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Consultor Jurídico

O papel das redes: espaço democrático ou antidemocrático

16 de maio de 2023, 8h00

Por Ana Laura Marinho Ferreira, Bruno Farage

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Finalizando a apresentação dos temas debatidos no Seminário Democracia e Plataformas Digitais, será revisitado, agora, o último painel, denominado "O papel das redes: espaço democrático ou antidemocrático", composto pelos docentes Floriano Marques e Maria Paula Dallari Bucci; Alexandre Freire, da Anatel, e pelo deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do Projeto de Lei 2.630, o qual institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

 

O painel teve início com a fala do deputado Orlando Silva, o qual relembrou o início do processo de construção, no ano de 2020, do Projeto de Lei das Fake News que tramita no Senado, alvo unânime de críticas por parte da sociedade civil, de organismos internacionais e multilaterais no que se refere à precariedade do debate que havia acontecido no Senado. No entanto, destacou que o mesmo não se deu com relação ao debate acontecido na Câmara, pois reconhece que as dezenas de audiências, reuniões e oitivas com especialistas da indústria e representantes da sociedade civil forneceram um aporte seguro quanto ao fluxo do debate.

ConJur
Silva apontou que o esforço inicial de votação do projeto de lei ocorreu em 31 de março de 2022, oportunidade em que houve uma tentativa de requerimento de urgência, o qual permitiria o exame direto do projeto pelo plenário. No entanto, a votação alcançou 249 votos favoráveis e 207 contrários, sendo que para aprovação seriam necessários 257 votos. O deputado interpretou o resultado da votação como uma demonstração de que "Deus é brasileiro".

Isso porque, na visão do deputado, entre março de 2022 até os dias atuais surgiram algumas novidades importantes no cenário brasileiro.

A primeira delas diz respeito à travessia do processo eleitoral, a qual produziu lições e até uma surpreendente integração. A segunda refere-se à introdução de um padrão global, sobretudo pela aprovação do Ato dos Serviços Digitais (União Europeia) [1], que inevitavelmente passou a ser uma fonte de inspiração e de resolução de polêmicas entre o que se debatia no Congresso e as barreiras oferecidas pelas plataformas digitais.

Em terceiro lugar, o deputado destacou a importância do perfil do governo eleito nas últimas eleições, tendo em vista que o atual apresenta um viés regulatório, diametralmente oposto ao anterior. E, por fim, ressaltou um quarto fator importante para situarmos o debate: o dia 8 de janeiro, uma quase tragédia brasileira, mas que produz valiosas lições de como a legislação brasileira deve prever mecanismos para estruturar procedimentos.

Orlando ressalta que o famoso projeto de lei não se trata de regulação de plataformas e circunscreve o objeto do projeto a uma pequena parte da atividade nas redes sociais, a qual será posta em xeque a partir das sugestões públicas do governo de alargar um pouco mais o escopo da proposta ao incorporar temas como streaming, o que certamente será um desafio a ser enfrentado, sobretudo com relação às obrigações de transparência.

Assim, o relator ressaltou que há um compromisso majoritário do Parlamento brasileiro no que tange à consciência de que a liberdade de expressão é um bem essencial para a democracia. No entanto, não vislumbra o estabelecimento de parâmetros para a moderação de conteúdo como um ato que confrontaria a liberdade de expressão. Pelo contrário, relembra que há um capítulo, no projeto de lei, vinculado e dirigido para a obrigação de transparência e que esta temática sempre foi uma preocupação já na origem da elaboração do projeto e que continua sendo muito importante em todos os debates já feitos e futuros.

A discussão acerca do alcance artigo 19 do Marco da Civil da Internet [2] também foi abordado pelo parlamentar. A sua fala demonstrou que o referido artigo, nos termos que está posto hoje, é insuficiente e que o grande desafio é encontrar a justa medida para garantir o desenvolvimento e, ao mesmo tempo, impedir a propagação de conteúdos ilegais. De acordo com ele, uma das saídas seria o desenvolvimento dos mecanismos de inteligência artificial na operação das plataformas para garantir eficiência na moderação de conteúdos ilegais.

Encerrando sua apresentação, Silva ainda apresentou dois tópicos que, em sua opinião, merecem cuidadosa atenção.

Primeiro que, apesar de adotar publicamente uma postura antipunitivista, reconhece que os pontos alvos de proteção do PL têm que ser objeto de um dever de cuidado — em casos como crimes de racismo, contra a saúde pública, estímulos ao suicídio, etc. — e que, nestes casos, defende a necessidade de um tipo penal específico, até porque, estruturas são organizadas para que, de modo sistemático, se produza desinformação.

