Opinião

Restrições a nomeações para estatais: e o advogado da campanha eleitoral?

Autor

  • Pedro Gallotti Kenicke

    é bacharel e mestre em Direito do Estado pela UFPR autor do livro “Comentários à Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017)” e sócio do Núcleo de Direito Administrativo da Dotti Advogados.

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21 de março de 2023, 19h16

O início do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.331  [1] novamente trouxe à tona a discussão sobre as "indicações políticas" dos diretores e conselheiros de empresas estatais, quais sejam, os titulares de cargos públicos ou que tenham atuado, nos três anos anteriores, na estrutura de partido político ou em campanha eleitoral. Os parâmetros e as vedações para a indicação estão delineados no artigo 17, §2º, I e II da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016).

O Partido Comunista do Brasil (PCdoB), agremiação que ajuizou a ação perante o Supremo Tribunal Federal (STF), sustenta que, embora pessoas que tenham cargos políticos ou de direção e assessoramento sejam mais preparados para o exercício de atividades públicas devido às suas experiências no poder público, as vedações da Lei das Estatais violam princípios constitucionais e garantias fundamentais como a isonomia, com a proibição de discriminações e privilégios entre brasileiros, a liberdade de expressão, com a livre manifestação dos indivíduos em partidos políticos e em campanhas eleitorais, e a autonomia partidária, uma vez que suas limitações somente se aplicam para assegurar a preservação dos princípios do sistema democrático-representativo e do pluripartidarismo, nos termos do artigo 17 da Constituição.

O julgamento em plenário virtual se iniciou no dia 10/3/2023, com voto do relator ministro Ricardo Lewandowski pela parcial procedência no que concerne ao artigo 17, §2º, I da Lei nº 13.303/2016 e pela interpretação conforme à Constituição para o inciso II. Veja:

"Em face do exposto, julgo parcialmente procedente a presente ação para declarar a inconstitucionalidade da expressão 'de ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública', constantes do inciso I do §2° do artigo 17 da Lei 13.303/2016.

Confiro, ainda, interpretação conforme à Constituição ao inciso II do §2° do artigo 17 do referido diploma legal para afirmar que a vedação ali constante limita-se àquelas pessoas que ainda participam de estrutura decisória de partido político ou de trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral, sendo vedada, contudo, a manutenção do vínculo partidário a partir do efetivo exercício no cargo".

Embora tenha havido pedido de vista do ministro André Mendonça, ainda sem voto até a confecção deste artigo, e a considerar o voto do ministro Lewandowski, é preciso levantar a hipótese se as mesmas vedações se aplicam ou não para os profissionais que trabalharam em campanhas eleitorais, tais como advogados, por exemplo.

O advogado que tenha atuado no contencioso eleitoral (atividade jurisdicional) da campanha majoritária, cuidando do registro de candidatura, das eventuais representações e ação de prestação de contas de candidatos, poderia ser nomeado pelo governador, pelo prefeito ou pelo presidente, para cargo de direção ou do conselho de administração de estatal sob a autoridade do(a) eleito(a)?

Parece-nos que sim, e a interpretação sistemática do disposto no artigo 17, §2º, II, da Lei das Estatais, do Decreto n° 8.945/2016, da mens legis, das recentes resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmam essa suposição. O dispositivo é o seguinte:

"§2° É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria: (…)

II – de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;".

A dúvida repousaria na expressão "em trabalho vinculado" a atividades relativas à campanha eleitoral.

É preciso compreender o mapa do caminho seguido pelo projeto de lei que originou a Lei das Estatais, e em especial quanto ao dispositivo citado. O Projeto de Lei do Senado Federal nº 555/2015 previa o seguinte, no seu então artigo 16, §2º, relativamente às vedações para a indicação para o Conselho de Administração e Diretoria:

"§2º É vedada a indicação, para o conselho de administração e para a diretoria de:

a) representantes do órgão regulador ao qual a empresa pública ou sociedade de economia mista está sujeita, de ministro de Estado e de titular na administração pública, de dirigentes estatutários de partidos políticos e de titulares de mandatos no Poder Legislativo de qualquer ente da federação ainda que licenciados do cargo;

b) pessoa que possua filiação ou vinculação político-partidária, ou que exerça cargo em organização político-partidária em período inferior a um ano antes da data da nomeação;".

