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Consultor Jurídico

Desafios de um modelo de regulação em rede contra as fake news

30 de maio de 2023, 8h00

Por Natasha Schmitt Caccia Salinas

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Em face dos recentes desdobramentos da tramitação do Projeto de Lei das Fake News (PL nº 2.630/2020), tem circulado a notícia de que a Anatel, agência cotada para regular o conteúdo das plataformas digitais no Brasil, propôs modelo de fiscalização baseado em blockchain compartilhado por uma comunidade de checagem. Segundo a proposta defendida pela agência, a fiscalização de conteúdo das plataformas digitais ficaria a cargo de um grupo composto por veículos jornalísticos, agências de fast-checking, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), big techs e organizações da sociedade civil que atuam no combate à notícias de conteúdo falso (fake news) e discurso de ódio na internet.

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Essencial à solução proposta pela Anatel é o fato de que a agência não estaria atuando sozinha nessa atividade regulatória, já que compartilharia a fiscalização do conteúdo das plataformas com os demais atores que comporiam o referido grupo de checagem. A criação de uma rede de regulação contornaria, portanto, as objeções parlamentares à atuação da agência como regulador de conteúdo das plataformas digitais.

A solução proposta pela Anatel nada mais é do que um modelo de regulação em rede, em que atores privados (quasi-regulators) participam da atividade regulatória em coordenação com órgãos reguladores estatais. Uma rede de regulação, em sentido lato [1], nada mais é do que um conjunto de entidades responsáveis por regular conjuntamente determinada atividade ou setor. Em uma mesma rede regulatória podem atuar, por exemplo, entidades supranacionais estatais e não estatais, agências reguladoras nacionais e entidades privadas com ou sem fins lucrativos.

Redes de regulação não são propriamente uma novidade no Brasil. Elas se manifestam, por exemplo, em situações em que órgãos reguladores dependem da atuação de entidades privadas certificadoras para autorizar o uso e comercialização de produtos industriais (e.g. aparelhos para as telecomunicações, produtos para a saúde) [2]. A própria Anatel figura entre as entidades da administração pública que conta com a atuação de entidades privadas, a quem denomina de Organismos de Certificação Designados (OCDs), para certificar produtos para as telecomunicações que desejam ser comercializados. É só após concluída a certificação de um produto para telecomunicações por uma OCD que a Anatel homologa o seu uso e a venda.

Na área ambiental, há muito tempo se atribuiu a agentes regulados a responsabilidade por apresentar estudos de impacto ambiental em processos de licenciamento, bem como avaliar e monitorar a segurança de processos produtivos potencialmente degradadores do meio ambiente (e.g. barragem de mineração).

Essas atividades de certificação, monitoramento e avaliação, acessórias ao poder de polícia, têm em comum o fato de que são exercidas por entidades privadas cuja atuação deve ser conformada a normas editadas por órgãos estatais como Anatel, Inmetro, Ministério do Meio Ambiente e Agência Nacional de Mineração (ANM). Entidades privadas não estatais podem, ainda, exercer atividades ainda mais centrais para a regulação. Esse é o caso da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que exerce atividade normativa de forma exclusiva e com expresso reconhecimento legal.

O modelo de regulação em rede apresenta promissoras vantagens. Redes de regulação são caracterizadas por baixa intervenção estatal e normalmente estão atreladas a modos mais inventivos de regulação, reunindo não apenas atores estatais com não estatais, mas também misturando estratégias regulatórias variadas (e.g. divulgação de informações, incentivos econômicos, naming and shaming etc). Por essa razão, modelos de regulação em rede estão normalmente associados ao que Gunningham e Grabosky denominaram de smart regulation, que pode se revelar mais adaptável a rápidas transformações sociais e tecnológicas.

A implementação de um modelo de regulação em rede pode, além disso, ser menos custosa. Isso ocorre não só porque a regulação assume um aspecto mais responsivo, no qual há seletividade no emprego de estratégias regulatórias mais rígidas (e.g. comando e controle), mas também porque os custos da regulação são compartilhados entre o Estado e atores privados. É já bastante conhecido o argumento de John Braithwaite de que um modelo de regulação em rede poderia ser uma solução especialmente adequada para países em desenvolvimento, cujas estruturas administrativas estatais dispõem de menores recursos para regular setores chave da economia.

