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Sampietro e Geraige: Arrendamento rural e nulidade de algibeira

19 de maio de 2023, 6h44

Por Luiz Roberto Hijo Sampietro, Nadime Meinberg Geraige

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O contrato de arrendamento rural é uma espécie de negócio jurídico que sofre ingerência do Estado para que os interesses das partes estejam em sintonia com as diretrizes da reforma agrária e da política agrícola, conforme enuncia o dispositivo de abertura da Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra).

Segundo o artigo 3º do Decreto 59.566/66, o arrendamento rural é o contrato pelo qual uma pessoa cede à outra o uso e gozo parcial ou total de imóvel rural, de acordo com os limites permitidos por lei, mediante retribuição ou aluguel. O imóvel que compõe o objeto do arrendamento rural deverá ser utilizado para o exercício de atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista.

O mesmo Decreto 59.566/66, responsável por disciplinar o uso ou posse temporária da terra, prevê, no artigo 32, que a ação de despejo é a espécie de tutela jurisdicional adequada para debelar as situações previstas nos nove incisos do mencionado dispositivo. Em decorrência da previsão contida no inciso IX — arrendatário que descumpre dever legal ou comete infração contratual grave —, entendemos que o rol ensejador da ação de despejo incidente sobre o imóvel objeto do contrato de arrendamento rural é exemplificativo. Na hipótese do inciso III do mencionado artigo 32 (inadimplência do aluguel e/ou da renda no prazo convencionado), o arrendatário poderá purgar a mora, desde que o faça no prazo da contestação [1], e efetue o pagamento do aluguel/renda, dos respectivos encargos e das custas e honorários sucumbenciais arbitrados pelo juízo.

A partir desses esclarecimentos introdutórios, suponha, leitor, que o arrendatário esteja inadimplente no que diz respeito aos alugueis do contrato. Em vez de postular o despejo da parte faltosa, o arrendante ajuíza ação visando à resolução do contrato por inadimplemento e a imediata retomada da posse das terras arrendadas, via tutela de urgência. O juízo defere o provimento emergencial e dá o contraditório ao réu, que, em vez de suscitar ausência de interesse de agir por inadequação do procedimento ou mesmo purgar a mora, contesta as pretensões do autor. Encerrada a fase postulatória e de saneamento da causa, o juízo defere o pedido de realização de prova pericial que havia sido formulado por ambas as partes. No entanto, antes mesmo de o laudo ser juntado aos autos, o réu suscita a extinção do processo sem a resolução do mérito por inadequação da tutela jurisdicional pretendida, alegando que não teve a oportunidade de purgar a mora.

Como o juiz pode conhecer de ofício a inadequação da modalidade de tutela jurisdicional que o autor utilizou (falta de interesse de agir: CPC, artigo 337, XI, § 5º), seria possível, no exemplo dado, o acolhimento da defesa processual para que a demanda fosse extinta por sentença terminativa, ou seja, sem a resolução do mérito?

Ao menos segundo a literalidade do parágrafo único do artigo 278 do Código de Processo Civil, o interessado pode suscitar a falta de interesse de agir em qualquer momento do arco procedimental [2], pois se trata de nulidade de reconhecimento oficioso, não sujeita à preclusão. No entanto, as formalidades do processo são técnicas existentes para assegurar o devido processo legal e outorgar segurança jurídica a quem litiga. Elas servem ao direito material. Não são o próprio fim, mas o meio [3]. Por essas razões, Cândido Rangel Dinamarco [4] salienta que "o ato não será nulo só porque formalmente defeituoso. Nulo é o ato que cumulativamente se afaste do modelo formal indicado em lei, deixe de realizar o escopo ao qual se destina e, por esse motivo, cause prejuízo a uma das partes. A invalidade do ato, ou seja, seu vício decorrente da inobservância das formas, é indispensável para que ele seja nulo, mas não é suficiente nem se confunde com sua nulidade. O ato viciado poderá não ser nulo se não prejudicar ou se, apesar do vício, seu escopo específico houver sido obtido".