A vedação se estendia para dirigentes estatutários de partidos e pessoas que possuíssem filiação ou vinculação político-partidária, ou que exercessem cargos em organização político-partidária em período inferior a um ano antes da data da nomeação, conforme a alínea "b". Em 9/9/2015, houve a emenda modificativa nº 79, que alterou a redação da alínea "b" do §2º do artigo 16 do referido projeto, incluindo o "prestador de serviços" como pessoa vedada, restando o seguinte:

"b) pessoa que tenha exercido cargo em organização político-partidária ou que tenha atuado, mesmo como prestador de serviços, em trabalhos vinculados à organização, estruturação e realização de campanhas eleitorais em período inferior a 36 meses da data da nomeação;".

A justificativa para a alteração foi a de que havia uma "restrição excessiva à elegibilidade ao conselho de administração e diretoria (…) que veda a participação de qualquer pessoa com 'filiação ou vinculação político-partidária'. Ocorre que a vinculação partidária e mesmo a filiação revelam somente preferências políticas, mas não objetivos conflitantes de interesses entre o atendimento aos objetivos do partido político ao qual se está filiado e os da empresa estatal (…). Contudo, acrescentamos ao texto, como restrição, a participação em trabalhos vinculados à organização, estruturação e realização de campanhas eleitorais, mesmo quando o trabalho tenho sido executado como prestador de serviços. Ademais, procura-se aumentar o prazo do que a lei entende como atividade recente de um para três anos, de forma a se evitar estratégicas de demissão de cargo de direção de partido com a promessa de ocupação de cargo em estatal. Entendo que o prazo de 12 meses não impedia tais estratégias".

A nova redação foi acolhida pelo Parecer nº 1.188/2015. O substitutivo foi remetido à Comissão Diretora do Senado que apresentou o Parecer nº 206/2016 consolidando a emenda aprovada pelo Plenário. A redação do vencido apresentou o seguinte para o mesmo excerto:

"§2º É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria:

(…)
II – de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;".

Nota-se que a redação ficou idêntica à redação do atual artigo 17, §2º, II, da Lei das Estatais, porquanto se retirou a expressão "mesmo como prestador de serviços" que havia sido incorporada pela emenda nº 79.

Tendo sido remetido o substitutivo à Câmara dos Deputados e retornado ao Senado Federal para análise das alterações promovidas pelos deputados, a redação final do projeto para envio à sanção presidencial foi publicada com o Parecer nº 561/2016, da Comissão Diretora do Senado, sem alteração do artigo 17, §2º, II.

Denota-se, por conseguinte, que embora a emenda modificativa nº 79 tivesse previsto vedação para aqueles que tivessem prestado serviços a campanhas eleitorais, essa passagem não foi incorporada à redação final do projeto. Isso revela inequivocamente não ter havido intenção do Congresso Nacional de se vedar a nomeação de prestadores de serviços a campanhas eleitorais aos cargos no Conselho de Administração e Diretoria de sociedades de economia mista e empresas públicas.

Mesmo o Decreto regulamentar nº 8.945/2016 não previu, nem esclareceu, qualquer relação entre as vedações e os referidos "prestadores de serviço" de campanha eleitoral, pois houve somente a reprodução do texto legal no artigo 29, incisos VI e VII:

"Artigo 29. É vedada a indicação para o Conselho de Administração e para a Diretoria:

VI – de pessoa que atuou, nos últimos trinta e seis meses, como participante de estrutura decisória de partido político;
VII – de pessoa que atuou, nos últimos trinta e seis meses, em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;".

De modo que, se a mens legis não foi de aplicar vedações a terceiros prestadores de campanhas eleitorais, as restrições devem ser restritivamente interpretadas.

O partido político, por definição, é a livre associação de pessoas organizada de forma tal que são "inspiradas por ideais ou movidas por interesses, buscam tomar o poder, normalmente pelo emprego de meios legais, e neles conservar-se para realização dos fins propugnados" [2], segundo a lição de Paulo Bonavides, e a campanha eleitoral é seu instrumento para se alcançar o poder por meio das eleições. Para José Jairo Gomes, a campanha eleitoral é "o complexo de atos e procedimentos técnicos empregados pelos candidatos e agremiações políticas com vistas a influenciar os eleitores para obter-lhes o voto e lograr êxito na disputa de cargo público-eletivo. Em seu âmbito é desenvolvido um conjunto de atividades consistentes em atos de mobilização e apoiamento, debates, difusão de ideias e projetos, realização de propaganda, divulgação de pesquisas e consultas populares, embates com adversários. A campanha eleitoral é inteiramente voltada à captação, conquista ou atração de votos" [3].

Vê-se, dessa forma, o distanciamento da atuação profissional da advocacia em relação à vedação legal, na justa medida em que esses profissionais atuam de forma independente e autônoma prestando serviço terceirizado a candidatos.

