Opinião

Art. 21, §4º da LIA: independência "mitigada" das instâncias punitivas

Autores

5 de março de 2023, 6h11

Dentre as inúmeras e significativas alterações promovidas pela Lei nº 14.230/21 na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), uma delas atrai especial atenção quando a pauta é o estreitamento de fronteiras entre direito administrativo sancionador e direito penal. Trata-se do artigo 21, §4º, cuja redação é a seguinte:

§ 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Pois se antes não havia previsão na LIA sobre a comunicabilidade dos efeitos da absolvição penal — cuja viabilidade, em bases restritas, concebia-se pela conjugação do artigo 935 do CC[1] com os artigos 65[2] e 66[3] do CPP (limitados às hipóteses de absolvição por inexistência material do fato, negativa de autoria e exclusão da ilicitude)[4] —, o panorama normativo agora é outro.

A inclusão do artigo 21, §4º estabeleceu uma espécie de comunicação ampla dos efeitos da absolvição penal à ação por improbidade administrativa, de forma que quaisquer dos fundamentos previstos no art. 386 do CPP passam, agora, a "impedir o trâmite" da ação em que se discutam os mesmos fatos — seja por motivo de insuficiência probatória (incisos II, V e VII); atipicidade da conduta (inciso III); circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (inciso VI); ou inexistência do fato e negativa de autoria (incisos I e IV), estas, há muito, já consolidadas no âmbito jurisprudencial[5].

Conforme justificativa apresentada pelo deputado federal Carlos Zarattini (relator do projeto de lei que resultou na Lei nº 14.230/21), a previsão contida no artigo 21, §4º da LIA tem por finalidade "evitar o bis in idem e para preservar a coerência da jurisdição", de modo que, "[a]inda que se tratem de matérias diferentes, decisões em outras esferas da jurisdição influirão na decisão de improbidade administrativa em benefício do réu"[6].

A preocupação em agregar coerência às interfaces entre direito administrativo sancionador e direito penal é, de fato, justificada. Afinal, na senda das recentes "operações" deflagradas no país, tornou-se corriqueira a tramitação correlata de ações penais e ações por improbidade administrativa instauradas à base de um mesmíssimo suporte fático (e probatório), isso quando não ajuizadas à base de uma mesmíssima narrativa, em manifesto "copia e cola" de imputações.

Um exemplo dessa metástase punitiva pode ser extraído da seguinte passagem de petição inicial de ação por improbidade administrativa movida no contexto da "operação lava jato", na qual se deixa claro o propósito de fazer da demanda sancionadora um singelo "jogo jogado" (contra o réu) da demanda penal correlata:

"Quando a ação de improbidade administrativa decorre de inquéritos policiais e ilícitos penais, tal como se dá no presente caso, sustenta-se que é desproporcional e contraproducente exigir-se a abertura de uma fase instrutória com longas perícias, oitivas de inúmeras testemunhas, dentre outras dilações probatórias, quando já existirem provas robustas nas ações penais que sirvam de base para o ajuizamento das ações de improbidade. É que, em havendo condutas tipificadas como crime, ipso facto, estará caracterizado o ato como ímprobo."[7]

Sucede que, em 27/12/2022, o artigo 21, §4º da LIA teve sua eficácia suspensa por decisão cautelar proferida pelo ministro Alexandre de Moraes no âmbito da ADI nº 7.236/DF. Segundo o ministro, "a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da autonomia das instâncias", circunstância que indicaria, "ao menos em sede de cognição sumária, a necessidade do provimento cautelar".

Essa decisão, no entanto, parece não impedir que se continue a sustentar a produção dos efeitos da absolvição penal no âmbito de ações por improbidade administrativa em que se discutam os mesmos fatos, ainda que em parâmetros menos abrangentes do que aqueles originalmente previstos no artigo 21, §4º, da LIA.

Parte da questão é resolvida pelo §3º do artigo 21 da LIA (não atingido pela cautelar na ADI nº 7.236/DF), que permanece prevendo a comunicação, à esfera da improbidade, da absolvição penal fundamentada na "inexistência da conduta" ou na "negativa da autoria" (hipóteses equivalentes àquelas previstas nos incisos I e IV do art. 386 do CPP).

Quanto aos demais fundamentos da absolvição penal, em especial aqueles alusivos à insuficiência probatória (artigo 386, II, V e VII do CPP), bem como situações de rejeição da denúncia por ausência de justa causa (artigo 395, II, do CPP), a definição da controvérsia passa pela análise de precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça anteriores à própria vigência do artigo 21, §4º, da LIA, os quais vêm consolidando uma inovadora concepção de "independência mitigada" de esferas punitivas, temperada pelos princípios constitucionais do ne bis in idem e da segurança jurídica.

Nesse contexto, ao suspender a eficácia do artigo 21, §4º, da LIA, o próprio ministro Alexandre de Moraes reconheceu ter a jurisprudência do STF avançado em direção à consolidação de uma "independência mitigada" entre as esferas punitivas. Ao fazê-lo, o ministro aludiu de forma expressa ao precedente firmado pela Suprema Corte na Reclamação nº 41.557/SP, oportunidade em que determinado o trancamento de ação por improbidade administrativa na qual se discutiam os mesmos fatos objeto de ação penal trancada em sede de Habeas Corpus sob o fundamento da ausência de justa causa. Nos termos do voto-condutor proferido pelo ministro Gilmar Mendes:

"(…) o subsistema do direito penal comina, de modo geral, sanções mais graves do que o direito administrativo sancionador. Isso significa que mesmo que se venha a aplicar princípios penais no âmbito do direito administrativo sancionador — premissa com a qual estamos totalmente de acordo, o escrutínio do processo penal será sempre mais rigoroso. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito do subsistema do direito administrativo sancionador. Todavia, a construção reversa da equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito administrativo sancionador pode e deve ser revista pelo subsistema do direito penal — este é ponto da independência mitigada."[8].

