Público & Pragmático

Pragmatismo e autocomposição na infraestrutura aquaviária no estado do Rio

Autores

  • Thales Tebet da Cruz

    é mestrando em Direito do Estado na Universidade de São Paulo especialista em Direito dos Contratos pela PUC-Rio especialista em Direito Público pela Universidade Gama Filho e advogado na diretoria jurídica da Andrade Gutierrez S/A.

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  • Camila Pereira Mendonça

    é advogada de infraestrutura do contencioso regulatório do Dal Pozzo Advogados com foco em concessões rodoviárias e pós-graduanda em Processo Civil na Escola Paulista de Direito.

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19 de março de 2023, 8h00

A prestação de serviços públicos, vista como ferramenta essencial para satisfação dos direitos fundamentais, se transformou num imperativo estatal quando do surgimento do Estado Social [1]. Após os percalços vivenciados e a identificação das limitações — técnicas, operacionais e financeiras — daquele "mega-Estado" [2], e com a reforma gerencial da administração pública brasileira (EC nº 19/1998) emergiu o Estado Regulador. Com isso ganhou importância a concessão de determinados serviços públicos à iniciativa privada, sob regulação de braços especializados da máquina pública (as agências reguladoras).

No estado do Rio de Janeiro, o serviço público de transporte aquaviário de passageiros foi uma das atividades prestacionais que passou a ser explorado por empresas privadas. Recentemente houve debate acerca de determinado ponto que merece breves apontamentos.

Uma das orientações mais modernas — e positivas — no Direito Administrativo e Constitucional é a incorporação do pragmatismo jurídico ao modo de atuar dos órgãos e agentes públicos brasileiros. Aqui se destacará como o caráter pragmatista influenciou — em certa medida — a homologação do acordo celebrado entre a CCR Barcas, a Agetransp e o estado do Rio de Janeiro, para a manutenção da concessão anteriormente celebrada para a prestação dos serviços públicos de transporte aquaviário no estado.

Inicialmente, antes de examinar o caso prático em questão, relevante apontar para o que se entende por pragmatismo — e aqui recomendamos a leitura do artigo inaugural desta coluna Público & Pragmático, elaborado por Gustavo Justino de Oliveira [3]. Em resumo, trata-se de uma corrente de pensamento originada no final do século XIX, nos Estados Unidos (EUA), tendo como expoentes iniciais Charles Peirce, William James e John Dewey. Após um período de pouca influência, o pragmatismo ganhou novo impulso no final do século XX, quando "[ressurgiu] não apenas no campo da filosofia, mas também nos domínios, principalmente, das ciências sociais (sociologia e ciência política), do direito e da literatura" [4]. Os mais recentes adeptos dela passaram a ser chamados de "neopragmatistas", sendo que para o mundo jurídico um dos mais importantes é Richard Posner.

Apesar de pontuais divergências entre os "pragmatistas clássicos" e os "neopragmatistas" — e até mesmo dentro dos próprios grupos — é possível indicar que há uma matriz pragmatista comum a todos, que é composta pelos seguintes elementos: (1) antifundacionalismo — não se acredita em verdades absolutas, estáticas e imutáveis, implicando numa investigação constante e possibilidade de periódico abandono de dogmas estabelecidos; (2) consequencialismo — é a antecipação das consequências dos ato humanos, possibilitando a comparação entre ônus/bônus das alternativas disponíveis; e (3) contextualismo — necessidade de se analisar determinada situação de acordo com a conjuntura (jurídica, econômica, estrutural e social) vivenciada, e não simplesmente em contraposição a parâmetros abstratos. Assim, nota-se que o pragmatismo é uma forma de pensar e analisar os acontecimentos, marcado pela profunda necessidade de efetividade e produção de resultados positivos concretos. Segundo o professor Gustavo Justino de Oliveira, "pragmatismo é a teoria em ação" [5].

Desta forma, e sem abandonar os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, nota-se que o pragmatismo se transforma numa ferramenta jurídica imprescindível para — através da interpretação e aplicação do Direito Administrativo e Constitucional — concretizar a eficiência do Estado brasileiro, principalmente na seara da prestação dos serviços públicos e sua respectiva análise perante os órgãos de controle. Esse aspecto é relevante porque, de acordo com Rafael Carvalho Rezende Oliveira, tradicionalmente os órgãos de controle nacionais analisam mais a "observância formal da legislação" do que "o contexto" e "as consequências" [6]. Com isso, existem situações nas quais atualmente gestores públicos são punidos, quando, ao contrário, o fornecimento de orientações e recomendações já seriam suficientes para encerrar violações não dolosas às normas.

Inegável reconhecer que os elementos da matriz pragmatista ganharam impulso no Brasil após as alterações realizadas no âmbito do Decreto-Lei 4.657/1942 — Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em 2018. As inclusões foram variadas, mas é correto afirmar que o caráter contextualista e consequencialista virou um mandamento legal para a atuação das esferas "administrativa, controladora e judicial".

Fixadas essas premissas, convém tecer breves considerações acerca do acordo celebrado, sem, contudo, adentrar em questões atinentes ao contrato de concessão propriamente dito, nem mesmo de caráter estritamente processual, tais como a existência de ações correlatas. Importante ressaltar também que não se teve acesso à íntegra da referida avença.

O estado do Rio de Janeiro celebrou acordo administrativo junto à CCR Barcas e à Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro (Agetransp), com vistas a manter a funcionalidade da prestação do serviço público de transporte aquaviário de passageiros, prorrogando o contrato de concessão pelo prazo de 12 meses, prorrogáveis por mais 12 meses, garantindo-se a continuidade na prestação. O referido acordo foi homologado judicialmente no âmbito do processo nº 0431063-14.2016.8.19.0001, em trâmite perante a 6ª Vara da Fazenda Pública do Foro da Comarca do Rio de Janeiro (RJ).

