Opinião

Sociedade Anônima do Futebol: o alcance do regime centralizado de execuções

Autor

  • Victor Targino de Araujo

    é advogado professor na CBF Academy na Universidade Paulista (Unip) na Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e no Centro de Estudos em Direito e Negócios (Cedin) pós-graduado em Direito Desportivo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) master em Gestão Esportiva e Direito pelo ISDE em Barcelona gestor de League of Legends (eSports) da Netshoes Miners sócio em Direito do Trabalho Esporte e Entretenimento no escritório GGAC e consultor jurídico do Vasco.

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1 de março de 2023, 19h30

Rio, dia 25 de janeiro de 2023. Em decisão unânime, a 10ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, em caso envolvendo o Botafogo Futebol e Regatas, firmou o seguinte entendimento:

Wikimedia Commons
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"REGIME CENTRALIZADO DE EXECUÇÃO. LEI 14.139/21. ALCANCE. O Regime Centralizado de Execuções, de que trata a Lei nº 14.139/21, não abrange toda e qualquer dívida trabalhista do clube, mas apenas aquelas decorrentes do objeto social da Sociedade Anônima do Futebol. No caso, em se tratando de dívida oriunda de contrato celebrado com atleta profissional de basquetebol, permite-se o prosseguimento da execução. (Proc. 0100985-84.2021.5.01.0002)".

Dita decisão, aqui referenciada como leading case, põe à prova um dos mecanismos trazidos pelo legislador na Lei da Sociedade Anônima do Futebol (Lei 14.139/21 — Lei da SAF) para tentar solucionar o endividamento severo das associações civis desportivas nacionais: o Regime Centralizado de Execuções (RCE).

Com efeito, o RCE tem por escopo, como o próprio nome diz, centralizar todas as inúmeras execuções existentes contra a associação devedora num único processo, sob um juiz centralizador, a quem compete deferir um plano de pagamentos específico e zelar pelo fiel cumprimento deste. 

À Sociedade Anônima do Futebol (SAF), por sua vez, compete destinar regularmente, por força do artigo 10, I, da Lei da SAF, no mínimo, 20% (vinte por cento) de suas receitas mensais à associação civil, a fim de que esta venha a se valer de tal recurso para pagar os credores dentro do RCE. A ordem de preferência dos credores é estabelecida no artigo 17 da Lei da SAF, sendo:

"I – idosos, nos termos da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso);
II – pessoas com doenças graves;
III – pessoas cujos créditos de natureza salarial sejam inferiores a 60 (sessenta) salários-mínimos;
IV – gestantes;
V – pessoas vítimas de acidente de trabalho oriundo da relação de trabalho com o clube ou pessoa jurídica original;
VI – credores com os quais haja acordo que preveja redução da dívida original em pelo menos 30%.
Parágrafo único. Na hipótese de concorrência entre os créditos, os processos mais antigos terão preferência".

Pois bem. Em momento algum a Lei da SAF restringe o RCE a credores relacionados à atividade futebolística. E nem poderia fazê-lo. É fato público e notório que muitas associações civis desportivas nacionais não se limitam à prática do futebol (Clube Náutico Capibaribe, Botafogo Futebol e Regatas, Club de Regatas Vasco da Gama, Sport Club Corinthians Paulista etc.), abrangendo diversas modalidades, olímpicas ou não, suprindo um relevantíssimo papel sociocultural na sociedade brasileira. Não é exagero dizer que a atividade dos clubes associativos na promoção do esporte, em quaisquer de suas manifestações, é essencial à sociedade, suprindo as limitações do Poder Público em cumprir o seu dever constitucional. Também não é errado afirmar que as receitas advindas do departamento de futebol servem e serviram, muitas vezes, ao custeio da operação das demais modalidades, profissionais ou não.

Portanto, a Lei da SAF não foi criada para equacionar o endividamento do futebol brasileiro, apenas. Seu escopo é equacionar o endividamento das associações civis desportivas que promovem o futebol, isolada ou conjuntamente a outras modalidades. Em contrapartida, os credores, que se viam diante do estado quase falimentar de algumas instituições desportivas, passaram a ter esperanças de obter seus créditos, em iguais condições, respeitadas as preferências da lei, já que investidores poderiam injetar, mensalmente, recursos na associação.

Todavia, no leading case acima, um atleta de basquetebol que atuou pelo Botafogo, associação civil sem fins lucrativos que, como o próprio nome diz, mantém futebol e outras modalidades, pretende ver seu crédito trabalhista executado de modo separado e independente do RCE. Consequentemente, em caso de inadimplemento, o atleta poderia, então, penhorar o patrimônio e receitas do club, algo que é vedado pela Lei da SAF enquanto o RCE estiver sendo fielmente cumprido.

É dizer, o atleta pretende ver autorizada a possibilidade de executar o clube de imediato, por toda a dívida consolidada com ele, a despeito dos demais credores submetidos ao RCE. 

Muito respeitosamente, quisesse o legislador limitar o RCE às dívidas relacionadas ao futebol, teria o feito de modo expresso na lei. Todavia, o legislador apenas trouxe limitações quando o tema é responsabilização da SAF, por exemplo, nos artigos 2º, §2º, e 9º, ao criar regras relacionadas ao objeto social desta, notadamente, o futebol.

