'Lava jato' revisitada

Interesses dos Estados Unidos influenciam anticorrupção, dizem pesquisas

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29 de março de 2023, 18h53

Na semana passada, causou apreensão nos meios diplomáticos uma entrevista do presidente da República denunciando uma suposta interferência do Departamento de Justiça dos Estados Unidos na finada "lava jato". O risco seria transformar uma agenda "conspiratória" em um discurso oficial do governo. Entre especialistas no assunto, contudo, a interferência de fatores políticos e econômicos em processos anticorrupção nos EUA é tema bem conhecido, e não tem nada de conspiratório.

Rovena Rosa/Agência Brasil
Odebrecht sofreu uma daas maiores penalidades aplicadas pelo FCPA
Rovena Rosa/Agência Brasil

Artigo publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 2021, assinado por Elizabeth Acorn, da Universidade de Toronto, reuniu dezenas de pesquisas publicadas nos últimos anos sobre a aplicação da legislação anticorrupção dos EUA, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), contra empresas estrangeiras. Pelas pesquisas existentes, os processos do FCPA são influenciados por diversos fatores, incluindo elementos políticos, econômicos, lobbies empresariais e até disputas eleitorais locais.

As autoridades anticorrupção americanas também se pautam por uma atuação institucional formal, mas não é só isso. Pelo que se sabe hoje em dia, o mais provável é haver uma combinação de interesses por trás da aplicação do FCPA.

Estratégias globais e interesses locais
Uma das pesquisas sobre o tema, assinada pelo economista Lauren Cohen, da Universidade de Harvard, no fim de 2021, por exemplo, encontrou indícios de pressão de lobbies privados sobre integrantes do Comitê de Judiciário do Senado visando ao FCPA. O comitê é responsável pela supervisão do funcionamento do Departamento de Justiça (DoJ), o qual é, por sua vez, incumbido de processar empresas pelo FCPA. Esses processos são conduzidos com alta discricionariedade, o que, diz o pesquisador, facilita a interferência de interesses políticos.

Outros autores com pesquisas na área, como Maria Paula Bertran, professora de Direito da USP de Ribeirão Preto, encontram tendências amplas de caráter estratégico no perfil de ações do FCPA, visando a transformações institucionais globais de grande escala. De acordo com sua pesquisa, o FCPA é aplicado de forma seletiva e nada aleatória. Segundo a autora, antes da "lava jato", estudiosos já previam, com base em dados, que a agenda estratégica do FCPA produziria em breve uma ação de envergadura contra uma empresa de petróleo no Brasil.

Lei 'horrível'
O FCPA foi criado em 1977, na esteira de escândalos de corrupção que abalaram a opinião pública dos EUA, alguns deles relativos à atuação de empresas no exterior. Por muitos anos, a norma foi alvo de críticas nos meios empresariais do país, com o argumento de criar desvantagens competitivas para empresas americanas.

Em 2012, em um episódio notório, a insatisfação foi vocalizada pelo então empresário Donald Trump em uma entrevista à rede de TV CNBC, quando chamou o FCPA de uma lei "ridícula" e "horrível". Em seu primeiro ano como presidente, em 2017, Trump exigiu, em pleno Salão Oval da Casa Branca, que seu então secretário de Estado, Rex Tillerson, "se livrasse" do FCPA. Em 2020, o assessor econômico da Presidência Larry Kudlow afirmou que o governo estava preparando um pacote de reformas para o FCPA, pois "estavam ouvindo reclamações de nossas empresas".

Exportação da anticorrupção
Nos anos 1990, o Departamento de Estado entrou em campo para internacionalizar a "luta contra a corrupção", uma forma de ampliar a área de influência americana e reduzir o impacto do FCPA sobre a indústria local. A iniciativa produziu entre seus resultados a convenção anticorrupção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 1997, hoje assinada por 44 países.

A convenção da OCDE, por sua vez, induziu novas leis anticorrupção em vários países signatários, como a Lei Anticorrupção brasileira (Lei 12.846/2013) e o Bribery Act do Reino Unido, de 2010. As Nações Unidas também prepararam sua convenção sobre o assunto em 1996, texto finalizado em 2003 e hoje assinado por 181 países.

Nos EUA, com o passar do tempo, o FCPA passou a ter como alvo principal empresas estrangeiras, ao invés de empresas americanas. Um dos impactos do FCPA, hoje se sabe, é promover a penalização das empresas também em sua terra natal.

