Opinião

(Novo) entendimento jurisprudencial acerca do reconhecimento fotográfico

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18 de março de 2023, 17h06

As considerações trazidas para a comunidade jurídica por meio deste artigo decorrem de uma mudança paradigmática do STJ (Superior Tribunal de Justiça) na interpretação do artigo 226, do Código de Processo Penal. 

No âmbito da justiça brasileira, especialmente o tribunal uniformizador da jurisprudência pátria, o STJ, pacificou entendimento de que a norma processual atinente a realização de reconhecimento fotográfico, referido artigo já mencionado, deve ser tratada como obrigatoriedade e não mera recomendação como anteriormente se entendeu.

A evolução jurisprudencial realizada pela corte superior é fruto de profundo estudo científico acerca dos altos índices de erros judiciais decorrentes das falhas produzidas no procedimento de reconhecimento fotográfico.

Os estudos apontam ainda de forma bastante precisa a ocorrência de falha humana quando da realização do mencionado processo de revolvimento de experiências passadas, o que implica em necessidade de criteriosa observação da vontade do legislador, a qual estabeleceu rígidos requisitos para realização de reconhecimento em sede de processo criminal.

O caminhar processual e o antropológico conhecimento decorrente da análise de diversos processos, possibilitou a conclusão que várias condenações são produzidas com base em erros judiciários contidos no reconhecimento de fotografia, em grande parte dessas situações iniciadas com errôneos trabalhos realizados pela polícia judiciária e chancelados por grande parcela da máquina judiciária.

Reconhecimento fotográfico na norma processual brasileira
Como cediço, vige em nosso ordenamento jurídico um rol de direitos e garantias processuais, as quais se materializam quando o aparato estatal, no curso da persecução penal, intervém na esfera das liberdades individuais.

A busca pela verdade é, além de um postulado legal, um dever institucional do sistema de justiça, seja na esfera policial, quando da atribuição do delegado de polícia, seja na fase judicial, quando das atribuições do promotor, fiscal da lei e custos legis definido pela Constituição e por fim, da competência do respectivo Juízo, instituído na pessoa de um magistrado ou, em casos específicos, de colegiado.

Prevê o artigo 6º, inciso VI, do CPP, dentre outros incisos que abordam os deveres da autoridade policial na apuração de um fato crime, que é atribuição do delegado de polícia "proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações".

No âmbito processual, seja em qualquer matéria específica, principalmente na esfera penal, momento em que se discute a interferência da norma jurídica nos dois maiores bem jurídicos tutelados, quais sejam, a vida e a liberdade, existem diretrizes postas na legislação acerca dos limites de ação do poder judicial na vida dos jurisdicionados.

Importante previamente colacionar o texto da norma legal, diga-se o artigo 226, do Código de Processo Penal:

"Artigo 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento."

Infere-se da normativa processual que é regra, portanto, de logo destaca-se não tratar de mera recomendação ou comando opcional, é obrigatório o cumprimento dos pormenores constantes na lei quando da realização de reconhecimento fotográfico, uma vez que se trata de garantia do investigado, não havendo na legislação qualquer previsão de mitigação, nem podendo servir de precedente para que haja qualquer vilipêndio ao que dimana do texto de lei, repita-se, é a regra.

Narra o inciso II, do artigo 226, do CPP, que a pessoa a ser reconhecida deve ser colocada ao lado de outras que tiver semelhança.

A validade do procedimento requer a observância integral das exigências normativas, sob pena de se caracterizar um juízo de conveniência daquele que conduz a investigação.

O reconhecimento na maioria dos processos muito mais parece um procedimento de formalização da indução policial.

Complementa-se, no que diz respeito a formalidade e perfectibilização do ato, que é crucial pontuar que diversos procedimentos realizados, a autoridade policial sequer faz menção ao artigo 226, do CPP, ou seja, desprezando o comando que rege o ato ali praticado.

O ato quando viciado traz prejuízos inestimáveis ao caminhar processual, vilipendiando os postulados constitucionais e a norma posta.

Destacamos novamente a regra contida no Código de Processo Penal, desta vez, quando se trata da incomunicabilidade das testemunhas e lisura do procedimento.

Convém destacar a colação do artigo 228, do Código de Processo Penal, in verbis:

"Artigo 228.  Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas."

Saliente-se que grande parte dos reconhecimentos realizados sequer se procede com a separação das testemunhas, se revelando, eu diria, procedimento de indicação fotográfica do suspeito investigado.

Assim, é forçoso concluir que a rigorosidade do trabalho policial é crucial para que os vícios cometidos no curso da fase pré-processual em decorrência da obrigatoriedade de cumprimento da norma referente ao reconhecimento fotográfico, não venham a ser transmutados para fase processual.

Memória humana
Inobstante as pontuações já ventiladas de cunho puramente objetivo, o que simplesmente torna os atos realizados pela autoridade policial como nulos e inválidos, implicando em seu desentranhamento do processo, estudos referentes a memória possuem relevo e conexão com os erros judiciários.