Há, certamente, exceções à hipótese, mas, em geral, o advogado não realiza trabalhos vinculados à estruturação, realização e coordenação de campanhas eleitorais, como é o caso, por exemplo, da organização e coordenação de comitês, ou lançamento de estratégias de ação do candidato.

O TSE define, por exemplo, a prestação de serviços advocatícios em consultoria jurídica e a distingue com a atuação no contencioso eleitoral/atividade jurisdicional:

"ELEIÇÕES 2018. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHA. CARGO DE DEPUTADO FEDERAL. CONTAS DESAPROVADAS PELA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADO. HONORÁRIOS REFERENTES À CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS RELACIONADOS À DEFESA DE INTERESSES DO CANDIDATO EM PROCESSO DE REGISTRO DE CANDIDATURA PAGOS COM RECURSOS DA CAMPANHA. NÃO CONFIGURAÇÃO DE GASTO ELEITORAL. INFRINGÊNCIA AO ARTIGO 37, §3º, DA RES.–TSE Nº 23.553/2017. PRECEDENTES. ENUNCIADO Nº 30 DA SÚMULA DO TSE. EXEGESE DO ART. 34, §§5º e 6º, DA RES.–TSE nº 23.553/2017. (…)

2. "[…] apenas os serviços advocatícios inerentes à campanha eleitoral – que se revelam em consultoria aos candidatos – é que estão submetidos a contabilização de custos na ação de prestação de contas, porquanto dizem propriamente respeito ao exercício da conquista e atração de eleitores naquilo que é dever ou direito do candidato no curso do processo eleitoral"; porém, "os honorários da atividade jurisdicional, seja para o candidato se defender de demandas eleitorais, seja para prestar contas, seja para propor ações, não são atividades de campanha, sequer acessórias", por consistirem 'por óbvio, atividades jurisdicionais', conforme o entendimento desta Corte, consubstanciado no acórdão do AgR–REspe nº 750–12/SE, relator ministro Luciana Lóssio, julgado em 25.8.2016, DJe de 20.9.2016). Outros precedentes: o AgR–REspe nº 773–55/SE, relator ministro Henrique Neves da silva, julgado em 1º.3.2016, DJe de 28.4.2016 e o AgR–AI nº 149–74/SP, relator ministro. Sérgio Banhos, julgado em 19.5.2020, DJe de 17.6.2020.(…)" [4].

Nesse sentido, a atuação do advogado na campanha eleitoral está parametrizada, por exemplo, pela Resolução nº 23.607/2019-TSE, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos e candidatas ou candidatos e sobre a prestação de contas nas eleições. Nela, há diversos dispositivos a delinear que os serviços advocatícios são prestados em favor da campanha. A locução prepositiva "em favor" denota que o advogado é meramente terceirizado, sem se vincular à estruturação, organização ou realização da campanha eleitoral, que fica a cargo do próprio candidato, dos delegados dos partidos políticos e/ou da coligação, ou mesmo dos coordenadores nomeados pelo candidato.

Daí porque o advogado contratado pela campanha, e até mesmo o contador que presta serviços de contabilidade, não visa à promoção da campanha eleitoral, mas à regularidade e ao atendimento, pelo candidato, das resoluções das eleições redigidas pelo TSE, especialmente no que concerne ao registro de candidatura e à prestação de contas.

O advogado, que, por lei, deve ser contratado para os momentos de registro do candidato, representações e de prestação de contas, em nenhum momento pode ser entendido com atrelado à organização e estruturação de campanha eleitoral. São atividades absolutamente distintas e que não podem ser confundidas, notadamente em técnica interpretativa que exige restrição.

Portanto, para além das razões expostas no voto do ministro Lewandowski, a interpretação conforme à Constituição também sustenta a exclusão dos prestadores de serviço da campanha eleitoral, tema que, eventualmente, poderá ser discutido no julgamento das ADIs 5.624 e 7.331.

 


[1] Em paralelo, tramita a ADI 5.624, ajuizada pela FEDERAÇÃO NACIONAL DAS ASSOCIAÇÕES DO PESSOAL DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL  FENAE e pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES DO RAMO FINANCEIRO – CONTRAF/CUT, que originou a prevenção do ministro Ricardo Lewandowski.

[2] BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 372.

[3] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

[4] TSE, RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 060260376, Acórdão, relator(a) ministro Mauro Campbell Marques, publicação:  DJE  Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 85, data 11/05/2022.

Autores

  • é mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), relator da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR, associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e sócio do escritório Dotti Advogados.

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