Congresso e tarifas de serviços públicos
21 de março de 2023, 8h00
No último mês, vozes relevantes no estudo da regulação se manifestaram contra a emenda parlamentar nº 54 ao projeto de conversão da Medida Provisória nº 1.154/2023, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios. Referida emenda sugere a substituição do exercício do poder normativo das agências reguladoras por conselhos normativos de composição plúrima (academia, mercado, governo, agência reguladora e usuários).
De fato, a participação dos diferentes segmentos da sociedade é muito relevante para o contexto democrático e deve ter lugar quando projetos de leis de organização dos setores econômicos estão sendo discutidos; nas consultas e audiências públicas que precedem a elaboração de atos normativos nas agências reguladoras; bem como sobre minutas de editais de licitação. Todavia, especialmente quando contratos já foram firmados e em temas que tenham elevada complexidade, a decisão precisa privilegiar o caráter técnico e uma visão sistêmica dos seus efeitos sobre o setor regulado no longo prazo. Para esses fins, conselhos normativos de conformação plúrima não parecem ser a melhor solução. O esvaziamento das competências das agências reguladoras também não parece contribuir para a melhoria do ambiente institucional e a atração de investimentos para o país.
Em outra frente, está se tornando praxe a propositura de decretos legislativos (PDL) na Câmara dos Deputados visando sustar atos das agências reguladoras em temas tarifários. Em 2022, foram ao menos 20 PDLs propondo sustações de atos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) envolvendo tarifas de energia elétrica, tanto em questões normativas (como o PDL 365/2022, que visava sustar alterações que a Aneel havia promovido aos Procedimentos de Regulação Tarifária — PRORET), quanto em atos concretos (como o PDL 261/2022 — que visava sustar os efeitos da Resolução Homologatória 3.035/2022, que homologara o resultado da Revisão Tarifária Periódica de 2022 da Companhia Sul Sergipana de Eletricidade — Sulgipe, as Tarifas de Energia — TE e as Tarifas de Uso do Sistema de Distribuição — Tusd).
No entanto, é sabido que as tarifas de serviços públicos resultam de questões bastante complexas, como equações que buscam refletir os custos setoriais e trazer incentivos à eficiência, utilizando-se de instrumentos como a adoção de fator x em modelos de preço-teto; práticas de remuneração por desempenho; e descontos para efeitos de reequilíbrio, quando o prestador fica abaixo dos parâmetros de qualidade contratualmente ajustados. Também podem embutir subsídios cruzados visando à universalização.
PDLs não seriam o locus adequado para tratar desses temas. O artigo 49, V da Constituição Federal estabelece competir ao Congresso Nacional "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". Portanto, a inconveniência de qualquer ato administrativo somente pode ser superada por meio do devido processo de elaboração de leis, nos limites permitidos pela Constituição Federal, mas não por decretos legislativos. Todavia, dados do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio apontam que a inconveniência tem sido, não raras vezes, invocada como pretenso argumento para se utilizar PDLs para sustar atos das agências reguladoras, em que pese a ausência de previsão constitucional nesse sentido.
É preciso lembrar que igualmente não são cabíveis discussões sobre conveniência e oportunidade quando os temas tratados pelas agências reguladoras são reajustes ou revisões tarifárias de contratos de concessão ou permissão em curso. Esses são instrumentos previstos na Lei 8.987/1995 (a lei geral de concessões e permissões de serviços públicos) que se destinam a manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos ao longo da sua vigência. Investidores fazem cálculos e projeções com base nas cláusulas econômicas dos contratos, confiando que o Estado brasileiro as respeitará e protegerá.
Deve-se considerar ainda o longo prazo das relações que são instituídas entre poder público e iniciativa privada na gestão dos serviços públicos. Uma medida de populismo tarifário hoje pode ser a tarifa mais cara de amanhã (o que tenderá a excluir a possibilidade de consumo pelos usuários menos favorecidos), ou a ausência do serviço por falta de interessados em prestá-lo. Caso a sociedade brasileira não seja capaz de garantir o cumprimento do pactuado, na próxima rodada de licitações é esperado que o investidor procure uma sociedade que lhe forneça maior segurança, ou somente invista no Brasil mediante taxas de retorno mais atraentes: no final, os usuários dos serviços pagarão contas mais caras.
Nesse contexto, o Poder Legislativo não deveria atuar como mais um fator de insegurança jurídica quanto ao cumprimento dos contratos de concessão. PDLs não são o meio adequado para suspender tarifas definidas por agências reguladoras. Não se pode dizer que agências reguladoras, quando expedem atos concretos em matéria tarifária, terão praticado "atos normativos" que "exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". A uma porque atos decisórios sobre tarifas em casos concretos não são normativos; a duas porque geralmente as leis de criação das agências reguladoras lhes conferem, como típica competência, o poder de homologar reajustes e decidir sobre pleitos de revisões tarifárias (afastando, portanto, a alegação de que a agência teria exorbitado "dos limites de delegação legislativa"). Eventuais arbitrariedades praticadas pela Administração Pública em casos concretos podem ser questionadas no Poder Judiciário.
O tema talvez não tenha despertado maior preocupação até o momento porque é raro que um PDL efetivamente seja aprovado. Estudo realizado pelo Projeto Regulação em Números sobre PDLs relacionados a atos das agências reguladoras, com dados até 2019, encontrou apenas 1 desses projetos que logrou ser convertido em decreto legislativo: tratou-se do decreto legislativo 273/2014, que sustou a RDC nº 52/2011 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proibira o uso de substâncias anorexígenas. A Diretoria Colegiada da Anvisa respondeu a esse ato editando a Resolução nº 50/2014, impondo medidas de controle para essas substâncias (defendendo, assim, que tais produtos não poderiam ingressar no mercado sem sua chancela). Em seguida, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 13.454/2017, autorizando a produção, a comercialização e o consumo, sob prescrição médica, de alguns anorexígenos. O caso somente teve desfecho com a declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 13.454/2017 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI 5.779, por violação do direito à saúde ao se desconsiderar o entendimento do órgão técnico (a Anvisa).
O caso acima ilustra o potencial dos decretos legislativos para adicionar complexidade à relação entre agências reguladoras e Poder Legislativo. Assim, a crescente propositura de PDLs em temas de competência das agências reguladoras adiciona mais um componente ao já complexo sistema de controle dos seus atos, que inclui o Poder Judiciário e o Tribunal de Contas (e toda a complexa questão acerca de sua extensão e limites). Merece ser lembrado ainda que, desde 2017, há previsão expressa em vários setores de que temas de equilíbrio econômico-financeiro são passíveis de resolução por arbitragem (cf. artigo 31, §4º, Lei 13.448/2017).
Diante desse emaranhado institucional, não chega a surpreender que o Brasil figure apenas no 71º lugar no ranking de competitividade global do Fórum Econômico Mundial divulgado em 2019, e seja apenas o 99º no quesito "instituições". Resta esperar que os parlamentares não contribuam para este cenário com a propositura de PDLs para sustar deliberações de reajuste ou revisão tarifária proferidas pelas agências reguladoras.
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