O STF e a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade
14 de maio de 2023, 11h37
O tema da coluna desta semana diz respeito a uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral na qual, sem que fosse o tema principal discutido no processo, houve um novo capítulo de uma novela que já se arrasta no tribunal há pelo menos 15 anos, referente à possibilidade de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.
No caso, ao julgar a repercussão geral nos Temas 881 e 885, em que se discutia os limites da coisa julgada em matéria tributária (sobre o tema, ver a coluna do professor Lenio Streck), o ministro Luís Roberto Barroso sustentou em seu voto, que foi seguido à unanimidade pelo restante do tribunal, a necessidade de que seja reconhecido que "uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos".
Antes da adentramos nessa decisão mais recente do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, é fundamental o estabelecimento de algumas bases teóricas necessárias a adequada compreensão da temática, bem como uma análise histórica das decisões anteriores do Supremo em que a questão foi tratada, salientando que ela nunca foi abordada conclusivamente pelo STF, conforme reconhecido pelo próprio ministro Barroso em seu voto.
O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro
No Brasil, coexistem dois modelos de controle de constitucionalidade oriundos de matrizes distintas: o modelo de controle difuso de constitucionalidade, de inspiração norte-americana e introduzido primeiramente no país por Rui Barbosa na Constituição de 1981, onde foi replicado o modelo norte-americano; e o modelo de controle abstrato de constitucionalidade, de inspiração germânica, e que foi sendo progressivamente inserido no Brasil, a partir de 1964, e consolidado na Constituição Federal de 1988.
No modelo de controle difuso, todo juiz pode realizar o controle da constitucionalidade das normas que lhe são submetidas de maneira concreta em sua aplicação. Ao se deparar com uma norma que seja reputada inconstitucional, qualquer juiz poderá declarar a sua inconstitucionalidade, porém os efeitos produzidos nesse caso serão tão somente interpartes.
De outra parte, no modelo de controle abstrato, há um tribunal específico que detém a palavra final sobre a constitucionalidade das normas. No caso brasileiro, o tribunal responsável por exercer esse papel é o Supremo Tribunal Federal, ao qual foi atribuído pelo legislador constituinte o papel de "guardião da Constituição", conforme estabelecido no artigo 102 da CF. Ao contrário do que acontece no modelo difuso de controle de constitucionalidade, as decisões proferidas em sede de controle abstrato possuem efeitos erga omnes e vinculante.
Dessa forma, a união desses dois modelos de controle de constitucionalidade formata o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que pode ser reconhecido como um sistema híbrido, uma vez que adota características desses dois modelos distintos de realização do controle da constitucionalidade das normas.
Vale lembrar que ainda que o entendimento preponderante na doutrina seja de que o modelo de controle de constitucionalidade é híbrido, há autores que defendem que o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro deve ser caracterizado como difuso. É o caso de Elival da Silva Ramos, que assinala que, havendo dispersão de competências de controle de constitucionalidade entre diversos órgãos do aparato judiciário, trata-se de uma característica que define um sistema de controle difuso de constitucionalidade [1].
Ainda que esta seja uma posição respeitável, esse é um ponto de vista minoritário dentro da doutrina brasileira, havendo uma avaliação preponderante de que o constituinte privilegiou a manutenção de um modelo misto ou híbrido [2].
Para além dessa questão doutrinária, a materialidade da prática do Direito brasileiro vem demonstrando que o nosso sistema de controle de constitucionalidade está cada vez mais pendendo para um controle abstrato de constitucionalidade, sobretudo pela atuação do Supremo Tribunal Federal, que vem buscando equiparar os dois modelos de controle de constitucionalidade, consolidando-se em uma posição de intérprete único da Constituição, em detrimento de expressas previsões constitucionais em sentido contrário.
Entre as razões passiveis de serem citadas para esta conduta, está o fato de que a mistura desses dois modelos de controle de constitucionalidade, oriundos de tradições jurídicas diversas e com características distintas, possibilita que resultados diversos ocorram em relação a uma mesma questão de Direito, a depender de como ela for analisada dentro do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.
