentido. Significante, significado, impostos ao signo que conhecemos como palavra, elas têm correspondente no mundo real. Taxar, estigmatizar, rotular e afins, são práticas conhecidas em sistemas antidemocráticos, e a advocacia não pode jamais aceitar ser rotulada como predadora, sim, pois se existe a litigância predatória, deve necessariamente existir o predador. Não! Isso não colará!
A pauta da vez é chamar de litigante predador aquele que tenta defender seus direitos. Falhando isto, imaginamos, o próximo passo é chamar o consumidor que ver seus direitos — constitucionalmente garantidos! — aviltados é chama-lo de bobo, feio, cara de pastel e mané.
Destarte, como defensores por natureza, temos uma nova batalha na trincheira — ou seria selva — que é a luta contra essa falácia do termo litigância predatória. E saibam todos os que aviltam os consumidores: o espírito de Marco Túlio Cícero resiste nos corações de cada patrono dedicado à defesa não só de seu cliente, mas de toda a Justiça.
[1] Paralelamente à carreira mais influente da política, discutivelmente, de todos os tempos, Cícero inventou a prosa e dominou-a a tal nível que a redescoberta de seus escritos é um dos fatores preponderantes do Renascimento.
[2] Art. 104, Código de Processo Civil;
[3] Art. 77, V, Código de Processo Civil;
[4] Art. 373, Código de Processo Civil;
[5] Art. 300, Código de Processo Civil; Art. 6º, VIII, Código de Defesa do Consumidor.
[6] “Fala-se, outrossim, em dano eficiente e dano ineficiente. Ocorre dano eficiente, quando for mais compensador para o agente pagar eventuais indenizações do que prevenir o dano. Se uma montadora verificar que uma série de automóveis foi produzida com defeito que pode causar danos aos consumidores, e se esta mesma empresa, após alguns cálculos, concluir ser preferível pagar eventuais indenizações pelos danos ocorridos, do que proceder a um recall para consertar o defeito de todos os carros vendidos que lhe forem apresentados, estaremos diante de dano eficiente. O dano ineficiente, por seu turno, é o dano eficiente tornado ineficiente pela ação dos órgãos administrativos do Estado e/ou do Judiciário. Na medida em que o juiz condenar a montadora a uma altíssima indenização, ao atuar em ação indenizatória proposta por um dono de automóvel, vitimado pelo dano causado pelo defeito de produção, estará transformando o dano eficiente em dano ineficiente. As eventuais indenizações que a montadora terá que pagar serão tão altas, que será preferível o recall, por ser mais barato. A questão relativa ao dano ineficiente é equacionar duas questões. Por um lado, o valor da condenação há de ser alto, para que o dano seja de fato ineficiente para seu causador. Por outro lado, deve-se ter em conta que indenização não deve ser fonte de enriquecimento, mas de reparação de danos. O problema é de difícil solução, exigindo do juiz um enorme exercício de bom-senso e, às vezes, de coragem. O legislador poderia pôr fim ao dilema, editando norma, segundo a qual parte do valor da condenação iria para a vítima, a título de reparação pelos danos sofridos, enquanto a outra parte reverteria aos cofres públicos, sendo afetada à utilização em programas sociais.” (FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 11a. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 720)
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