Há, no entanto, diversos riscos atrelados à implementação de um modelo de regulação em rede. O principal deles é o da assimetria de informação entre o regulador estatal e as entidades privadas atuantes na rede de regulação. Se um determinado modelo de regulação depender integralmente das informações geradas e divulgadas por atores privados, e se o ente regulador estatal não tiver condições de avaliar de forma tempestiva a veracidade das informações recebidas, tal como ocorreu nos recentes desastres ambientais envolvendo barragens de mineração em Minas Gerais [3], o ambiente regulatório se torna notavelmente fragilizado. Além disso, mesmo que as informações prestadas por agentes privados estejam corretas, arranjos regulatórios entre entes estatais e não estatais podem falhar se os primeiros não dispuserem de capacidade institucional para gerenciar grandes volumes de dados e, assim, oferecer respostas rápidas e ações concretas para prevenir e remediar comportamentos indesejados.

Um modelo de regulação em rede também pode apresentar sérios desafios de coordenação regulatória [4]. Problemas de coordenação tendem a ser menores [5] em redes de regulação hierárquicas, tais como as mencionadas acima em que um regulador estatal (e.g. Inmetro) define as regras e políticas que deverão ser aplicadas pelos demais reguladores que compõem a rede (e.g. organismos de certificação acreditados).

Em redes não hierárquicas, no entanto, a conciliação de interesses entre atores com capacidades, recursos, habilidades, culturas regulatórias e responsabilidades jurídicas distintas pode ser revelar extremamente desafiadora para garantir a efetividade das políticas regulatórias e promover sua legitimidade. Nem todos os atores em uma rede de regulação não hierárquica são capazes de fazer uso dinâmico e responsivo de estratégias regulatórias, as quais devem constantemente ser revistas e adaptadas às rápidas transformações econômicas e sociais. Além disso, ainda que o funcionamento dessa rede de regulação possa ser orientado por regras e procedimentos de tomada de decisão previamente definidos (o que parece ser o caso da nova rede de regulação proposta pela Anatel), haverá sempre o risco de que seus membros utilizem esses processos estrategicamente de modo a apenas promover seus interesses organizacionais. Decisões tomadas por redes de regulação são, portanto, potencialmente mais suscetíveis a problemas de equidade, legitimidade e transparência do que decisões tomadas em ambientes regulatórios tradicionais.

Os processos de aprendizagem e de detecção de falhas em estruturas regulatórias não convencionais apresentam uma complexidade muito maior do que em esquemas regulatórios tradicionais. Modelos de regulação em rede, em razão do seu alto grau de sofisticação, podem desonerar o Estado de parte dos custos regulatórios, mas podem, em contrapartida, incrementar a complexidade do processo regulatório, tornando-o muito mais custoso do que ele aparenta ser. Baldwin observa, com razão, que os custos de implementação de análise de impacto regulatório e de avaliação de resultado regulatório de normas implementadas por redes regulatórias podem ser consideravelmente mais altos do que aqueles incorridos em ambientes regulatórios hierárquicos e centralizados no Estado. A premissa de que um modelo de regulação em rede é necessariamente menos custoso pode, portanto, não se confirmar na prática.

Não pretendo, com este artigo, rejeitar de plano a proposta de regulação em rede defendida pela Anatel, mas tão somente alertar para o fato de que modelos de regulação em rede não são panaceia para questões regulatórias, e que, portanto, devem ser muito bem planejados se tiverem a pretensão de resolver problemas complexos como aqueles envolvidos na regulação das plataformas digitais no Brasil.

 


[1] Há um sentido mais restrito de rede, que se refere a modo de organização não hierárquico. Em sentido lato, no entanto, admite-se que uma rede de regulação possa assumir forma hierárquica, conforme demonstro a seguir.

[2] Uma análise detalhada dessas atividades pode ser encontrada aqui.

[3] Uma análise dessa e de outras falhas regulatórias envolvendo o rompimento da barragem 1 do Córrego do Feijão, em Brumadinho, pode ser consultada aqui.

[4] Uma análise introdutória, porém precisa, dos problemas de coordenação regulatória envolvendo redes de regulação pode ser consultada aqui.

[5] Problemas de coordenação podem persistir mesmo em redes reconhecidamente hierárquicas, especialmente se elas tiverem estrutura complexa (e.g. redes de regulação envolvendo atores públicos e privados de diferentes níveis federativos).