É precisamente neste ponto que o STF vem atuando pela equiparação dos dois modelos de controle de constitucionalidade, sobretudo em face de um aparente desejo de autoafirmação do Supremo em um papel ao qual não lhe é atribuído exclusividade pela Constituição.
A abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, a 'mutação constitucional' e as recepções teóricas equivocadas
Conforme mencionado anteriormente, entre as principais diferenças que caracterizam os modelos de controle de constitucionalidade que coexistem no Brasil, talvez aquela mais relevante, na prática, seja a que diz respeito aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade que se opera pela via concreta ou pela via abstrata.
Se no caso da declaração de inconstitucionalidade operada pela via abstrata, os efeitos são erga omnes, o mesmo não ocorre no controle realizado de forma concreta. Todavia, o legislador constitucional, de maneira sagaz, entendeu que para que houvesse um sistema de controle de constitucionalidade coerente, era necessário que fosse possível conferir efeitos erga omnes a decisões proferidas em sede de controle concreto.
Para conferir essa coerência ao sistema, foi colocada a previsão constante no artigo 52, X, da Constituição Federal, a qual prevê que cabe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Tal previsão tem inclusive um caráter democrático, de legitimação da decisão do Supremo, por meio de sua apreciação pelos representantes eleitos dos cidadãos brasileiros.
Ocorre que ainda que no começo dos anos 1990 efetivamente o STF tenha seguido a determinação constitucional e remetido as decisões proferidas em sede de controle difuso ao Senado, de uma maneira progressiva essa sistemática foi sendo erodida pela atuação do próprio Supremo, que deixava de encaminhar todas as decisões proferidas em sede de controle difuso, limitando-se a enviar ao Senado aquelas que discricionariamente reputava de maior relevância.
Foi em 2007 que o Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez, tentou equiparar os efeitos do controle difuso de constitucionalidade aos efeitos de controle concentrado de constitucionalidade, atribuindo diretamente efeitos erga omnes e vinculante, sem que para isso fosse necessária a participação do Senado Federal no processo ou, conforme define o professor Lenio Streck, tentando transformar o Senado Federal em mero "diário oficial do Supremo Tribunal Federal" [3].
Assim, ao julgar a Reclamação 4.355/AC, para que fosse possível passar por cima do texto expresso da Constituição Federal, os ministros Gilmar Mendes e Eros Grau lançaram mão da tese da "mutação constitucional", para dizer que onde estava escrito na Constituição "compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal", deveria ser lido "compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo".
Está aí o ponto central da questão que vem sendo repetida periodicamente dentro do Supremo Tribunal Federal. Sempre que o Supremo fala em abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, vem a tiracolo a tese da ocorrência da mutação constitucional do artigo 52, X.
Sobre o que vem a ser a mutação constitucional, Carlos Blanco de Morais define-a como a "modificação inovadora e informal do sentido das normas da Constituição registrada à margem de um processo de revisão constitucional" [4]. Observe-se que em nenhum momento se fala em "substituir um texto por outro texto".
Fora isso, há que se colocar as coisas em seu devido lugar: a tese da mutação constitucional surgiu no final do século XIX, nas formulações de Paul Laband, em suas análises sobre o direito constitucional do Império Alemão, tendo recebido, posteriormente aportes de Georg Jellinek e Hsü-Dau-Lin, no contexto da República de Weimar.
Naquele momento, a Alemanha passava por um processo de transformações políticas e sociais — e, também, de guerra — que fazia com que as normas constitucionais e o positivismo legalista vigente fossem incapazes de lidar com a crise paradigmática e dar conta dessas transformações que ocorriam em uma velocidade maior que a legislação conseguia acompanhar. Razão pelas quais os juristas que estavam inseridos naquele contexto tentavam dar sentido ao problema que estavam enfrentando, apostando na atuação de uma "jurisprudência corretiva" para solucionar o problema de um suposto hiato entre o texto constitucional e a realidade social.
Pois bem, qual a relação que há entre os problemas que a Alemanha enfrentava ao lidar com o seu texto constitucional no começo do Século XX e a prescrição do artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988? Absolutamente nenhuma.