A psicologia define a memória como "o meio pelo qual uma pessoa recorre às suas experiências passadas a fim de usar essas informações no presente; refer[indo]-se a um processo de mecanismos dinâmicos associados à retenção e recuperação da informação" (STERNBERG, R. J. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000, p. 204).

O reconhecimento é, portanto, um juízo psicológico de identidade estabelecido por alguém, mediante método comparativo entre uma percepção presente e outra ocorrida ou vivida no passado.

Esse processo de revolvimento memórico não é isento de falhas, uma vez que decorre de estímulos perceptivos entre um cenáculo vivido ou presenciado e circunstâncias e elementos apresentados atualmente.

As memórias podem até mesmo, conforme já atestado em estudos reais, decorrer da convergência de lembranças verdadeiras e de sugestões vindas de outras pessoas, tornando o indivíduo suscetível a esquecer a fonte da informação, bem como a não perceber a origem da informação sugestionada quando se é interrogado de maneira evocativa. Aliás, não é porque o registro das memórias é expresso com confiança, detalhe e emoção, que necessariamente o evento tenha ocorrido tal como narrado.

Loftus e Palmer, ao estudar a recordação de testemunhas oculares, observaram o "Efeito da Falsa Informação" (Misinformation Effects), no qual, imediatamente depois do evento, é apresentada uma informação coerente  mas falsa  para, em seguida, testar a memória. Verificaram que os participantes do estudo apresentaram aumento nos índices de reconhecimento falso e diminuição nos de verdadeiro. Portanto, as falsas memórias tanto podem se originar espontaneamente como podem ser implantadas. As espontâneas são criadas internamente no indivíduo como resultado do processo normal de compreensão do evento, enquanto as sugestionadas dizem respeito às lembranças resultantes de um estímulo externo, intencional ou não, cujo conteúdo não pertence ao episódio vivido, embora seja coerente com o fato.

Partindo dos estudos realizados por Real Martinez, Fariña Rivera e Arce Fernandez, Aury Lopes Júnior observa que há diversos fatores que modulam a qualidade da identificação, os quais não podem ser desconsiderados. O resultado do reconhecimento depende, pois, tanto da capacidade de memorização do reconhecedor quanto de diversos aspectos externos que podem influenciá-lo. Exemplificativamente: o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor (tempo de duração do evento criminoso); a gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos, aspectos geográficos etc); a natureza do crime (com ou sem violência física, grau de violência psicológica etc.).

Os apontamentos científicos servem para demonstrar as inúmeras circunstâncias imateriais e intangíveis que interferem no processo de reconhecimento, devendo ser um procedimento sério e criterioso para não pôr em risco danos insuperáveis se aceitos para aferição de culpabilidade quando feitos ao arrepio da lei, o que é o caso dos autos.

Noutro giro, dada a irreversibilidade dos danos em caso de aceitação de reconhecimento nulo, como o dos autos, convém salientar que segundo pesquisa feita pelo Innocence Project, uma ONG especializada em pedir indenização ao Estado em decorrência de condenações de pessoas inocentes, aproximadamente 75% das condenações de inocentes se deve a erros cometidos pelas vítimas e por testemunhas ao identificar os suspeitos no ato do reconhecimento. Em 38% dos casos em que houve esse erro, várias testemunhas oculares identificaram incorretamente o mesmo suspeito inocente.

Doutrina e a jurisprudência recente do tema
Regressando a matéria técnica, lógico, sem desprezar os dados científicos e doutrinários sobre o reconhecimento e as falhas da memória humana, mas, revela-se que o poder judiciário atribuir validade, ainda que de maneira conjunta ou dissociada, um elemento de prova nulo, que viola gritantemente o que determina a legislação.

Acerca da matéria, é destacável o ensinamento de Gustavo Badaró:

Reconhecimento pessoal já foi apontado como a mais falha e precária das provas. A principal causa de erro no reconhecimento é a semelhança entre as pessoas. A avaliação do valor probatório do reconhecimento envolve um fator essencial: o confronto entre a descrição antecipadamente feita e os traços físicos da pessoa identificada. Por isso, é necessária a estrita observância do procedimento probatório previsto no artigo 226 do CPP, para que o reconhecimento pessoal possa ser valorado como prova. O reconhecimento fotográfico tem sido aceito como meio de prova válido, desde que não seja possível a realização do reconhecimento pessoal. O principal argumento para a aceitação do reconhecimento fotográfico é, justamente, que se trataria de um 'meio de prova atípico'. Todavia, o reconhecimento fotográfico não é prova atípica, mas um meio de prova irritual, que vulnera o procedimento probatório previsto no artigo 226, substituindo a segunda fase de comparação física e ao vivo da pessoa a ser reconhecida pela comparação fotográfica. Não se trata, pois, de um simples caso de prova atípica, que seria admissível ante a regra do livre convencimento judicial. As formalidades de que se cerca o reconhecimento pessoal são a própria garantia da viabilidade do reconhecimento como prova, visando a obtenção de um elemento mais confiável de convencimento."

