Opinião

O federalismo cooperativo aplicado ao licenciamento ambiental

Autores

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

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  • Frederico Rios Paula

    é procurador federal da AGU (Advocacia-Geral da União) atuando na Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (PFE/ICMBio) desde 2016. Mestrando em Direito Público e pós-graduado em Direito do Estado pela Uerj.

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  • Felipe Pires Muniz de Brito

16 de novembro de 2023, 20h15

O Acordo de Cooperação, previsto no artigo 4º da Lei Complementar 140/2011 (LC 140), pode servir como importante instrumento para implementação prática do federalismo cooperativo em matéria ambiental. Dessa forma, os órgãos e entidades que atuam na defesa do meio ambiente podem e devem se valer desse importante instrumento de cooperação institucional.

O constituinte optou por repartir a competência administrativa ambiental de forma comum entre todos os entes da Federação (artigo 23, III, VI e VII – CF/88), que, mesmo autônomos entre si (artigo 18, caput – CF/88), precisam promover esforços mútuos na construção de políticas públicas. Foi construído o modelo federativo de cooperação ecológica [1] mediante “quadro normativo altamente especializado e complexo” [2] relacionado com o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e pautado na Política Nacional do Meio Ambiente e nas demais normas ambientais.

A ideia de colaboração mútua é inerente ao federalismo [3], de forma que se deve buscar ao menos uma atuação cooperativa mínima e indispensável. Os entes federativos precisam prezar, neste modelo, por ações mais ativas, interconectadas e baseadas na racionalidade, visando assim evitar desperdício de recursos estatais [4] e desnecessários e desgastantes conflitos positivos ou negativos de competência.

A mútua cooperação, porém, não pode levar a equivocada ideia de atuações sobrepostas dos entes federativos no mesmo assunto e nem mesmo na possibilidade de múltiplos licenciamentos ambientais capazes de trazer insegurança jurídica ao sistema como um todo. As ações cooperativas precisam ser coordenadas para maximizar a eficiência da Administração Pública e a consequente maior proteção ao meio ambiente.

No intuito de regulamentar a questão, o constituinte determinou que por lei complementar seria regulamentada a competência administrativa comum em matéria ambiental (artigo 23, parágrafo único – CF/88), o que somente ocorreu com a edição da LC 140 [5]. A lógica colaborativa é um dos pilares da referida norma que possui como objetivo “harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente” (artigo 3º, III), dispõe sobre atuações supletiva (artigos 2º, II, 14, § 3º e 15), subsidiária (artigos 2º, III e 16) dos entes federativos e a possibilidade de manifestação dos demais interessados de maneira não vinculante em processos com o ente licenciador único (artigos 13, caput e § §1º e 2º).

O advento da LC 140 trouxe um cenário mais bem delineado e constituiu uma esperança para um ambiente de maior estabilidade e segurança jurídica. Contudo, passada mais de uma década, diante do que se assiste na persistente judicialização de licenciamentos ambientais, o tema necessita ser revisitado. Há uma verdadeira atuação desconcertada entre os órgãos ambientais, que apesar de terem a seu dispor instrumentos de parceria como os consórcios, convênios e acordos de cooperação técnica, salvo honrosas exceções, deles faz pouco uso, fomentando incertezas e respostas díspares ou contraditórias ao empreendedor e à sociedade de forma geral [6].

Para avançar no tema, torna-se fundamental o aprimoramento dos mecanismos de diálogos institucionais entre órgãos ambientais no plano do federalismo de cooperação em prol da eficiência do Estado e das políticas públicas ambientais. Em acréscimo, o princípio da integração “reconhece o caráter transversal do ambiente e a necessidade de todas as políticas públicas, planos, programas ou atividades que possam causar impacto adverso no meio natural” [7].

Nota-se que a LC 140 tanto dispôs sobre a harmonização entre os entes federativos, na esteira do que estabeleceu a Carta Maior, como apresentou caminhos por meio de instrumentos jurídicos para aplicação prática do federalismo de cooperação ecológico. Estabeleceu como instrumentos de cooperação institucional “convênios, acordos de cooperação técnica e outros instrumentos similares com órgãos e entidades do Poder Público” (artigo 4º, II), isso para não falar nos consórcios públicos, na delegação de atribuições e na delegação da execução de ações administrativas de um ente federativo a outro (artigo 4º, I, VI e V).

No julgamento da ADI 4.757-DF [8], o STF indicou que a LC 140 “logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo” e consagrou o entendimento sobre o princípio da subsidiariedade. Segue transcrição de trecho da ementa do referido julgado:

“8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos artigos 14, §4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. (…). 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa.”

Ao consagrar de forma unânime o federalismo ecológico [9], o julgamento da ADI 4.757-DF reforça o entendimento aqui exposto de que a LC 140 prioriza a implementação de “arranjos cooperativos” em prol do meio ambiente. A norma pretendeu encerrar a discussão de multiplicidade de licenciadores ao estabelecer critérios de competência, trazendo assim maior segurança jurídica ao sistema normativo-ambiental e otimizando a máquina pública.