Ao longo dos últimos dez anos, metade das empresas processadas pelo FCPA era estrangeira, mas em 2016 o número superou o volume de empresas dos EUA em 30%. No ano de 2021, pela primeira vez todas as empresas processadas pelo FCPA eram estrangeiras, segundo dados reunidos pela Universidade de Stanford.

Empresas americanas e estrangeiras processadas pelo FCPA

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Fonte: https://fcpa.stanford.edu/

O resultado da "exportação" do FCPA foi seu fortalecimento. Nas primeiras duas décadas, era uma lei praticamente inerte, tornando-se uma legislação ativa apenas nos últimos 15 anos. O FCPA produzia em média quatro processos/ano entre 1978 e 2000, e atingiu 40 processos/ano entre 2010 e 2020.

Processos pelo FCPA/ano

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Fonte: https://fcpa.stanford.edu/statistics-analytics.html

Cálculo da pena
Uma distorção comprovada estatisticamente por estudo de pesquisadores da escola de Direito da Universidade de Nova York (NYU) é a diferença de penalidades entre empresas estrangeiras e locais. Um dado conhecido é que, entre as dez maiores penalidades aplicadas com base no FCPA em toda a história, apenas uma foi contra uma empresa dos EUA, o banco Goldman Sachs, em 2020.

O Brasil lidera isolado o ranking das dez maiores penalidades do FCPA, somando um terço das multas. Entre as quatro maiores penalidades, duas foram contra empresas brasileiras: Odebrecht e Petrobras. Do montante das penalidades dessas duas companhias, 80% foram destinados às próprias autoridades brasileiras.

Maiores sanções aplicadas pelo FCPA

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Fonte: https://fcpa.stanford.edu/statistics-top-ten.html

Dois pesos, duas medidas
Em 2014, houve um escândalo envolvendo a metalúrgica Alcoa, multinacional dos EUA com presença em 11 países e faturamento de US$ 12,5 bilhões, acusada de pagar US$ 110 milhões em propinas para membros da família real do Bahrein, no Oriente Médio. A penalidade foi fixada pelas autoridades americanas no piso mínimo, US$ 446 milhões, e depois reduzida em mais 55%, para US$ 209 milhões.

O corte foi atribuído pelas autoridades à preservação da "competitividade" da Alcoa. Segundo consta no acordo de leniência, a penalidade "ameaça substancialmente a competitividade da Alcoa, incluindo, mas não só, sua capacidade de pagar despesas e melhorar sua estrutura de gasto, investir em pesquisa e desenvolvimento, quitar suas despesas com o fundo de pensão, manter reservas de caixa para sustentar suas operações e quitar obrigações."

Quando o alvo são empresas estrangeiras, a percepção é outra. O ex-executivo da Alstom Frédéric Pierucci publicou um livro chamado "A Armadilha Americana" para denunciar o processo por corrupção internacional enfrentado pela empresa francesa no Departamento de Justiça. Ele afirma que a Alstom foi deliberadamente prejudicada com o fim de facilitar uma negociação em curso para a venda de sua divisão elétrica para a americana General Eletric (GE), o que incluía usinas nucleares em território americano. O DoJ fixou para a Alstom a maior penalidade já aplicada pelo FCPA em toda a história até então, US$ 772 milhões, em processo conduzido simultaneamente às negociações entre GE e Alstom, entre 2013 e 2014.

O Senado e o FCPA
Pesquisa publicada em dezembro de 2021 pelos economistas Lauren Cohen, da Universidade de Harvard, e Bo Li, da Universidade de Tsinghua, na China, concluiu que a atuação anticorrupção contra empresas estrangeiras com presença local nos EUA aumenta em 23% nos períodos anteriores a eleições para o Senado. Os processos anticorrupção interessam aos senadores, diz a pesquisa, não só pela pressão de lobbies privados, mas porque têm apoio da opinião pública. "Os processos se concentram na proximidade das eleições, em indústrias mais proeminentes nos estados dos senadores, causa aumento na atenção da mídia e aumento na captação de votos", diz o artigo.

Um caso citado como exemplo de atuação de lobbies privados no Senado é o processo contra a multinacional francesa de energia Total, que resultou em uma penalidade de US$ 398 milhões. A pesquisa relaciona o processo contra a Total à atuação do senador texano John Cornyn, do Partido Republicano, com assento no Comitê de Judiciário do Senado. A ação contra a empresa francesa foi formalizada em 2013, pouco antes do lançamento da campanha do senador à reeleição, em 2014.