Nesse sentido, vale frisar que um dos principais objetos de rejeição por parte da Crítica Hermenêutica do Direito é justamente as recepções teóricas equivocadas realizadas no Brasil. No caso, nem mesmo em Weimar estava se falando em reescrever o texto da Constituição por parte de um tribunal, conforme pretendia o Supremo ao julgar a Reclamação 4.335/AC.
O problema é que no "realismo retrô" [5] brasileiro, se o Judiciário se manifestou em um determinado sentido, poucos questionamentos são feitos. Sobretudo se quem diz é ministro do Supremo Tribunal Federal. E assim vamos ficando cada vez mais presos as proposições pragmatistas onde o Direito brasileiro passa a ser aquilo que os tribunais dizem que ele é; e, por via de consequência, a Constituição passa a ser aquilo que o Supremo diz que ela é…
No final das contas, a Reclamação 4.335/AC foi julgada improcedente por questões processuais, restando vencidos os ministros Gilmar Mendes e Eros Grau. Mesmo com o julgamento de improcedência da reclamação, desde então as decisões do Supremo em sede de controle difuso não foram mais enviadas ao Senado.
O leitor deve estar se perguntando: bem, se os ministros que votaram pela mutação constitucional do artigo 52, X, da CF restaram vencidos e a reclamação foi julgada improcedente, então o Supremo rechaçou a tese mutação constitucional, certo? Não foi bem isso que ocorreu.
A Reclamação 4.335/AC teve seu inicio de julgamento em 2007 e o desfecho do julgamento só se deu em 2013. Passaram-se mais quatro anos, e em 2017, o STF julgou a ADI nº 3.470, que tinha por objeto o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei estadual 3.579/2001 do Rio de Janeiro, que proíbe a extração do amianto em todo território do Estado e prevê a substituição progressiva da produção e comercialização dos produtos que contenham amianto. O STF julgou improcedente a ação, entendo pela constitucionalidade da referida lei. Todavia, havia um problema com relação à conclusão que o Plenário do Supremo chegou no caso da ADI nº 3.470, a existência da Lei federal nº 9.055/1995, que em seu artigo 2º permitia a extração e produção de amianto.
Diante da controvérsia estabelecida, para solucionar o problema, ao julgar a ADI 3.470, o STF resolveu por declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei federal nº 9.055/1995. Todavia, a declaração incidental de inconstitucionalidade ocorre em sede de controle difuso de constitucionalidade, de sorte que os efeitos ficariam restritos à relação interpartes. Foi aí que o Supremo Tribunal Federal sacou da manga novamente a tese da mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal, para que não fosse necessário passar pelo procedimento determinado pela CF, em relação ao dispositivo reputado como inconstitucional.
Aqui cabe o questionamento: é adequado e democrático que um ministro do Supremo saque uma tese completamente dissociada de seu contexto — como um mágico que saca um coelho de uma cartola — para resolver um problema para o qual a Constituição já prevê a solução, simplesmente porque ele não concorda com a prescrição constitucional?
O julgamento da repercussão geral nos temas 881 e 885 e as teses do ministro Barroso
Chegamos, finalmente, ao capítulo mais recente da história, no qual por ocasião do julgamento dos temas 881 e 885, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu expressamente que o Supremo Tribunal Federal deve se pronunciar objetivamente sobre a mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal.
Veja-se que a origem dos recursos dizia respeito à existência de coisa julgada em decisões favoráveis ao contribuinte referentes à CSLL, proferidas em sede de controle difuso; o Fisco postulava pela cessação da coisa julgada em relações tributárias de trato continuado e o ministro conseguiu avançar para uma tentativa de reescrita do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro (!!!).
Aqui resta evidenciado o problema atinente aos julgamentos realizados por meio de recortes de casos que redundam em teses gerais e abstratas que vão muito além do objeto inicial da lide, uma outra discordância da Crítica Hermenêutica do Direito em relação à prática dos tribunais brasileiros.
Seguimos. Conforme dito no princípio do texto, em seu voto o ministro Barroso defendeu que "uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos". Para sustentar a sua posição enquanto julgador, o ministro Barroso citou… ele mesmo. Em seus livros sobre controle de constitucionalidade.
Assim, o ministro se referiu ao caso da Reclamação nº 4.335/AC na qual inicialmente foi levantada a tese da mutação constitucional do artigo 52, X da CF. Apontando que a tese restou vencida e que a questão foi solucionada pela aplicação da Súmula Vinculante nº 26.