Um exemplo de aplicação dos conceitos de federalismo de cooperação ecológico e do princípio da integração é a possibilidade já mencionada de manifestação do órgão interveniente em processos de licenciamento ambiental, não obstante a LC 140 tenha instituído o licenciamento ambiental em um único nível federativo (artigo 13, caput e §1º). Na mesma linha colaborativa, o artigo 36, caput e § 3º da Lei 9985/2000 prevê a participação do ICMBio, enquanto órgão interveniente, quando for possível afetar Unidades de Conservação e suas Zonas de Amortecimento.

É preciso, portanto, uma visão sistêmica do processo de licenciamento ambiental, no intuito de contribuição e não uma atuação sobreposta e em descompasso com o órgão ambiental licenciador [10]. Diante de tais perspectivas e da relação de horizontalidade dos integrantes do Sisnama, cabe considerar a possibilidade de celebração de Acordos de Cooperação Técnica entre órgão licenciador e órgão ou órgãos intervenientes, com base no artigo 4º, II combinado com o art. 3º, II da LC 140 [11].

Com fundamento no federalismo de cooperação ecológico, no princípio da integração e nas normas relativas à proteção ambiental, o ICMBio propôs ao Instituto Estadual do Ambiente (INEA), órgão ambiental do Estado do Rio de Janeiro, um Acordo de Cooperação Técnica para nortear os processos de licenciamento ambiental em âmbito estadual com impactos em Unidades de Conservação federais. Nesse documento, o objetivo é maximizar a eficiência dos processos que demandem a participação do ICMBio como interveniente, mediante regras claras e previamente estabelecidas, e com prazos definidos.

Na proposta, ainda em processo de aperfeiçoamento, tanto o ICMBio como o INEA abordam questões como procedimentos relativos ao licenciamento ambiental de empreendimentos sujeitos a EIA/Rima, não sujeitos a EIA-Rima ou que impactem cavidades naturais subterrâneas. Igualmente, são estabelecidos procedimentos relativos à solicitação de manifestação técnica envolvendo espécies ameaçadas de extinção, autorizações para supressão de vegetação e para captura e coleta de fauna, bem como para acompanhamento de autorizações e de comunicação entre os órgãos. A inspiração foi a Instrução Normativa Conjunta 8/2019, que estabelece tais procedimentos na relação entre ICMBio e Ibama. 

A proposta estabelece que, após análise técnica, o ICMBio, no que se refere à Autorização para Licenciamento Ambiental (ALA), deve se posicionar, motivadamente, da seguinte forma: 1) pela emissão da autorização; 2) pela exigência de estudos complementares, desde que previstos por Instrução Técnica/Termo de Referência; 3) pela incompatibilidade da alternativa apresentada para a atividade ou empreendimento com a Unidade de Conservação federal ou 4) pelo indeferimento da solicitação. O olhar do ICMBio deve ficar restrito à avaliação dos impactos do empreendimento em Unidade de Conservação federal ou sua Zona de Amortecimento e aos objetivos de sua criação, observando-se o que dispõe o respectivo plano de manejo, devendo observar, portanto, uma espécie de pertinência temática. O intuito é fazer valer a Resolução Conama 428/2010, que dispõe sobre a participação do órgão responsável pela administração de Unidade de Conservação no âmbito do licenciamento ambiental.

A iniciativa vai ao encontro do Decreto Estadual 46.890/2019, do Rio de Janeiro, que dispõe sobre o Sistema Estadual de Licenciamento e demais Procedimentos de Controle Ambiental (SELCA). Nele, há previsão expressa da possibilidade do Inea “celebrar acordo de cooperação técnica com os órgãos intervenientes e demais interessados, a fim de racionalizar o licenciamento ambiental” (artigo 35, §5°). Mesmo que ainda não finalizado, o exemplo do Acordo de Cooperação Técnica em tratativas entre o ICMBio e Inea possui o propósito de lançar luz sobre o tema para fomentar a ampliação dos diálogos interfederativos em matéria ambiental e a efetiva aplicação prática do federalismo de cooperação ecológico e do princípio da integração. Alia-se, ainda, o controle ambiental do licenciamento com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc).

Outra importante referência é o acordo celebrado entre União, ICMBio e estado de Pernambuco, homologado, em março de 2023, nos autos da Ação Cível Originária 3.568, por decisão do ministro Ricardo Lewandowski do STF, que prevê a gestão compartilhada de Fernando de Noronha, distrito pernambucano onde existe um Parque Nacional Marinho e uma Área de Proteção Ambiental. Além de pacificar um conflito federativo de grande repercussão entre os entes federal e estadual, esse acordo torna-se paradigmático, dentre outros aspectos, por promover a cooperação interinstitucional entre órgãos gestor federal e licenciador estadual. No que toca ao licenciamento urbanístico e ambiental, alinha os procedimentos autorizativos previstos nos artigos 36, §3° e 46 da Lei 9.985/2000 e deixa explicito forma, conteúdo, prazos e momento da ciência prevista no artigo 5° da Resolução Conama 428/2010.