E, em segundo lugar, que a ideia de regulação das plataformas digitais no Brasil, nesse campo restrito ora abordado, deve possuir uma capacidade autorregulatória a ser desenvolvida e cada vez mais potencializada, uma espécie de "autorregulação regulada".

Em seguida, a palavra foi passada para a docente Maria Paula Bucci, a qual iniciou sua fala com suas impressões acerca da internet que estamos vivenciando, aquela que está desafiando a nossa democracia. Com isso, destacou que a transição que estamos atravessando no mundo se dá pela existência de dois planos distintos: o mundo físico e o mundo virtual, estando ambos em crise. O primeiro, em decorrência dos eventos ambientais climáticos e o segundo, pelo desfalecimento da promessa de uma internet libertária.

A esse respeito, relembrou duas leituras feitas que chamaram sua atenção. Primeiro, o livro da jornalista Maria Ressa, prêmio Nobel da Paz de 2022, no qual a autora relata o começo das atividades do seu jornal em 2011 em parceria com o Facebook, época em que a polarização era um componente do negócio e o Facebook, inclusive, lucrava com ela.

Além disso, também relembrou o livro de Shoshana Zuboff A Era do Capitalismo de Vigilância (2021), em que a autora demarca o que foi o começo do Google, vista inicialmente como uma empresa libertária e filiada a certos princípios democráticos, até que se viu em um momento de crise e entrou em uma via de exploração comercial sem volta.

Ambas as leituras são contextualizadas pela docente com a relação que pode ser feita entre o funcionamento de empresas e a crucial necessidade de discussões e aprimoramentos, não apenas sobre projetos de leis, mas também em projetos e propostas normativas do Poder Executivo e nas universidades.

Também traçou paralelos entre os dois livros citados e a fala do ministro Alexandre de Moraes. Para a docente, o ministro foi muito didático no sentido de remeter à responsabilização de uma maneira muito direta e muito pragmática em relação à lei, recomendando que a lei não desça às minúcias e que ela aproveite a experiência das empresas, inclusive da cooperação que está havendo entre as empresas e o poder público.

A esse respeito, inclusive, a professora cita o livro de Eugênio Bucci A Super Indústria do Imaginário (2021), relacionando o modus operandi das empresas com as três ideias apresentadas pelo deputado Orlando Silva.

A primeira diz respeito à assimetria existente na posição que as empresas ocupam, já que elas veem tudo, conhecem tudo e têm acesso a todos os dados dos usuários. Em contraposição, inexiste qualquer tipo de reciprocidade nessa relação, já que os dados das empresas não estão disponíveis ao público, estão sob um véu de sigilo total. E, finalmente, a chamada "retenção viciante do público" que causa o aprisionamento da imaginação.

Esses são os três aspectos estruturantes do modelo de negócio de uma empresa, que denotam a urgência de se ter algo que se contraponha a esse poder excessivo.

A partir desta relação é que a docente finalizou sua provocação abordando a importância do projeto de lei do deputado Orlando Silva e, sobretudo, a urgência de se debater de forma profunda e compromissada com os ideais democráticos uma regulação da internet.

O ponto de convergência nos discursos é o de que existe uma crise a nível global em relação ao uso inapropriado da internet, sendo premente, portanto, a criação de parâmetros relacionados à responsabilidade e necessidade de transparência por parte das grandes empresas de tecnologia. Trata-se, sem dúvida, de um grande desafio, mas nada impossível, tendo em vista, sobretudo, as experiências internacionais.

 


Referências:

BUCCI, Eugênio. A superindústria do imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. Belo Horizonte: Autentica, 2021. (Ensaios).

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 10 maio 2023.

EUROPEAN PARLIAMENT. European Parliament Legislative Resolution Of 5 July 2022 On The Proposal For A Regulation Of The European Parliament And Of The Council On A Single Market For Digital Services (Digital Services Act) And Amending Directive 2000/31/Ec (Com(2020)0825 – C9-0418/2020 – 2020/0361(Cod)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0269_EN.html. Acesso em: 10 maio 2023.

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: ‎ Intrínseca, 2021. 800 p. Tradução de: George Schlesinger.

 


[1] EUROPEAN PARLIAMENT. European Parliament Legislative Resolution Of 5 July 2022 On The Proposal For A Regulation Of The European Parliament And Of The Council On A Single Market For Digital Services (Digital Services Act) And Amending Directive 2000/31/Ec (Com(2020)0825 – C9-0418/2020 – 2020/0361(Cod)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0269_EN.html. Acesso em: 10 maio 2023.

[2] Segundo o qual: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.