Nesse mesmo diapasão, ensina Aury Lopes Júnior:

O reconhecimento de pessoas e coisas está previsto nos artigos 226 e s. do CPP, e pode ocorrer tanto na fase pré-processual como também processual. O ponto de estrangulamento é o nível de (in)observância por parte dos juízes e delegados da forma prevista no Código de Processo Penal: Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que  em matéria processual penal  forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer "reconhecimentos informais", admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado.

Assim, resta indubitável que o processo de reconhecimento não está aberto a informalidades e adaptações a conveniência da autoridade policial. Do contrário, ele é formal e se encontra estabelecido no artigo 226, do CPP.

É de se obtemperar que dado o caráter inquisitorial do Inquérito Policial, o que na prática culmina em diversas práticas abusivas e ilegais, não se pode aceitar a transmutação de uma teratogenia jurídica a formalização do processo, vindo a prejudicar a entrega da tutela jurisdicional e gerar grave insegurança jurídica.

Sobre a matéria ainda, em especial as posições recentes dos tribunais, merece destaque o trecho do voto do ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus nº 598.886/SC, ocasião em que se anulou reconhecimento fotográfico em desacordo com o artigo 226, do CPP, procedendo-se alteração do então entendimento adotado pela corte.

"[…] Não se trata de situação em que as filmagens poderiam dar alguma credibilidade ao reconhecimento, mormente quando se utilizam, em subsídio, inovações tecnológicas como a reconhecimento facial e biométrico. Na espécie, ainda que conste, dos autos, a informação de que foram examinadas as câmeras do estacionamento e perceberam que duas pessoas com vestimentas similares às dos assaltantes passaram no local horas antes, não há indicativo de que foi a partir dessas filmagens que se extraíram as fotografias que importaram no reconhecimento de um dos suspeitos, até porque estavam eles encapuzados, o que tornaria inócua ou, pelo menos, frágil a identificação de ambos apenas porque estavam com roupas parecidas  sequer descritas pela autoridade policial  com as dos autores do roubo." 

No ano anterior, a corte voltou a modificar no sentido de aprimorar o entendimento sobre o tema, julgando na data de 15/3/2022 o Habeas Corpus 712.781/RJ, processo também de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz.

Apenas por apego a construção lógica do entendimento, alberga-se argumentação referente a estrutura inquisitória e mal conduzida das investigações no brasil, até interferências externas no processo de reconhecimento, cumpre destacar o ponto 3 da ementa que define a posição defendida, destaque-se:

"[…] Se, todavia, tal prova for produzida em desacordo com o disposto no artigo 226 do CPP, deverá ser considerada inválida, o que implica a impossibilidade de seu uso para lastrear juízo de certeza da autoria do crime, mesmo que de forma suplementar. Mais do que isso, inválido o reconhecimento, não poderá ele servir nem para lastrear outras decisões, ainda que de menor rigor quanto ao standard probatório exigido, tais como a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia e a pronúncia."

Desta forma, observa-se nova posição, de cunho evolutivo do referido entendimento, onde se destaca a invalidade da prova quando produzida em desacordo com a dicção do artigo 226.

Verifica-se da posição doutrinária e do recente entendimento dos tribunais superiores, a conclusão de invalidade, ainda que suplementada em outras provas, do procedimento de reconhecimento realizado em desarmonia com a previsão contida no Código de Processo Penal, maculando o exercício da prestação jurisdicional.

Conclusão
Importa consignar a título de convicções extraídas do estudo da evolução realizada pelo STJ ao posicionar nova interpretação do artigo 226, que a legislação processual não aceita adequações ao trabalho prático investigativo quando do exercício da polícia judiciária.

Incontáveis erros judiciários resultantes de falhos reconhecimentos fotográficos levados ao conhecimento dos tribunais superiores, provocaram os magistrados a uniformizarem a impossibilidade de admitir provas em desacordo com a vontade do legislador.

A base para que se infirmasse nova posição foram os estudos científicos que comprovaram os altos índices de falhas da memória humana, representando grande parcela de condenações equivocadas em decorrência da falibilidade do reconhecedor.

Extrai-se ainda do estudo uma necessidade incessantes de aperfeiçoamento da estrutura processual criminal brasileira, visando a repressão aos equívocos judiciais gerados por investigações falhas, as quais não prejudicam somente o processo, mas todo o sistema de justiça criminal.

Referências
STERNBERG, R. J. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
LOFTUS, E. F. Memory malleability: Constructivist and fuzzy-trace explanations. Learning and Individual Differences, 7, 2005.
LOFTUS, E. F. Make believe memories. American Psychologist, 277, 2003.
LOFTUS, E. F. Creating false memories. Scientific American, 1997.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

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