Cabe ao estado de Pernambuco solicitar ao empreendedor que os estudos ou documentos que subsidiem o licenciamento ambiental e urbanístico de atividade ou empreendimento observem as restrições do decreto de criação e do plano de manejo das unidades de conservação federais. O acordo acaba promovendo a articulação interinstitucional entre os órgãos ambientais de diferentes níveis federativos como mecanismo de aprimoramento regulatório [12].

O debate sobre o federalismo de cooperação ecológica aplicado ao sistema de licenciamento ambiental por meio de Acordos de Cooperação entre órgão licenciador e órgão ou órgãos intervenientes pode se revelar um caminho indispensável para a construção de políticas públicas ambientais mais eficientes. Que os órgãos ambientais possam seguir menos cada um por si, e mais em colaboração mútua, pois assim ganham o meio ambiente, a economia e a sociedade como um todo tanto em racionalidade quanto em segurança jurídica.   


[1] MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 17. “O Estado Federal de cooperação pressupõe arranjos institucionais, políticos e legislativos numa intensidade maior que os outros. Logo, conflitos entre entes federativos devem ser permeados por debates, negociações, enfim, resultado de uma composição de interesses. Em vez de perseguir a política do confronto, uma visão integrada constitui ponto chave da forma estatal brasileira”. BRITO, Felipe Pires M. de. Licenciamento ambiental municipal e LC nº. 140/2011: pensar global, agir local. Revista de Direito, Viçosa, v. 6, nº 1, 2014. “Vê-se, portanto, que o federativo cooperativo não é algo a ser imposto. É, sim, uma construção conjunta dos entes que, baseados na fidelidade federativa, passam a ter consciência da importância da atuação comum, buscando o desenvolvimento próprio sem prejudicar os demais em sua essência. Assim, todas as tentativas de estimular tal sistema são válidas. Em especial quando capitaneada pelo órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a importância da cooperação pode-se tornar uma ideia culturalmente consolidada em nossa estrutura constitucional, alcançando-se a harmonia federativa e a obtenção de benefícios comuns”. HORBACH, Beatriz Bastide. STF redescobre federalismo cooperativo – notas sob a perspectiva alemã. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-fev-11/stf-redescobre-federalismo-cooperativo-notas-visao-alema#_ftn11.

[2] STF. ADI nº 4.757-DF. Plenário. Julgamento em 16.12.2022. DJE 17.03.2023.

[3]  ROVIRA, Enoch Alberti.  Federalismo y cooperacion en la Republica Federal Alemana. Madrid:  Centro de Estudios Constitucionales, 1986.  p.  345-346.

[4] BIM, Eduardo Fortunato; FARIAS, Talden. Competência ambiental legislativa e administrativa. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015 p. 203-245.

[5] ANTUNES, Paulo Bessa. Direito ambiental. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 66-69.

[6] GIORDANO, Nathalie. Anotação ao acórdão do Superior Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 2004, recurso especial nº 588.022/SC. In: AMADO GOMES, Carla (coord.). DICKSTEIN, André; GIORDANO, Nathalie; GONÇALVES, Monique Mosca. Anotações de Jurisprudência Ambiental Brasileira. Faculdade de Direito de Lisboa. Fundação para a Ciência e a Tecnologica. Lisboa, 2020. Disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_jurisambientalbrasileira_icjp_2020.pdf.

[7] OLIVEIRA, Rafael Daudt. O Princípio da Integração Ambiental e as Energias Renováveis. Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2016. p. 11-15.

[8] STF. ADI 4.757-DF. Plenário. Julgamento em 16.12.2022. DJE 17.03.2023.

[9] FARIAS, Talden, STRUCHEL, Andrea e MARCONDES, Marcelo. ADI 4.757, LC 140 e a competência dos municípios em matéria ambiental. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-25/ambiente-juridico-adi-4757-lc-140-competencia-municipios-materia-ambiental. FARIAS, Talden. Julgamento dos embargos da ADI 4.757 e a competência administrativa ambiental. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-set-10/ambiente-juridico-embargos-adi-4757-competencia-administrativa-ambiental.

[10] FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental em um único nível competência. Conjur. Publicado em 25 jun. 2016. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-jun-25/ambiente-juridico-licenciamento-ambiental-unico-nivel-competencia.

[11] BRITO, Felipe Pires M. de; PAULA, Frederico Rios. A cooperação entre entes federativos sob a perspectiva da LC 140/2011. In: FARIAS, Talden. 10 anos da Lei Complementar 140. Desafios e Perspectivas. Rio de Janeiro: Meraki, 2022. p. 151-169.

[12] PAULA, Frederico Rios de; FARIAS, Talden. A articulação de órgãos ambientais como mecanismo de aprimoramento regulatório. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-06/articulacao-orgaos-ambientais-aprimoramento-regulatorio.

Autores

  • é advogado, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Urbanístico e líder do grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Cidades.

  • é procurador federal da AGU (Advocacia-Geral da União), atuando na Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (PFE/ICMBio) desde 2016. Mestrando em Direito Público e pós-graduado em Direito do Estado pela Uerj.

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