Diferentemente, os artigos 10 e 13 da Lei da SAF, bem como os seguintes, que tratam do RCE da associação e de sua forma de pagamento, não fazem qualquer obstáculo, ou seja, não expressam vinculação ao objeto social da SAF. Precisamente, ao disciplinar o RCE, o artigo 14, §2º, da Lei da SAF trata de dívidas cíveis e trabalhistas no geral, não trazendo qualquer exceção relativa à sua origem, in verbis:

"§2º O requerimento deverá ser apresentado pelo clube ou pessoa jurídica original e será concedido pelo presidente do Tribunal Regional do Trabalho, quanto às dívidas trabalhistas, e pelo Presidente do Tribunal de Justiça, quanto às dívidas de natureza civil, observados os requisitos de apresentação do plano de credores, conforme disposto no artigo 16 desta Lei."

Certo é que a interpretação jurídica vai muito além da literalidade. A hermenêutica e aplicação do direito impõem a observação dos objetivos da lei e do sistema em que esta é concebida. Contudo, diversamente do entendimento firmado pelo Tribunal Regional no leading case acima, em momento algum o legislador desejou segregar os credores relacionados ao futebol dos demais, mesmo porque seria um enorme desestímulo ao equacionamento dos débitos e geraria desigualdades injustificáveis entre trabalhadores.

Ora, porque um atleta profissional de futebol do ano de 2019, de uma associação civil desportiva, deve ser submetido ao RCE, enquanto um atleta profissional de basquetebol, do mesmo ano, pode executar a associação livremente? Há, na espécie, potencial violação ao Princípio da Isonomia, fundamental e consagrado na Constituição.

Outra regra comum em hermenêutica reza que se o legislador não quis, expressamente, criar distinções, não pode o aplicador do direito fazê-lo. Do contrário, estaria o aplicador do direito, literalmente, usurpando a competência do legislador. Trata-se, mais uma vez, de princípio constitucionalmente consagrado, qual seja, a separação dos Três Poderes.

Assim, com o perdão da repetição, o legislador limitou a responsabilidade da SAF pelas dívidas da associação, mas não trouxe qualquer exceção ou limitação acerca de quais dívidas cíveis e trabalhistas a associação poderia destinar ao RCE.

Por fim, muito respeitosamente, nem mesmo o exame da voluntas legis, isto é, a vontade, a intenção, a finalidade da norma, suportaria o entendimento firmado pela Turma no leading case. Neste sentido, o relatório do deputado federal Fred Costa, cujo teor que recomendou a aprovação do Projeto de Lei nº 5.516/19 — que se tornaria a Lei da SAF, elucidou, à època:

"(…) os principais clubes de futebol brasileiros se encontram bastante endividados, sendo que as dívidas tributárias respondem, em grande parte, por esse quadro. Sequer a concessão de parcelamentos especiais, concedidos em caráter geral, ou desenhados especificamente para o setor do futebol, como foi o caso do concedido pela Lei 13.155, do de 2015, foi suficiente para reduzir o nível de endividamento do setor."

E, em consequência, especificou que a lei viabilizaria ao clube a quitação das suas "obrigações", sem qualquer ressalva ou vinculação quanto à origem destas:

"No tocante ao modo de quitação das obrigações, o artigo 13 dispõe que o clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou, a seu exclusivo critério, pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções (previsto nos artigos 14 a 24 do PL) ou por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 2005.
Os artigos 14 a 24 tratam do concurso de credores por meio do Regime Centralizado de Execuções. Tal regime consiste em concentrar no juízo centralizador as execuções, as receitas e os valores do clube arrecadados na forma do artigo 10 do PL, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada.

[…]
Como forma de endereçar a atual crise financeira vivida pelos clubes e a restrição legal de acesso de associações aos institutos recuperacionais da Lei n° 11.101, de 2005, o PL expressamente permite que os clubes escolham por efetuar o pagamento de suas obrigações seja pela recuperação judicial ou extrajudicial seja pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções."

A própria ementa do Projeto (hoje, ementa da própria Lei), que é de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, fala em tratamento do passivo das entidades de prática desportiva, sem especificar restrições acerca de sua origem ou vinculações ao futebol, portanto:

"Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002."

Logo, fosse de interesse do legislador em tratar apenas o passivo oriundo do futebol, assim estaria expresso no texto. Em verdade, apesar de a SAF existir apenas para o futebol — um "meio de financiamento da atividade futebolística", como a própria ementa diz —, a injeção de recursos que dela resultam não está limitada a servir apenas ao passivo oriundo do futebol. 

Ao contrário, o capital investido serve ao equacionamento completo do endividamento severo dos clubes associativos que sejam entidades de prática desportiva, independentemente da origem da dívida (se do futebol, do basquetebol ou de qualquer outra modalidade).

Autores

  • é advogado, professor na CBF Academy, na Universidade Paulista (Unip), na Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e no Centro de Estudos em Direito e Negócios (Cedin), pós-graduado em Direito Desportivo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), master em Gestão Esportiva e Direito pelo ISDE em Barcelona, gestor de League of Legends (eSports) da Netshoes Miners, sócio em Direito do Trabalho, Esporte e Entretenimento no escritório GGAC e consultor jurídico do Vasco.

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