Opinião

Nova Lei de Licitações: Súmula 27 do TCE-SP e Súmula 275 do TCU

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

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25 de maio de 2023, 11h17

Pedimos licença à egrégia Corte de Contas Bandeirante para afirmarmos que a Súmula 27 será mantida mesmo com a Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC). Pedimos licença, ainda, ao TCU para afirmarmos que a Súmula 275 do TCU deverá ser superada de forma a coincidir com a visionária Súmula 27.

Referida Súmula do TCE/SP prevê:

“SÚMULA Nº 27 – Em procedimento licitatório, a cumulação das exigências de caução de participação e de capital social mínimo insere-se no poder discricionário do administrador, respeitados os limites previstos na lei de regência.” (grifos nossos).

O tema reflete a necessidade de “transversalidade” na hermenêutica das Cortes de Contas e da Lei de Licitações.

“Transversalidade” é o termo utilizado com frequência na área acadêmica para denominar a necessidade de diálogo entre as inúmeras disciplinas. É uma metáfora já que faz referência ao quadro de disciplinas registrado na folha de papel e uma linha “transversal” riscando o quadro e ligando, metaforicamente, várias disciplinas.

Temas econômicos permeiam a interpretação da Corte de Contas, forçando o caráter multidisciplinar das decisões das Cortes de Contas, já que a questão econômico-financeira não pode ser ignorada.

A subjetividade e o caráter interdisciplinar são refletidos na Súmula 275 do TCU que tem hermenêutica diametralmente oposta inobstante a identidade de regras legislativas. Assim:

“SÚMULA Nº 275 – Para fins de qualificação econômico-financeira, a Administração pode exigir das licitantes, de forma não cumulativa, capital social mínimo, patrimônio líquido mínimo ou garantias que assegurem o adimplemento do contrato a ser celebrado, no caso de compras para entrega futura e de execução de obras e serviços.” ( grifos nossos).

Notemos que a súmula 27 do TCE-SP e 275 do TCU tem interpretações muitíssimo distintas. A Súmula do TCE-SP é fortemente influenciada pelo princípio da eficiência já que garante contratos com probabilidades maiores de êxito. Já a Súmula do TCU tem forte influencia do princípio da competitividade, irmão siamês do princípio constitucional da livre iniciativa.

A Súmula Paulista tem foco na questão econômico-financeira do Poder Público e a manutenção da vigência do contrato. A Súmula do TCU tem foco na questão da livre-iniciativa, pilar da vida econômica do Brasil.

Qual súmula tem razão sob a égide da Lei 8.666/93? Ambas. O dilema equivale ao conflito ideológico direita/esquerda ou ainda o conflito entre liberdade e segurança.

Parodiando Norberto Bobbio [1] em sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico, diríamos que estamos diante de uma antinomia real ou antinomia propriamente dita, já que não há método de resolução para o conflito entre a regra constitucional da livre iniciativa e a regra constitucional da eficiência da administração pública.

Comparemos, então, a origem da regra das garantias contratuais na moribunda Lei 8.666/93 e na lei 14.133.

Prevê a lei 8.666/93:

“Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:

(…)

§ 2º. A Administração, nas compras para entrega futura e na execução de obras e serviços, poderá estabelecer, no instrumento convocatório da licitação, a exigência de capital mínimo ou de patrimônio líquido mínimo, ou ainda as garantias previstas no § 1º do art. 56 desta Lei, como dado objetivo de comprovação da qualificação econômico-financeira dos licitantes e para efeito de garantia ao adimplemento do contrato a ser ulteriormente celebrado.”

O artigo 56 § 1º mencionado no artigo acima prevê:

“Art. 56. A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório, poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras.

§ 1º. Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia

I – caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, devendo estes ter sido emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil e avaliados pelos seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Fazenda;
II – seguro-garantia;
III – fiança bancária.”

A primeira regra indica as garantias possíveis. A segunda regra menciona o direito de opção pelo licitante quanto a uma das modalidades de garantia (caução/seguro-garantia/fiança bancária) mas não resolve o tema da exigência por parte do poder público.

Desta forma, a Lei 8.666/93 não fez uma opção clara quanto ao princípio da competitividade/livre iniciativa ou quanto ao princípio da eficácia da administração pública. Não há nada na lei antiga (de forma expressa) sobre o tema do cumprimento efetivo do contrato e sua relação com as garantias.

Já a Lei 14.133/21 tem as seguintes regras equivalentes:

“Art. 69. A habilitação econômico-financeira visa a demonstrar a aptidão econômica do licitante para cumprir as obrigações decorrentes do futuro contrato, devendo ser comprovada de forma objetiva, por coeficientes e índices econômicos previstos no edital, devidamente justificados no processo licitatório, e será restrita à apresentação da seguinte documentação:

(…)

§ 4º. A Administração, nas compras para entrega futura e na execução de obras e serviços, poderá estabelecer no edital a exigência de capital mínimo ou de patrimônio líquido mínimo equivalente a até 10% (dez por cento) do valor estimado da contratação.” (grifos nossos).

Já o artigo 56 da Lei 8.666/93 é reproduzido, com algumas alterações, na Lei 14.133/21 em seu artigo 96:

“Art. 96. A critério da autoridade competente, em cada caso, poderá ser exigida, mediante previsão no edital, prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos.

§ 1º. Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:

I – caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil, e avaliados por seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Economia;
II – seguro-garantia;
III – fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil.”

No aspecto da opção quanto a uma das garantias a serem apresentadas, o direito de opção e as modalidades de garantia tem pouca ou nenhuma distinção entre as duas leis.

O que tem especial relevância é o caput do artigo 31 §2º da Lei 8.666/93 e o artigo 69, caput, da lei 14.133.

Primeira distinção é que o artigo 31§2º da Lei 8.666 favorece a interpretação restritiva adotada pelo TCU já que o “caput” usa a expressão “limitar-se-á” (Art. 31- A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a;”.

Já o artigo 69 da Lei 14.133/21 escancara a finalidade de cumprimento contratual, aproximando-se da hermenêutica da Corte de Contas Paulista. Prevê o referido artigo, em seu “caput” que as garantias são “para cumprir as obrigações decorrentes do futuro contrato” (Art. 69. A habilitação econômico-financeira visa a demonstrar a aptidão econômica do licitante para cumprir as obrigações decorrentes do futuro contrato, (…):”

Portanto, aquilo que sob a égide da moribunda Lei 8.666/93 deu margem a interpretações distintas e igualmente legítimas nascidas diretamente de princípios constitucionais tem agora solução jurídica distinta.

O princípio da eficácia da administração pública e a efetivação dos contratos foi uma opção do legislador.

A opção do legislador foi favorecer, expressamente, o princípio da eficiência no âmbito das garantias contratuais para o cumprimento efetivo do contrato. O dinheiro público bem aplicado foi homenageado na nova lei.

O princípio da competitividade/livre iniciativa não foi afastado, apenas teve previsões noutros aspectos da nova Lei como, aliás, na própria existência de licitação que existe para homenagear a isonomia competitiva.

Assim, em nossa modesta opinião, a visionária Súmula 27 do e. TCE-SP foi prestigiada pela NLLC e a Súmula 275 do e. TCU foi, data venia, superada.

 


[1] Bobbio, Norberto, “Teoria do ordenamento jurídico”, Ed. UnB, passim.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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