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Consultor Jurídico

Diálogos institucionais sem instituições

11 de novembro de 2023, 12h24

Por Luã Jung, Vinícius Quarelli

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Em complemento a uma trilogia de textos que se iniciou com Democracia liberal como mal-entendido: Hegel e as raízes do Brasil (cf. aqui), continuada com O discurso jurídico entre dados e narrativas (cf. aqui) e finalizada com A instituição literária do direito (cf. aqui), o texto desta semana busca desenvolver, ainda que introdutoriamente, algumas implicações mais concretas a partir da seguinte questão: afinal, o que (não) são Instituições e o que (não) são diálogos institucionais?

Reprisando algumas ideias, instituições não são um monolito conceitual no sentido de serem abstrações a-históricas. Muito pelo contrário, são decorrência de um processo de aculturação em que a linguagem, a cultura e a história se relacionam de maneira interdependente e formam nossa visão de mundo; e essa compreensão nos aponta para o fato de que os déficits institucionais que ainda hoje percebemos em nosso país transcendem a mera formalidade institucional e guardam origem nestes exatos aspectos[1]. Instituições são muito mais do que um mero organograma previsto nas leis em geral. A formação das instituições políticas formais, nesse sentido, é dependente de fatores antecedentes à mera externalidade das práticas de poder.

Assim, quando analisamos a interação entre os poderes constituídos em um determinado horizonte histórico, muito embora necessitemos de um aparato conceitual geral que nos permita colocar a nossa realidade institucional em perspectiva com outras experiências, não podemos ignorar a dimensão particular atinente ao nosso contexto sócio-cultural. Trata-se, pois, da velha relação dialética entre o universal e o particular, entre o todo e a parte.

Disso já sabia Caio Prado Jr., ao afirmar que a resposta a ser dada às questões propostas na atual conjuntura do país, não se inspira assim de um ideal expresso na “natureza” da revolução para a qual se presumiria a priori que marcha ou deve marchar a evolução histórica brasileira — revolução socialista, democrático-burguesa ou outra qualquer. Revolução essa a que se trataria, na mesma ordem de ideias, de ir aproximando e afeiçoando as instituições do país, e ajustando assim os fatos com a finalidade de alcançar um modelo preestabelecido. Nada há de mais irreal e impraticável que isso. A teoria da revolução brasileira, para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos, será simplesmente — mas não simplisticamente — a interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta. Processo esse que, na sua projeção futura, dará cabal resposta às questões pendentes. É nisso que consiste fundamentalmente o método dialético. Método de interpretação, e não receituário de fatos, dogma, enquadramento da revolução histórica dentro de esquemas abstratos preestabelecidos[2].           

Em relação ao tema deste texto, a institucionalidade brasileira, e não a economia política (contém ironia), por mais que as crises democráticas a nível global guardem semelhanças de família, o emprego direto de certos conceitos estrangeiros sem o devido cuidado pode nos levar a uma compreensão apenas parcialmente verdadeira de nossos problemas.

Exemplo: backlash é um fenômeno que quase sempre se faz presente nas discussões sobre a temática dos diálogos institucionais e que, neste momento, talvez nos sirva como uma introdução ao problema institucional de fundo. Sobre sua incidência, Lenio Streck nos explica que backlash é um fenômeno que ocorre quando há uma mobilização de determinado grupo de pessoas, a qual é causada por um forte sentimento em relação a leis, decisões ou eventos político-jurídicos e que pode ocorrer, por exemplo, numa reação do povo contra uma emenda à lei; do povo contra uma decisão judicial; do Judiciário contra o Parlamento; e do Paramento contra o Judiciário[3]. Em outro escrito (cf. aqui), nos acrescenta que no Direito em geral, e especialmente no Brasil, a prática jurídica parece muitas vezes ser o resultado de uma sucessão de backlashes entre as instituições e a sociedade, uma cadeia cega de exageros e overcorrections; e que a lógica do backlash pode levar a um fenômeno mais complexo e abrangente que os exemplos clássicos de Direito Constitucional de que falam os autores norte-americanos. Sobretudo num país de modernidade tardia, em que o romance em cadeia começa de trás para frente e pela metade.

Explicitando a questão institucional de fundo, a prática discursiva dos juristas tende a articular críticas tanto ao STF quanto ao Parlamento quando alguns destes esboçam alguma reação — ou jurisprudencial ou normativa — em relação ao outro. Mais especificamente, quando o primeiro declara a inconstitucionalidade de alguma lei (im)popular ou quando o segundo pauta a votação de uma lei que pretende inovar e/ou superar um entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal que, por sua vez, tende a ser especialmente contramajoritário nestes casos em particular. Nesse contexto, backlash pode ser definido como uma reação que subjaz uma insatisfação.

Em termos jurisprudenciais, um exemplo dessa reação e dessa discussão pode ser extraído da ADI 5.105. Nela, assentou-se o entendimento de que a legislação infraconstitucional que colida frontalmente com a jurisprudência (leis in your face) nasce com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador ordinário o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem e, se isso não ocorrer, abre-se a possibilidade da nova lei também ser declarada inconstitucional.