No entanto, o ministro assinalou entender que o STF deve rever a questão da mutação constitucional do referido dispositivo e elencou as razões pelas quais afirma que deve prevalecer a tese levantada inicialmente em 2007, que podem ser sintetizadas da seguinte forma:
- A introdução do instituto da repercussão geral no ordenamento jurídico brasileiro e a sucessiva adoção de teses de julgamento, levou ao processo de objetivação do controle difuso que se tornou ainda mais claro;
- O artigo 927, III, do CPC que estabelece a vinculação dos tribunais aos precedentes do STF em sede de recurso extraordinário julgados pela sistemática repetitiva e o cabimento de reclamação diretamente ao STF, conforme artigo 988, §5º, II;
- Uma progressiva abstrativização do controle concreto operada tanto pela atuação do próprio Poder Judiciário e, também, do Poder Legislativo.
Arrematou ser necessário que o STF reconheça que a declaração de inconstitucionalidade, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, possui os mesmos efeitos vinculantes e eficácia erga omnes atribuídos às ações de controle abstrato. Afirma que, nesses casos, a resolução do Senado que trata o artigo 52, X, da CF/88 teria apenas o caráter informativo. Exatamente, o mesmo argumento formulado em 2007.
Passou, então, a afirmar que a superação da necessidade de resolução do Senado para atribuição de efeitos vinculantes e eficácia erga omnes às decisões de controle de constitucionalidade não é algo novo, referindo que na Constituição de 1967, alterada pela EC nº 1/1969, havia o artigo 42, VII, que possuía redação idêntica ao artigo 52, X, sendo que em 1977 o STF assentou que "as decisões, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, não seriam mais encaminhadas ao Senado Federal, mas apenas às autoridades prolatoras da legislação, para fins de comunicação. Esta Corte atribuiu, portanto, efeitos vinculantes erga omnes às suas próprias decisões em controle abstrato".
Aqui, dois pontos chamam a atenção: primeiro, o caso tratava de decisões de controle abstrato; e o segundo, e mais preocupante, essa decisão foi proferida no período da ditadura civil-militar no Brasil, sendo absolutamente incompatível pensar em utilizá-la como referência para embasar uma decisão que deve estar pautada pelo arcabouço constitucional democrático da Constituição de 1988.
Por final, o ministro afirma "ser imprescindível que se reconheça a mutação do artigo 52, X, da CF/1988, para as decisões proferidas em recurso extraordinário com repercussão geral", e que este é "passo rumo à consolidação do processo de abstratização do controle difuso, resultando em uma maior integridade à teoria de precedentes, bem como no aprimoramento do controle de constitucionalidade brasileiro".
Com todo o respeito do qual é merecedor o ministro Barroso, não podemos concordar com essa conclusão. A razão é muito simples: o próprio texto constitucional não dá suporte as conclusões extraídas pelo ministro em seu voto.
Em verdade, o que temos nesse caso, em que se tenta construir uma tese que de suporte à ideia que o Supremo Tribunal Federal vem materializando de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, se encontra pautada em ativismo judicial, precedentalismo à brasileira e recepções teóricas equivocadas. Todas elas alicerçadas em realismo jurídico e argumentos de autoridade emanados do Supremo, que pretende reescrever o texto da Constituição da maneira que reputa mais adequado.
Deve ser salientado que a Crítica Hermenêutica do Direito fornece substratos teóricos e filosóficos perfeitamente capazes de rechaçar essas propostas, razão pela qual, diante das questões levantadas e do desejo manifestado no último julgamento, nos cabe exercer esta respeitosa crítica e aguardar atentos por novos desdobramentos sobre a temática em julgamentos futuros do Supremo Tribunal Federal.
[1] RAMOS, Elival da Silva. Controle de Constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução, São Paulo: Saraiva, 2010. p. 246.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 163
[3] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 186.
[4] BLANCO DE MORAIS, Carlos. in MENDES, Gilmar Ferreira; BLANCO DE MORAIS (coord.) Mutações Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 49.
[5] Para essa e mais expressões ver: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023. p. 199-200.
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