Tribuna da Defensoria

Uma liberdade lilás: a história de Yara, mulher transexual

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16 de maio de 2023, 8h00

Em 1973, os magníficos Secos e Molhados nos presentearam com a música O Patrão Nosso de Cada Dia, cuja letra dizia:

"Eu quero o amor
Da flor de cactus
Ela não quis

Eu dei-lhe a flor
De minha vida
Vivo agitado

Eu já não sei se sei
De tudo ou quase tudo
Eu só sei de mim
De nós
De todo o mundo
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Eu vivo preso
A sua senha
Sou enganado

Eu solto o ar
No fim do dia
Perdi a vida

Eu já não sei se sei
De nada ou quase nada

Eu só sei de mim
Só sei de mim
Só sei de mim

Patrão nosso
De cada dia
Dia após dia"

O amor é fundamental a todas as pessoas, mas ele é ainda mais essencial às pessoas trans, que vivem numa sociedade heteronormativa e preconceituosa com os corpos ditos abjetos, por uma maioria de pessoas que se dizem normais. Na canção, os versos "Eu Quero o Amor/ Da flor de cactos/ Ela não quis" mostram como muitas vezes nossa sociedade contemporânea nega o amor e os direitos básicos e fundamentais às pessoas trans (nossas flores de cactos) [1].

Hoje vou contar a história de Yara, mulher transexual, presa no ano de 2022 na cidade de Curitiba e enviada para a unidade prisional de Rio Branco do Sul (PR).

Eu realizei o atendimento jurídico de Yara, mulher transexual, jovem, com ascendência indígena e não branca, no dia 27 de abril de 2022, no projeto Rio Branco, da Defensoria Pública do Estado do Paraná. O referido projeto visa suprir a falta de defensores públicos naquela unidade prisional e foi criado com defensores e servidores voluntários que realizam o atendimento das meninas e meninos ali custódios, com o objetivo de prestar orientação jurídica, multidisciplinar e verificar demandas de saúde e demais pedidos administrativos.

A unidade prisional da comarca de Rio Branco do Sul foi criada em 2019, para atender as peculiaridades e resguardar os direitos do grupo LGBTQIA+, uma vez que temos uma realidade de diversas violações de direitos das pessoas gays e trans no âmbito do sistema prisional brasileiro. Essas violações vão desde corte dos cabelos das mulheres trans, falta de atendimento médico e medicação adequada até violência física e psicológica vivenciada por esse grupo de pessoas privadas de liberdade.

Yara foi presa, em abril de 2022, pasmem, pois sua vestimenta apresentava um grande decote nos peitos, o que incomodou as autoridades policiais que a abordaram, sem motivo algum para prendê-la. Contudo, Yara tinha um mandado de prisão de uma das varas criminais de Manaus, pelo simples motivo de não ter sido encontrada para ser citada e o processo estar suspenso (para apurar crime de furto de 2017).

Após o atendimento, com as muitas dificuldades de entrar em contato com o marido de Yara, foi possível realizar o pedido de revogação de prisão com o seu comprovante de endereço, protocolado no dia 5 de maio de 2022, com o auxílio do colega defensor público do estado do Amazonas. O parecer do Ministério Público foi favorável, mas, por incrível que pareça, o juízo não deferiu o pedido, mantendo Yara presa para ela primeiro ser citada.

"Eu vivo preso
A sua senha
Sou enganado"

E qual motivação de manter presa a jovem Yara?

Ela foi presa, mas o juiz decidiu que só analisaria o pedido de liberdade quando ela fosse citada, ou seja, após a senha que importa ao Judiciário.

E aí você me pergunta: porque a citação, um mero ato processual, é mais importante que a liberdade de qualquer pessoa? Como manter uma pessoa presa que tem endereço certo, profissão e não coloca em risco a sociedade?

Não tenho respostas certas para isso, mas os direitos fundamentais são atropelados, muitas vezes, por uma burocracia quase fascista e que não consegue fazer uma ponderação dos direitos fundamentais.

Importante lembrar que a citação de pessoa presa em outro estado se dá por carta precatória, ou seja, demora semanas ou meses. Assim, infelizmente, Yara ficou presa em Rio Branco do Sul por mais de 60 dias, e só não ficou por mais tempo porque a Defensoria Pública diligenciou com o oficial de Justiça da comarca para dar cumprimento o mais rápido possível na citação e retorno da carta precatória.

Dito isso, voltamos aos Secos e Molhados:

"Patrão nosso
De cada dia
Dia após dia"

Fica a reflexão para nós: será que se Yara fosse uma mulher cis ela esperaria esses quatro meses presa? Quanto custa um dia de liberdade para as pessoas trans? Será que a liberdade das pessoas trans é menos importante?

Para nós, defensores públicos, histórias como de Yara são uma de muitas, são o patrão nosso de cada dia, pois vemos os direitos e garantias das pessoas LGBTQI+ e de outros grupos de vulneráveis serem ignorados ou violados pelo próprio poder público estatal.

Por fim, dia após dia a Defensoria Pública dá o seu melhor para não fazer vista grossa às mazelas do sistema de Justiça, lutando para garantir direito de liberdade lilás para Yara, bem como todos os outros direitos da população LGBTQI+ (lembrando que dia 17 de maio é o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia).

 


[1] Transexuais no sentido lato, pessoas travestis e transexuais

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