Opinião

Cosip e princípio da afetação: até onde nos leva o conceito de iluminação pública?

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17 de novembro de 2023, 6h38

Luz transportando dados. Rede de comunicação através dos pontos de iluminação pública. A entrega de luz em vias e em bens públicos de uso comum propicia inúmeras possibilidades para o uso do sistema de iluminação pública. Sem alterar o texto da Constituição, quais seriam, então, os limites do conceito de serviço de iluminação pública para que não haja violação ao princípio da afetação no uso da Cosip? Através deste estudo, objetiva-se traçar alternativas aos municípios que ambicionam maximizar o uso da Cosip para a modernização das cidades por meio do sistema de iluminação pública.

Não é difícil imaginar o impacto significativo quando os municípios passaram a utilizar a rede de energia elétrica para fornecer iluminação pública nas vias, praças e demais bens públicos de uso comum. No Brasil, o movimento iniciou-se em Porto Alegre com a instalação de uma centena de luminárias a óleo[1], construindo interessante jornada desde o final do século 18.

Através da Emenda Constitucional n. 39/2002, instituiu-se a contribuição destinada ao Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip). Na qualidade de contribuição, bem se sabe da vinculação ao princípio da afetação, pelo qual as receitas oriundas dessa cobrança possuem destinação certa: no caso da Cosip, vincula-se inteiramente ao serviço de iluminação pública [2]. É dizer: existisse a Cosip na Porto Alegre do século 18, seu uso seria possível para aquisição do óleo e do fusível das luminárias a óleo daquele tempo.

Os limites dessa destinação foram inicialmente testados pelo Supremo Tribunal Federal, que consolidou a importante premissa estabelecida em repercussão geral através do Tema 696, pelo qual reconheceu-se a “validade da destinação de recursos advindos da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública também ao melhoramento e à expansão da rede”. Atualmente, o mercado consolidou-se, através das inúmeras parcerias público-privadas em andamento, no sentido de modernização do parque de iluminação pública através da Cosip (estudo da Associação Brasileira das Concessionárias de Iluminação Pública pode ser conferido aqui).

O debate lege lata a ser posto deriva, portanto, do próprio conceito de iluminação pública. A Agência Nacional de Energia Elétrica estabeleceu, através da resolução normativa Aneel nº 1.000, de 7 de dezembro de 2021 (Resolução 1.000), um conceito amplo ­— todo o ativo de responsabilidade do poder público municipal que tenha como objetivo iluminar vias públicas ou bens públicos de uso comum do povo, excluídas apenas as exceções expressamente previstas em seu parágrafo primeiro:

(…)
§ 1º Não se inclui na classe iluminação pública o fornecimento de energia elétrica que tenha por objetivo:
I – a publicidade e a propaganda;
II – a realização de atividades que visem a interesses econômicos;
III – a iluminação das vias internas de condomínios; e
IV – o atendimento a semáforos, radares e câmeras de monitoramento de trânsito.

Nesse sentido, segundo a única resolução normativa emitida pela Aneel a trazer um conceito de iluminação pública, tudo o que um município erigir para iluminar vias ou bens públicos de uso comum que não se enquadrem nas hipóteses do §1º do artigo 189 acima poderia ser custeado pela Cosip sem afronta ao princípio da afetação.

A construção da Aneel parece seguir o racional que culminou no Tema 696 do STF: um conceito de iluminação pública que avança de mãos dadas à tecnologia não pode sujeitar o gestor público à insegurança do uso da Cosip quando se tratar de iluminar vias ou bens públicos de uso comum.

Funcionando como uma rede, o sistema de iluminação pública propicia inúmeros benefícios indiretos, sendo o mais comum a constatação do seu impacto na diminuição das taxas de criminalidade. Mais do que isso, estudos evidenciam relevante papel na atração de turismo e até na contribuição para o aumento da autoestima dos cidadãos [3].

Justamente por isso que o tema vem sendo construído por municípios que buscam formas legítimas de explorar a Cosip de forma a angariar, através do sistema de iluminação pública, mais benefícios aos seus munícipes[4]. Nas recentes PPPs de iluminação pública, a título exemplificativo, encontra-se a previsão dos módulos individuais de telegestão: hardware e software que permitem não apenas o controle remoto do sistema de iluminação pública[5], mas que abrem um leque para o desenvolvimento de verdadeira rede inteligente de comunicação — mais um passo rumo às smart cities.

Isso permite não apenas o desenvolvimento de atividades relacionadas, como doutrinariamente explorado em análises de Mário Saadi e de Luciano Ferraz, podendo ser conferidas respectivamente aqui e aqui, nesta Conjur. Mas ao próprio uso da Cosip, desde que em estrita relação ao sistema que tem como objetivo a iluminação de vias ou de bens públicos de uso comum, excluídas as exceções da Resolução 1.000. Essa interpretação, bem se sabe, não foi inteiramente testada pelos tribunais de contas e, como bem reforça Ana Paula Peresi de Souza, há riscos em sua aplicação [6]. E, apesar de o caráter inovador sempre enfrentar resistência, parece existir campo à defesa do racional de que, construindo o município um projeto com base no conceito da Aneel de serviço de iluminação pública, o uso da Cosip seria sustentável.