Alguns casos desse fenômeno ocorreram recentemente. Veja-se a votação sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, em que, após interpretação dada pelo STF ao tema, foi aprovado no Senado e submetido a sanção o PL 2.093/23, que só permite demarcar novos territórios indígenas nos espaços que estavam ocupados por eles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, tese previamente afastada pela Suprema Corte. Outro tema de destaque é o ressuscitamento da questão acerca da possibilidade de união homoafetiva. Em 2011, o STF havia reconhecido este direito. A Câmara dos Deputados, em 2023, traz novamente o debate com o PL 5167/2009, que atualmente está sendo discutido em comissões da casa legislativa. O terceiro e último caso: em resposta à sinalização do STF no sentido de estabelecer um critério que diferencie o mero portador de droga para uso próprio do traficante, bem como de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal, o Senado Federal colocou em votação a PEC 45/23, que altera o artigo 5º da Constituição, para prever como mandado de criminalização a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Analisadas pontualmente, tais controvérsias nos colocam diante de um cenário em que o STF, ao adotar uma postura “progressista” diante da Constituição, exerceria um contrapeso aos anseios retrógrados de elites preconceituosas. Sabemos que determinadas pautas, geralmente relacionadas a minorias sociais ou a questões éticas têm impulsionado o debate político a nível nacional e internacional e, sob certos aspectos, ocupado a centralidade do próprio debate democrático. Afinal, vivemos em uma sociedade marcada por discriminações injustificáveis. Nesse sentido, enquanto “fórum do princípio” e sendo o direito um “trunfo contra maiorias”, juristas comprometidos com a normatividade dos direitos fundamentais não veem (ou não deveriam ver) como ativismo judicial a efetivação de determinadas garantias ignoradas pelas instâncias políticas representativas eivadas de vícios históricos e de desvios funcionais. Dizendo isso, não ignoramos o fato de que, seguindo a sua pretensa vocação “iluminista”, a Suprema Corte excede suas atribuições em diversas situações.

O ponto a ser refletido, no entanto, é se a suposta contraposição entre as instituições judiciais e legislativas brasileiras que percebemos no debate público, tal como o mesmo vem sendo reportado, constituem, de fato, uma contraposição em termos estruturais. Isso porque, ao passo em que o STF toma decisões amigáveis a minorias éticas (decisões fofas, como diria o prof. Lenio), em muitos casos, mantém-se inerte ou favorável a posições criptoconservadoras em matérias centrais ao desenvolvimento do país. Não custa lembrar: constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (…).

Vivemos em um dos países mais desiguais do mundo, em que os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos. A metade mais pobre da população possui menos de 1% da riqueza do país e o 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial nacional. Diante deste cenário, que poderia e deve ser desdobrado em local apropriado, podemos nos perguntar se o enfoque de nossos debates institucionais e, portanto, da jurisdição constitucional, deveria, de fato, estar tão somente em discussões relacionadas a costumes, a direitos individuais de liberdade e pautas do tipo (por mais relevantes que sejam). É só neste tipo de questão que o STF tem um compromisso iluminista? Aliás, se levarmos a termo o ideário iluminista em seu sentido clássico, poderemos afirmar que, no que tange à economia política e à regulamentação das relações produtivas, nossa suprema corte tem seguido em nível preocupante o laissez-faire.

Um exemplo disso é a admissão irrestrita por parte do STF da terceirização da atividade-fim no direito do trabalho. Isso, por sua vez, abriu as portas para a assim chamada pejotização das relações de trabalho no sentido de mascarar uma verdadeira relação de emprego, e, por conseguinte, obter a redução de custos. Isto ocorre quando o contrato de trabalho de uma pessoa física transmuta para um contrato civil de prestação de serviços através de uma pessoa jurídica (cf. aqui). Não teria esta atuação do STF relação com a problemática estatística do IBGE de que, atualmente, 40% dos trabalhadores brasileiros exercem atividades informais, sem direito a férias, 13º salário, FGTS, ou benefícios do INSS? (cf. aqui) Segundo pesquisa do SEBRAE, mais de 45% dos empreendedores que abriram uma MEI conseguem ter renda de no máximo um salário mínimo e outros 27% de apenas dois salários mínimos. Afinal, a incapacidade de nossas instituições democráticas em proteger e efetivar o estado de bem-estar delineado há 35 anos na CF não seria também um componente do ressentimento popular em relação a estas próprias instituições?

O majoritário enfoque do debate público em questões identitárias e de costumes não é algo exclusivamente brasileiro (cf. aqui). O problema é que, ao importarmos teorias de ocasião, sem levar em conta a nossa própria experiência, déficits históricos e alternativas concretas, desviamos nossa atenção para embates sociais os quais, muito embora relevantes, não atingem o âmago da desigualdade estrutural brasileira (repita-se, uma das maiores do planeta). Nesse sentido, cria-se um antagonismo intrínseco entre a atuação do Poder Judiciário e as instâncias parlamentares sem que se leve em conta pontos centrais em que estas instituições perpetuam em harmonia problemas típicos de um país de modernidade tardia como o Brasil — isto é, um lugar onde as promessas da modernidade (direitos sociais e fundamentais) sequer foram asseguradas de fato.

Em 2019, ocorreu uma palestra de Daniel Ziblatt, coautor de Como as democracias morrem, na Universidade de Frankfurt, com mediação do professor Rainer Forst. Ao ser perguntado sobre o núcleo da crise democrática pela qual passavam (e ainda passam) países como os Estados Unidos, Ziblatt não titubeou em apontar que o primeiro nível de fragilização da democracia se dá a partir da crise econômica. Seria interessante perguntar a Ziblatt o que ele diria a respeito de países como o Brasil, que possuem o subdesenvolvimento como traço histórico permanente. Quem sabe, Ziblatt indicaria o resgate de autores como Celso Furtado, que já apontavam para o duplo desafio que é peculiar aos países não desenvolvidos: gerar riqueza ao mesmo tempo em que se promove a sua distribuição. Muita careta pra engolir a transação, e a gente vai se amando que também sem um carinho, ninguém segura esse rojão!


[1] Para uma compreensão abrangente, conferir: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio Luiz; NERY JR, Nelson. Crise  dos  poderes  da  República:  judiciário,  legislativo  e  executivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

[2] PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira e a questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 17.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023. p. 27.