Opinião

Uma briga de vizinhos, um insulto e uma Corte: repercussão geral e "The Insult"

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15 de novembro de 2023, 11h18

A repercussão geral leva o Supremo Tribunal Federal a interesses que ultrapassem os interesses das causas. Uma das principais justificativas do instituto processual é evitar que uma briga de vizinhos venha a ser objeto de debate na corte brasileira.

No filme “The Insult” esse é o ponto basilar. No contexto brasileiro, os recursos extraordinários são limitados em relação à importância. No caso libanês, aparentemente não. Ora, a prima facie o filme estabeleceu uma relação com o caso concreto: uma briga de vizinhos. Mas a película nos ensina a não sermos reducionistas. Talvez alguém coloque o conflito de Israel e Palestina como “uma briga de vizinhos”. Talvez alguém classifique a Catalunha e Espanha como “briga de vizinho”. Talvez consigamos lembrar do Genócio em Ruanda onde Tutsis e Hutus, muitas vezes, vizinhos brigavam.

Pois bem. Ao julgarmos pelas aparências talvez cometeremos o mesmo erro que as personagens de Odisseia ao julgarem o estrangeiro na Rapsódia 17. O tom antológico da frase de Penélope “à bondade do teu coração não corresponde à beleza do teu rosto” reflete sobre os pré-julgamentos inevitáveis aos pecadores — todos os humanos. Esse é o ponto central do filme.

O julgamento da personagem principal  —  libanês cristão — é fruto dos seus próprios traumas. A bondade do palestino não fora levada em consideração. A sucessão de atos os levam à fúria, talvez do outro, talvez de si mesmos. Tentamos encontrar os culpados pelos nossos vícios. Uma raça, um objeto de ódio é o que ansiamos. Se voltarmos à frase de Penélope conseguimos desprender lições. Não se julga pessoas pela aparências, nem se julga casos pela aparência de simplicidade.

Divulgação
Cena do filme “The Insult”

A primeira vez que ambos levam os advogados à Corte subestima as verdadeiras razões que os levaram a estar ali. Sem advogados, o réu e o acusado proferem as versões do fato sem saberem o papel minucioso do judiciário em busca — pelo menos na esfera penal  — da verdade real. Pelo menos esse é o “dever-ser” do direito. Inexperientes, ambos são levados ao abatedouro jurídico. Confronta-se não apenas o xingamento, mas as irregularidades das instalações do requerente e o comportamento de ambos.

O resultado leva ao descontentamento. Advogados surgem, e chegamos à Suprema Corte. O caso “Hanna vs. Yasser”[1]  reflete os conflitos do oriente médio, perpassam os dramas libaneses e expõem as feridas de uma comunidade cristã e palestina lidando com seus próprios mártires. Calha que os nossos pesares são refletidos em algo que possa traduzir as nossas angústias. Precedentes realizados por cortes constitucionais espelham algo intrínseco aos nossos papéis na sociedade. O “eu” desaparece, e nós nos tornamos “nós”.

O problema de quando o “eu” desaparece é que levamos o nosso senso de criticidade sobre si embora. A prudência e o orgulho levam a personagem principal a negligenciar uma família em nome da busca pelo preenchimento desse vazio reflexivo. É por certo que, como diria G.K. Chesterton, “o maior problema do mundo sou eu”. De fato, é. A falta de cura desse passado levam-nos a brigas inconciliáveis, a orgulhos feridos, a palavras aladas e egos estridentes.

A corte não deve agir sem a prudente análise das razões humanas. É possível que tenhamos que admitir ser um tanto quanto deterministas. Os dois sujeitos são levados pelas circunstâncias, pelos contextos ao qual são inseridos. Mas se diante das injustiças da vida, escolhermos não mostrar a outra face, em que mundo viveremos?

Podemos ver essa reflexão no seguinte poema de Jorge Luis Borges:

Los justos
Un hombre que cultiva su jardín, como quería Voltaire.
El que agradece que en la tierra haya música.
El que descubre con placer una etimología.
Dos empleados que en un café del Sur juegan un silencioso ajedrez.
El ceramista que premedita un color y una forma.
El tipógrafo que compone bien esta página, que tal vez no le agrada.
Una mujer y un hombre que leen los tercetos finales de cierto canto.
El que acaricia a un animal dormido.
El que justifica o quiere justificar un mal que le han hecho.
El que agradece que en la tierra haya Stevenson.
El que prefiere que los otros tengan razón.
Esas personas, que se ignoran, están salvando el mundo.

A resignação do personagem principal ecoa sobre a parte “el que justifica o quiere justificar un mal que le han hecho”. Yasser pretende, com uma absoluta nobreza de espírito e caráter, justificar as palavras proferidas.

São levados à tona os problemas que transcendem as partes. Voltamos a uma análise de princípios. Por lógica, R. Alexy e Dworkin tornam-se figuras proeminentes nesses questionamentos: os princípios são resolvidos à luz do caso e pelo sopesamento. E, no caso em voga, os princípios perpassam por questões delicadas: mídia, história, política.

O filme nos leva a uma reflexão sobre as reais pretensões de uma lide e pelo próprio instituto processual da repercussão geral. Um recurso extraordinário levado por um cano e xingamentos carrega em si tragédias, questões religiosas, culturais e econômicas do país. O Líbano foi atingido por uma questão cotidiana. Talvez porque o cotidiano do Líbano seja marcado pelas diferenças culturais e a influência de poder nessa sociedade.

Ao olharmos a Constituição libanesa, como exemplo, conseguimos refletir que a repercussão dos conflitos reverberam sobre a representatividade no poder. O artigo 24 é cediço em pontuar a participação igualitária de cristão e mulçumanos. É preciso expressar, reiteradamente, no dispositivo normativo mais importante do país, a representação de ambos[2]. É, por certo que, se os indivíduos —  de ambos os lados  — necessitam dessa afirmação, algo os incomoda.

A conclusão é que o filme lida com os dramas humanos de dois indivíduos que possuem diferenças, assim como similaridades. O olhar fraternal de ambas as esposas, a  relação com a família, a vontade de viver bem. O diretor aproxima, por meio de uma narrativa cinematográfica, à condição e natureza humana.

O direito lida com tudo isso. Se formos, apenas, exegetas que dissecam a lei com a frieza e amargura dos dias ruins, não poderemos ir além. A interpretação deve ir além. Transcender aquela realidade fática e o caso concreto para averiguar as verdadeiras raízes da causa. Em “Meditações de Quixote”, Ortega y Gasset reflete que podemos ver uma floresta pela sua dimensão aparente (troncos, flores e flores); mas se formos um poucos mais perspicazes, podemos ver as raízes. Ou, ao menos, utilizaremos a nossa razão para saber a sua presença. O filme lida com essa constante busca do direito de buscar as raízes. Deixemos a lógica binária aos programadores; lidamos com os dramas humanos.


[1] Os dois personagens da trama.

[2] https://www.constituteproject.org/countries/Asia/Lebanon

Autores

  • é graduanda da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisadora pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic).

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