Semelhante padrão decisório viria a ser empregado no âmbito da Reclamação nº 46.343/DF MC, oportunidade em que concedida medida cautelar para suspender a tramitação de ação por improbidade administrativa que repristinava fatos objeto de ação penal cuja denúncia havia sido rejeitada por ausência de justa causa em decisão definitiva pela Segunda Turma da Suprema Corte[9].

Adotando entendimento similar, ao constatar que "o único fato que motivou a penalidade administrativa resultou em absolvição no âmbito criminal, ainda que por ausência de provas", o STJ também assentou que "a autonomia das esferas há que ceder espaço à coerência que deve existir entre as decisões sancionatórias". Afinal, nas palavras do ministro Sebastião Reis Júnior, "não há como ser mantida a incoerência de se ter o mesmo fato por não provado na esfera criminal e por provado na esfera administrativa"[10].

Ressalta-se, ademais, que, em recentíssima decisão — inclusive prolatada posteriormente à suspensão do artigo 21, §4º da LIA na ADI nº 7.236/DF — o ministro Gilmar Mendes salientou que a suspensão de referido dispositivo legal "não atinge a vedação constitucional do ne bis in idem", bem assim que, "na perspectiva de ampliar o espectro de garantias, desde que a instância penal tenha exaurido, por decisão definitiva (sentença ou rejeição da denúncia por ausência de justa causa material), incide a regra do ne bis in idem em todo espectro sancionatório estatal"[11].

Nesses termos, não obstante a suspensão da eficácia do artigo 21, §4º da LIA, e tendo como norte os princípios constitucionais do ne bis in idem e da segurança jurídica, viável continuar a sustentar a possibilidade de comunicação dos efeitos de decisão penal definitiva que reconheça a improcedência da acusação (tanto em sentença como em sede de juízo preliminar de admissibilidade) à ação por improbidade administrativa que tenha por objeto os mesmos fatos.


[1] Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

[2] Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[3] Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

[4] No mesmo sentido, o art. 126 da Lei nº 8.112/1990 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Federais), ao prever que “[a] responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria” e o art. 7º da Lei nº 13.869/2019 (Lei de abuso de Autoridade), ao prever que “[a]s responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal”. No âmbito internacional, pode-se citar o art. 8.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporado no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 678/92, ao prever que: “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

[5] No Supremo Tribunal Federal, pode-se citar: “[…] 2. Independência entre as esferas penal e administrativa, salvo quando, na instância penal, se decida pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria, casos em que essas conclusões repercutem na seara administrativa, o que não ocorre na espécie” (STF, RE nº 1044681 AgR. SEGUNDA TURMA, Relator: Min. Dias Toffoli, j. 06 mar. 2018, p. 21 mar. 2018). No Superior Tribunal de Justiça, pode-se citar: “[…] 2. Independências das instâncias: a absolvição criminal só afasta a responsabilidade administrativa e/ou civil quando restar proclamada a inexistência do fato ou de autoria, considerando a independência das três esferas de jurisdição” (STJ, HC nº 396.390/SP, QUINTA TURMA, Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 17 ago. 2017, p. 29 ago. 2017).

[6] Conforme Parecer Preliminar de Plenário nº 2 pelo Deputado Federal Relator Carlos Zarattini (PT/SP). Projeto de Lei nº 10.887, de 2018. Altera a Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2028078>. Acesso em: 06 jan. 2023.

[7] Trecho da inicial da ação por improbidade administrativa nº 5057144-14.2018.4.04.7000: “Evento 1 – INIC1”, ajuizada em 6 de dezembro de 2018 perante a 1ª Vara Federal de Curitiba/PR, em litisconsórcio ativo formado pelo Ministério Público Federal – MPF e pelo PETRÓLEO BRASILEIRO S/A – PETROBRAS.

[8] STF, Rcl 41557, Relator: Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 15 dez. 2020, p. 10 mar. 2021.

[9] “Como se observa, trata-se de mais do que mera rejeição da denúncia lastreada no benefício da dúvida, mas do estabelecimento de um juízo colegiado definitivo do STF quanto à inexistência de justa causa (autoria e materialidade) para imputação aos reclamantes de conduta típica a partir dos elementos de prova indicados. Isto significa que esta Suprema Corte verificou não ser possível extrair uma hipótese acusatória plausível quanto à autoria a partir dos fatos coligidos na investigação. (…) Assim, verifico, em juízo cautelar, a identidade entre sujeito, conjunto fático-probatório e sanções de natureza punitiva entre o INQ 3.994/DF e as ações de improbidade descritas, e reconheço o fumus boni juris necessário para deferir a liminar pleiteada pelos reclamantes.” (STF, Rcl nº 46.343/DF MC. Relator: Min. Gilmar Mendes, j. 19 abr. 2021. Em que pese a decisão esteja sob segredo de justiça, esclarece-se que o seu acesso foi possível em razão de o documento ter sido juntado, pelos procuradores dos reclamantes, nos autos de processo público em trâmite no Superior Tribunal de Justiça [REsp nº 1913132/PR, fls. 505/525 do e-STJ]).

[10] STJ, AgRg nos EDcl no HC n. 601.533/SP, Relator: Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, j. 21 set. 2021, p. 1º out. 2021.

[11] STF, Rcl. nº 57.215/DF MC, Rel.: Min. Gilmar Mendes, j. 06 jan. 2023, p. 09 jan. 2023.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!