A atuação do parlamentar, diz o estudo de Cohen e Li, está relacionada à influência da petroleira Exxon-Mobil, multinacional do petróleo sediada no Texas. Ela é concorrente da Total em vários mercados internacionais e nacionais, incluindo o próprio Texas, onde está instalada a filial americana da petroleira francesa.

O estudo destaca que a pressão de lobbies privados tem como pano de fundo a elevada internacionalização das grandes empresas americanas. Entre as 500 maiores empresas dos EUA listadas pela Standard&Poor's (2019), cerca de 50% do faturamento tem origem no exterior. Ou seja, interferir na aplicação do FCPA sobre empresas estrangeiras é uma forma não só de proteger o mercado interno, mas abrir mercados externos.

A 'lava jato' e o FCPA
Um dos trabalhos relevantes sobre o tema no Brasil foi publicado no ano passado pela professora da USP Maria Paula Bertran e pela especialista em infraestrutura Maria Virginia Mesquita Nasser. Analisando o perfil das ações do FCPA, elas identificaram que a aplicação tende a se concentrar em setores economicamente estratégicos para os Estados Unidos, como energia, tecnologia e matérias-primas. O FCPA também se volta a mercados internacionais relevantes para capitais americanos, o que inclui o Brasil, características que, somadas, fazem da Petrobras um alvo típico para autoridades anticorrupção americanas.

No caso da Odebrecht, contudo, a pesquisa conclui que o processo foi um "ponto fora da curva", pois a empresa não atua em um setor estratégico de incidência do FCPA. O processo, nesse caso, é atribuível apenas à sua relação com a Petrobras. No entanto, também pode ser atribuído ao fato de a Odebrecht vir de um país relevante para os capitais americanos (Brasil) e ter forte presença internacional, o que leva a penalização a ter efeito "multiplicador" em outros mercados.

Segundo Maria Paula Bertran, hoje sabe-se que o FCPA exerce um papel transformador, que as autoridades americanas têm consciência do seu peso e usam essa força para alterar padrões locais. "O conhecimento sobre a aplicação do FCPA hoje tem um nível muito técnico. Nos Estados Unidos há estudos muito sólidos. Não tem nada de conspiratório."

De acordo com a autora, o FCPA é usado via de regra como uma ferramenta de caráter "pedagógico", tentando irradiar mudanças institucionais para outros países. As autoridades americanas tendem a concentrar esforços em casos com grande visibilidade e poder de influência, a exemplo da alemã Siemens, em 2008, da inglesa BAE Systems, em 2010, e da israelense Teva, em 2016

A irradiação das ações anticorrupção do FCPA não é necessariamente ruim, diz a autora, mas no Brasil os efeitos foram muito danosos, provocando crise econômica e instabilidade política. "Precisávamos viver a mudança de paradigma. A atuação dos EUA pode fazer coisas interessantes, mas não foi adaptada para o paradigma local." Segundo ela, o problema no Brasil foi o processo ter assumido um caráter excessivamente punitivo e pouco negocial e pragmático.

DoJ e 'lava jato'
Não está clara até hoje a extensão da colaboração entre o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e integrantes da "lava jato" no Brasil. Parlamentares americanos já pediram informações sobre o tema duas vezes, exigindo um posicionamento do DoJ, o qual se limitou a responder que os detalhes são sigilosos.

Um dos advogados que acompanham o tema de perto, Fernando Fernandes, enumera documentos obtidos por Vaza Jato e WikiLeaks que confirmam a colaboração entre autoridades dos EUA e integrantes da "lava jato". A colaboração inclui a presença de procuradores americanos em Curitiba de forma extraoficial, entrevistando delatores e obtendo documentos sigilosos.

Todas essas irregularidades se somam ao fato de que, ao fim e ao cabo, as empresas acabaram sendo penalizadas de modo excessivo como resultado de processos oriundos de delações premiadas feitas de modo pouco republicano. O resultado, diz Fernandes, é que os acordos de leniência se converteram em atos de "enriquecimento ilícito do Estado".

Se a extensão da influência das autoridades dos EUA na "lava jato" ainda não é clara, a agenda internacional do DoJ na condução do FCPA é notória. Segundo os estudos existentes, há influência de fatores estratégicos, econômicos, interesses políticos, empresariais e até disputas eleitorais locais. Para saber com certeza quais as motivações presentes, contudo, só havendo transparência.

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