Opinião

O que o tema da redação do Enem nos diz sobre a Justiça?

Autor

  • Maíra de Carvalho Pereira Mesquita

    é mestre em Direito pela UFPE especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

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17 de novembro de 2023, 18h20

Tradicionalmente, o tema da redação do Enem traz à tona um problema social relevante — desafios relacionados a comunidades e povos tradicionais, pessoas com deficiência, controle de dados na internet, racismo, entre outros. O tema escolhido em 2023 — “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” — é o mote para a publicação deste pequeno ensaio.

Historicamente, os homens tinham o papel de provedores financeiros da família, enquanto às mulheres cabia o cuidado da casa e dos filhos. A conjuntura social modificou-se com a inserção feminina no mercado de trabalho e a consequente responsabilidade também pelo pagamento das contas. Não obstante seja um movimento que se iniciou há algumas décadas, a participação de homens e mulheres no mercado de trabalho ainda não é igual — de acordo com IBGE, as mulheres são maioria na população em idade de trabalhar, todavia, entre as pessoas ocupadas, verificou-se a predominância de homens (57%) [1].

Divulgação

Além da dificuldade de inserção e manutenção no mercado de trabalho — estudo aponta que 56% das profissionais já foram desligadas ou conhecem outra mulher demitida após a estabilidade da licença maternidade [2] —, as mulheres recebem remuneração inferior à dos homens. Apesar de serem a maioria com ensino superior completo no Brasil, as mulheres ganham, em média, 75%  da remuneração dos homens [3]: ou seja, não obstante possuírem maior escolaridade, as mulheres auferem renda inferior.

Diante desses dados, pergunta-se: qual a relação entre a “invisibilidade do trabalho de cuidado” e (des)igualdade de participação no mercado de trabalho? Por que ainda vivenciamos discrepâncias no quesito realização profissional/financeira entre homens e mulheres?

A resposta não é simples, mas perpassa necessariamente pelo reconhecimento de que, ao se manter a mulher como principal cuidadora de crianças, pais idosos, familiares doentes, pessoas com deficiência, dentre outros, retiram-se dela oportunidades de crescimento profissional. O “cuidar” não remunerado ocupa grande parte do tempo da mulher em idade produtiva — seja quando ela exerce essa função integralmente, seja quando, em paralelo, trabalha e administra o lar, geralmente com o auxílio de uma outra mulher.

Em outras palavras: apesar da inserção feminina no mercado de trabalho, o dever de cuidado permaneceu sendo majoritariamente uma atribuição (leia-se: dever) das mulheres. Mesmo sem perceber, a sociedade naturaliza que o papel de cuidar cabe prioritariamente (e, em muitos casos, exclusivamente) às mulheres. Inúmeros são os exemplos cotidianos dessa estrutura social, fundada no pressuposto de que a mulher ao cuidar “não faz mais que sua obrigação”, enquanto o homem ao cuidar é um “cara diferenciado”, “pai dedicado”, “filho exemplar” ou algo do tipo.

Essa não é apenas uma impressão pessoal ou mero discurso da mulher do século 21. De acordo com pesquisa do IBGE, o tempo dedicado aos cuidados de pessoas ou a afazeres domésticos é muito maior entre as mulheres — 18,1 horas por semana, enquanto os homens dispensam apenas 10,5 horas semanais. Existe ainda um agravante racial: mulheres pretas ou pardas dedicam ainda mais horas aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos que as mulheres brancas [4].

Ao que parece, o desequilíbrio no sucesso profissional entre os gêneros reforça-se para as mulheres mães. Assim como entre as mulheres mães, reforça-se entre as mulheres brancas e as negras ou pardas. Não se pode negar: existe, de fato, uma interseccionalidade entre machismo, racismo, classismo, e tantas outras formas de opressão. Elas parecem camadas que vão se acumulando em uma verdadeira bola de neve.

O resultado da soma de todos esses fatores é: as mulheres ocupam menos espaços políticos, de poder, e cargos de chefia. O reflexo dessa realidade também está presente no sistema de justiça.

Da participação feminina da Defensoria Pública da União e Poder Judiciário
Na Defensoria Pública da União, segundo relatório elaborado pela Comissão de estudos sobre a carreira, um dos problemas identificados foi a desigualdade de gênero. Segundo levantamento da Assessoria de Planejamento do órgão sobre o perfil de gênero da DPU, 42,2% da carreira é composta por mulheres. Esse percentual diminui proporcionalmente a cada categoria que depende de promoção na carreira: na categoria inicial, a proporção de mulheres é de 45,58%; na categoria intermediária, de 36,61%; e, na categoria especial, as mulheres são apenas 20% [5].

Constatou-se ainda que as mulheres, em média, levam mais tempo para ascender profissionalmente. Em suma, as defensoras públicas não apenas são promovidas em menor número, como, as que conseguem ascender, de regra, levam muito mais tempo que os colegas homens.

Por essas razões, merecem aplausos a publicação da Resolução n. 215 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União (CSDPU), de 15 de setembro de 2023, ao instituir políticas afirmativas de paridade de gênero em estruturas da DPU. Especificamente quanto à disparidade na ascensão na carreira, a Resolução prevê a formação de listas de promoção por merecimento alternadas — mistas e exclusivas de mulheres —, até o atingimento de paridade de gênero na respectiva categoria [6]. A medida inovadora foi noticiada na ConJur [7].