Além de todas essas razões, o artigo 277 do Código de Processo Civil contém regra de aproveitamento do processo: "[e]ste dispositivo deixa inequívoco que mesmo vícios cognoscíveis de ofício são sanáveis; e que o NCPC segue a diretriz geral no sentido de que o processo nasce para realizar sua vocação, que é a de gerar sentença de mérito. Decisões de inadmissibilidade, de ações e de recursos, devem ser, realmente, exceções" [5].

Na situação imaginada, a postura do réu impede que ele suscite a inadequação da via eleita como forma de bloquear a resolução do mérito da causa. Não se cogita haver nulidade no ajuizamento da ação possessória em vez do despejo porque o réu teve a oportunidade de exercer o contraditório na plenitude determinada pela Constituição. Se ele realmente tivesse a intenção de purgar a mora para dar subsistência ao contrato de arrendamento rural, por que ele contestou os pedidos? Essas atitudes do réu — contestar e, posteriormente, invocar a ausência de interesse de agir porque não teve a oportunidade de emendar a mora — contrariam a boa-fé objetiva (CPC, artigo 5º) e suprimem a possibilidade (suppressio) de ele invocar matéria de ordem pública como estratagema para evitar a prolação de sentença definitiva.

Apesar de a inadequação ritual não estar sujeita à preclusão, o interessado na arguição dela não pode se comportar como um praticante de jogo de azar e esperar o melhor momento para trazer referida alegação aos autos. Essa manobra representa a indesejada nulidade de algibeira. Os extratos dos três julgados reproduzidos a seguir mostram que o Superior Tribunal de Justiça repudia tal comportamento: (1) "A jurisprudência deste STJ não tolera a chamada nulidade de algibeira — aquela que, podendo ser sanada pela insurgência imediata da defesa após ciência do vício, não é alegada, como estratégia, numa perspectiva de melhor conveniência futura. (AgRg no AREsp n. 2.106.665/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T., j. 2.8.2022)"; (2) "A jurisprudência do STJ, atenta à efetividade e à razoabilidade, tem repudiado o uso do processo como instrumento difusor de estratégias, vedando, assim, a utilização da chamada 'nulidade de algibeira ou de bolso'. (EDcl no REsp 1424304/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 12.8.2014)"; e (3) "A alegação de que seriam matérias de ordem pública ou traduziriam nulidade absoluta não constitui fórmula mágica que obrigaria as Cortes a se manifestar acerca de temas que não foram oportunamente arguidos ou em relação aos quais o recurso não preenche os pressupostos de admissibilidade. (REsp 1439866/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª T., j. 24.4.2014)".

A suscitação da nulidade de algibeira é tão reprovável que o STJ impôs a penalidade da litigância de má-fé ao interessado na decretação do vício [6]. Mesmo à luz do natural antagonismo das partes litigantes, esse comportamento está totalmente em desacordo com a postura devida e esperada dos contendores judiciais, a merecer o necessário e severo reproche.

 


[1] O STJ não admite a cumulação de contestação com o pedido de purgação da mora nas ações de despejo por falta de pagamento envolvendo imóveis urbanos (ex. AgInt no REsp nº 1.738.800/TO). Por identidade de razões, e também graças à redação do parágrafo único do artigo 32 do Decreto 59.566/66, o juízo não deve admitir o cúmulo objetivo de pedidos no despejo de imóvel que compõe o objeto do contrato de arrendamento rural.

[2] Na verdade, o limite para a pronúncia judicial da nulidade que deve ser decretada de ofício é o instante anterior ao da publicação da sentença em cartório. A partir de então, o juiz não mais pode inovar no processo, de acordo com a previsão do artigo 494 do Código de Processo Civil.

[3] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 7ª ed. Salvador e São Paulo: Juspodium e Malheiros, 2022, p. 80.

[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, v. II. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 705.

[5] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo código de processo civil. 2ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 513.

[6] REsp nº 1.714.163/SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 24.9.2019: "A suscitação tardia da nulidade, somente após a ciência de resultado de mérito desfavorável e quando óbvia a ciência do referido vício muito anteriormente à arguição, configura a chamada nulidade de algibeira, manobra processual que não se coaduna com a boa-fé processual e que é rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça inclusive nas hipóteses de nulidade absoluta. Precedentes".