Mesmo havendo diversos projetos e debates sobre o tema em um viés de lege ferenda do texto do artigo 149-A da Constituição, percebe-se a existência de iniciativas já em andamento em alguns municípios que tornariam, em teoria, desnecessária a alteração do texto constitucional. Em comum, medidas mitigadoras como a construção de uma robusta lei municipal, pela qual se permita avançar nas hipóteses concretas de como o interesse local daquele município interpreta o sistema de iluminação de vias e de bens públicos de uso comum.

E as vantagens dessa movimentação são inúmeras. Primeiro, os municípios, apontados como responsáveis pelo sistema de iluminação pública dentro de seus territórios, podem detalhar em sua legislação os usos dos serviços de iluminação pública atualizados com as mais recentes tecnologias e mais aderentes ao interesse público local. Segundo, apesar de ser um caminho possível, a alteração da Constituição em si não seria necessária, caso seja aceita a premissa de que o conceito de serviço de iluminação pública transmuta-se com as novas tecnologias. Terceiro, por se tratar de uma verba afetada, a ampliação da infraestrutura de iluminação pública mostra-se possível com os recursos da Cosip, sem necessariamente onerar ainda mais os contribuintes.

Em inúmeras PPPs, como exemplo, se consolidou o uso das chamadas “iluminação de destaque”, pelo qual a iluminação pública se consubstancia no embelezamento de praças e de monumentos históricos (como pode ser constatado na maioria dos recentes projetos estruturados pela Caixa Econômica Federal e pelo BNDES). Em outros, utiliza-se de elementos de iluminação de vias e de bens públicos com fins festivos — tais como a iluminação pública natalina (municípios como Salvador, Uberaba (MG), Belém (PA) e Jaboatão dos Guararapes (PE), sendo os três últimos já através de uma PPP). Mais recente, passou-se a custear também os serviços de poda de árvore atrelados ao sistema de iluminação pública (como exemplo, a recente PPP de Curitiba).

Pode-se sustentar que substancial parte essas iniciativas estão interpretativamente aderentes ao conceito de iluminação pública da Resolução 1.000.

E isso sem adentrar no mérito de novas tecnologias. Na última década, a título exemplificativo, estuda-se a possibilidade de transferência de dados através da luz emitida. Se a mesma luminária provê iluminação e transfere dados, haveria se falar em violação ao princípio da afetação a aglutinação desses objetos em uma PPP custeada exclusivamente pela Cosip? Parece negativa a resposta, em especial frente à analogia com o racional vanguardista construído pelo STF no Tema 696.

A estruturação de uma lei municipal que, atenta aos limites da Resolução 1.000, detalha e enumera as hipóteses de uso da Cosip com base em uma visão moderna de sistema de iluminação pública (sempre acompanhando novas tecnologias), revela-se como um primeiro passo. Um passo que permite mitigar o risco do gestor municipal frente aos limites do uso da Cosip, e parece fornecer ferramentas suficientes para abraçar as iniciativas como a iluminação pública de destaque (praças e prédios históricos), a iluminação pública festiva (em vias e em bens públicos de uso comum) e o sistema de poda de árvores atrelado à iluminação. Se o conceito de iluminação pública avança com a tecnologia, portanto, essas iniciativas mostram que isso se reflete diretamente na Cosip, permitindo uma interpretação ampliativa sem violação ao princípio da afetação.  Mais um capítulo do corolário mais testado da inovação: aquele que obriga a “rasgar e a remendar” conceitos.


[1] ROSITO, Luciano Haas. Desenvolvimento da iluminação pública no Brasil. Revista O Setor Elétrico. São Paulo (SP), p. 30-35, jan. 2009.

[2] Sobre o tema, conferir importante análise em BENETON, Beatriz Machado; MONDO, Fabiana da Rosa; ZAPPELINI, Thiago Mondo. Tredestinação dos recursos da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública (COSIP): a responsabilidade criminal do agente político e a caracterização de ato de improbidade administrativa. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, Florianópolis, v.11, n.24, p. 169-194, jan./jun. 2014.

[3] FERREIRA, Adriana. As contratações de serviços de iluminação pública sob a ótica do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo, v.4, n.25, p. 163-205, jul./ago. 2016.

[4] Sobre o tema, interessante análise pode ser encontrada em PINHO, Clóvis Alberto Bertolini de. Os desafios da experiência brasileira com projetos de Parceria Público-Privada (PPP) de iluminação pública e cidades inteligentes (smart cities): Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v.17, n.66, p.9-31, abr./jun. 2019.

[5] Dentre outras funcionalidades, o sistema de telegestão possibilita a verificação em tempo real das luminárias (se acesas ou apagadas), a sua dimerização, o seu acendimento ou desligamento remoto, entre outros.

[6] SOUZA, Ana Paula Peresi de. Concessões de iluminação pública e serviços de cidades inteligentes. Reflexões sobre receitas acessórias, contratação direta e destinação da contribuição de iluminação pública: Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v.21, n.82, p. 9-44, abr./jun. 2023.

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