Situação semelhante também aparece no Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou estudo sobre a Participação Feminina na Magistratura. Considerando-se o Poder Judiciário como um todo, constatou-se um aumento significativo da participação feminina na série histórica — saindo de 24,6% em 1988 para 40% em 2022 [8], apesar das variações entre os ramos da Justiça, regiões e grau de jurisdição.

No primeiro grau de jurisdição de maneira geral, segue-se o percentual de 40% de juízas e 60% de juízes, proporção repetida na Justiça estadual. Na Justiça do Trabalho, as magistradas são maioria (51%), enquanto na Justiça Federal representam apenas 32%.  Ao se analisar a presença das mulheres nos tribunais, entretanto, percebe-se uma discrepância ainda maior, pois em todo Poder Judiciário chega-se a apenas 25% de ministras e desembargadoras versus 75% de ministros e desembargadores. Em 2022, identificaram-se vários tribunais compostos exclusivamente por homens, a exemplo do TJ-RO, TJ-AP, TRT-24, TRF-5, TRE-SP, TRE-DF, dentre outros [9].

Para pegar um exemplo emblemático, em toda a história republicana do Supremo Tribunal Federal, apenas três mulheres foram ministras [10], entre 169 ministros. Com a recente aposentadoria da ministra Rosa Weber [11], a cúpula do Poder Judiciário Nacional volta a ter composição apenas uma mulher (Ministra Carmen Lúcia), situação que pode perdurar por bastante tempo se o Presidente da República indicar (mais) um homem para o cargo.

Nesse contexto, importante passo foi dado pelo CNJ na sessão de 26 de setembro de 2023, em que o colegiado aprovou, por unanimidade, a norma de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Poder Judiciário, com a utilização de lista exclusiva de mulheres [12].

Conclusão
O trabalho invisível de cuidado exercido pelas mulheres — tema da redação do Enem 2023 — carrega, sem dúvidas, muitos desafios. O presente texto buscou demonstrar brevemente que atribuir às mulheres tal dever traz consequências diretas sobre as condições de ingresso e permanência no mercado de trabalho, bem como nos espaços de poder.

Tal circunstância está presente também na composição de órgãos do sistema de justiça, tendo sido analisados dados do Poder Judiciário e da Defensoria Pública da União. Em ambos, há menos mulheres que homens de maneira geral; mas há ainda menos mulheres com atuação nos tribunais de segunda instância e superiores. Ou seja, além de menos mulheres ingressarem na magistratura nacional e na DPU, elas encontram mais dificuldades de ascenderem internamente. Sendo assim, as normas relativas à alternância de listas de merecimento exclusivas de mulheres para promoção na carreira recentemente aprovadas pelo CSDPU e pelo CNJ, respectivamente, caminham no sentido de buscar implementar a paridade de gênero nos diferentes espaços de poder.

O primeiro passo para qualquer mudança é o reconhecimento do problema: a desigualdade de gênero no mercado de trabalho é um fato reconhecido e estatisticamente comprovado. A naturalização do dever de cuidado atribuído majoritariamente às mulheres é um dos fatores reconhecidos como causa de tal desigualdade. Já foi dado o primeiro passo; é preciso, portanto, continuar a caminhar em outras direções.


[1] https://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/Trimestral/Fasciculos_Indicadores_IBGE/2023/pnadc_202301_trimestre_caderno.pdf  Acesso em 06 de novembro 2023.

[2] https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2023/05/14/demissao-mulheres-apos-licenca-maternidade-aponta-levantamento.ghtml Acesso em 05 de novembro de 2023.

[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-03/ibge-mulheres-ganham-menos-que-homens-mesmo-sendo-maioria-com-ensino-superior Acesso em 05 de novembro 2023.

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-03/ibge-mulheres-ganham-menos-que-homens-mesmo-sendo-maioria-com-ensino-superior Acesso em 05 de novembro 2023.

[5] Relatório da Comissão de Estudos sobre a carreira da Defensoria Pública da União (DPU)

[6] https://www.dpu.def.br/resolucoes/76938-resolucao-n-215-de-15-de-setembro-de-2023-institui-politicas-afirmativas-de-paridade-de-genero-em-estruturas-da-dpu-e-da-outras-providencias

[7] https://www.conjur.com.br/2023-set-20/conselho-superior-aprova-medidas-paridade-genero-dpu#:~:text=No%20novo%20cen%C3%A1rio%2C%20homens%20e,defensoras%20e%20defensores%20do%20%C3%B3rg%C3%A3o.

[8] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/03/relatorio-participacao-feminina-na-magistratura-v3-20-03-23-ficha-catalografica.pdf

[9] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/03/relatorio-participacao-feminina-na-magistratura-v3-20-03-23-ficha-catalografica.pdf

[10] São elas: Ellen Gracie, Carmen Lúcia e Rosa Weber.

[11] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515000&ori=1#:~:text=Ministra%20Rosa%20Weber%20se%20aposenta,sexta%2Dfeira%20(29). Acesso em 5 de novembro de 2023.

[12] https://www.conjur.com.br/2023-set-26/cnj-aprova-regra-genero-promocao-juizes-instancia

Autores

  • é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos, defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

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