Da análise da referida decisão homologatória, inicialmente, verifica-se que o Ministério Público havia se manifestado em sentido contrário ao acordo, sob o fundamento de que a complexidade da matéria demandaria análise por seu grupo técnico, além de suposta incompetência do juízo da 6ª Vara da Fazenda Pública.

A juíza responsável pelo caso não acolheu a manifestação do Parquet. Para justificar o seu entendimento, iniciou uma análise pragmática do tema, ponderando, em termos gerais, as consequências práticas da paralisação dos serviços. Nesse sentido, destacou que o tema demanda a "necessária aplicação do consequencialismo previsto na Lindb, impondo ao julgador a avaliação criteriosa da consequência fática de decisão judicial, de modo a evitar soluções materialmente inexequíveis, especialmente em situações a envolver interesse público da maior relevância".

Não por outro motivo constou da referida decisão, ainda, que "o Estado não detém expertise para assumir essa prestação de serviços, até porque não é gestor de empresa, nem é esse seu dever constitucional". Em complemento, mencionou que a homologação do acordo também propiciaria um maior tempo ao estado para conclusão dos estudos e abertura de novo processo licitatório para continuidade da concessão.

Logo, tem-se que a referida decisão não se limitou somente à dogmática jurídico-administrativa para concluir pela homologação do acordo, visto que houve uma análise das consequências práticas de eventual paralisação do serviço público até a conclusão de novo processo licitatório para continuidade da concessão — hipótese em que os usuários seriam diretamente afetados —, na medida em que é amplamente sabido que tais processos podem se estender por longo período, de modo que o serviço poderia permanecer paralisado por prazo indeterminado.

Com a homologação do acordo — cuja celebração também encontra amparo no artigo 26 da Lindb —, evitou-se, ainda, a contratação temporária de outra Concessionária para dar continuidade à prestação do serviço, a qual, por via de consequência, não possuiria a expertise adquirida pela CCR Barcas durante o curso dos 25 anos de sua concessão, fato que também poderia impactar severamente na qualidade do serviço prestado. Corroborando com o referido entendimento, convém mencionar o artigo 20 da Lindb, o qual prevê expressamente que "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

Para além disso, consta da decisão homologatória que o referido acordo também havia sido anteriormente aprovado pela Agetransp, tendo esta atuado "dentro da discricionariedade administrativa própria, atributo da função administrativa, e contando com a concordância do órgão regulador dessa atividade, o Estado, amparado em Nota Técnica da Agetransp que analisou e aprovou os valores e condições do Acordo, reconheceu ser devedor de indenização pelo serviço público prestado desde o início da concessão (…)".

Logo, a análise realizada pela referida agência, a qual possui competência para tanto — e contrariá-la fragilizaria seu papel e a dinâmica de fiscalização das Concessões —, foi realizada em consonância com o artigo 22 da Lindb, o qual dispõe que há de serem analisadas, na interpretação das normas sobre gestão pública, "os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados". Em igual sentido, dispõe o § 1º do mesmo artigo, ao indicar que "em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente".

É justamente nesta circunstância que a homologação do referido acordo se mostra como notável ilustração para promover o pragmatismo no Brasil. Isso porque ele, ao mesmo tempo, desafiou o dogma de que as decisões tomadas no curso da concessão estariam exclusivamente vinculadas ao instrumento convocatório, assim como sopesou as consequências das possibilidades de atuação disponíveis e considerou a realidade experimentada pelos agentes públicos envolvidos na situação. Assim, pode-se entender que a referida decisão judicial concretiza os três elementos mencionados da matriz pragmatista.

Portanto, sob a ótica do pragmatismo inserido no Direito Administrativo contemporâneo brasileiro, tem-se que a decisão que homologou o acordo administrativo celebrado entre a CCR Barcas, a Agetransp e o estado do Rio de Janeiro possui o condão de demonstrar, de forma objetiva e transparente, a importância de se avaliar, em todos os cenários possíveis e dentro dos limites da razoabilidade, as consequências práticas das decisões administrativas e judiciais, tendo sido sopesado, neste caso, o interesse do usuário beneficiado pela prestação do serviço público, o qual seria diretamente afetado com a sua paralisação.

 

______________________

[1] FREITAS, Daniela Bandeira de. A fragmentação administrativa do Estado: fatores determinantes, limitações e problemas jurídico-políticos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 59.

[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 251.

[3] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Uma nova coluna para um novo Direito Administrativo. Revista Consultor Jurídico. 16 mai. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-16/publico-pragmatico-coluna-direito-administrativo. Acesso em: 16 mar. 2023.

[4] POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: teoria social e política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, pg. 13.

[5] Dizer retirado da aula proferida em 12 de agosto de 2021, na disciplina Direito Administrativo Pragmático, ministrada na Universidade de São Paulo (USP).

[6] Releitura do direito administrativo à luz do pragmatismo jurídico. RDA — Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 256, p. 129-163, jan./abr. 2011.

Autores

  • é mestrando em Direito do Estado na Universidade de São Paulo, especialista em Direito dos Contratos pela PUC-Rio, especialista em Direito Público pela Universidade Gama Filho e advogado na diretoria jurídica da Andrade Gutierrez S/A.

  • é advogada de infraestrutura do contencioso regulatório do Dal Pozzo Advogados, com foco em concessões rodoviárias, e pós-graduanda em Processo Civil na Escola Paulista de Direito.

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