Opinião

Blindagem patrimonial ou Papai Noel? Escolha a sua ilusão!

Autores

  • J. Miguel Silva

    é advogado tributarista autor e coautor de obras sobre legislação e Direito Empresarial ex-professor convidado em universidades na Fundace/USP (Ribeirão Preto) e Fecap-SP palestrante membro da Academia Paulista de Contabilidade e sócio-diretor da Saber Treinamento Profissional e da Miguel Silva & Yamashita Advogados.

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  • Beatriz R. Yamashita

    é advogada especialista em Direito Empresarial (com concentração nas áreas societária de contratos e investimentos estrangeiros) certificada em sustainable capitalism & ESG pela Universidade da California Berkeley Law pós-graduada em Tratados de Bitributação e Propriedade Intelectual na Universidade de Londres coautora dos livros Prática Tributária nas Empresas (2012 Ed. Atlas coord.: J. Miguel Silva) e Grupos Econômicos (2015 Ed. Lex Magister coord.: Ives Gandra da Silva Martins) mediadora certificada segundo os critérios do Conselho Nacional de Justiça e sócia-diretora da Saber Treinamento Profissional e da Miguel Silva & Yamashita Advogados.

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10 de maio de 2023, 15h17

No campo comportamental, até que ponto é saudável acreditarmos em lendas e figuras como essas que dão título a este artigo? Os psicólogos e sociólogos debatem ao redor do mundo sobre os prós e contras da associação de produtos e serviços a lendas e figuras popularmente consideradas positivas e complacentes como é o caso do bom velhinho natalino invocado em fim de ano por nossas crianças em cujas mentes passeiam livremente a imaginação e o faz-de-conta. Agora, no contexto da vida adulta e dos negócios, o que leva ainda hoje as pessoas a acreditarem na fantasia jurídica intitulada blindagem patrimonial, tão aclamada em planejamentos sucessórios e tributários, com a criação de holdings ou outras estruturas jurídicas com interpostas pessoas, como a doação infundada de bens aos filhos, parentes e outros desavisados?

O termo "blindagem patrimonial" tem sido ao longo dos anos muito utilizado como estratégia de marketing para vender soluções jurídicas prontas de proteção inamovível de patrimônio frente a entes públicos ou privados.

A despeito do apelo comercial, não devemos esquecer que, segundo o consagrado Aurélio, o verbo "blindar" tem sua primeira raiz na palavra alemã blenden, cuja tradução mais correta para o português é "cegar", "ofuscar", "ocultar" e que no inglês dá origem à palavra "blind", ou seja, "cego".

A nossa Constituição, que concentra as regras fundamentais de convivência na sociedade brasileira, declara em seus primeiros artigos que o Brasil é um Estado Democrático de Direito para o qual se estabelecem regras de convivência em sociedade fundamentadas na "dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa", com o objetivo de, entre outros, "construir uma sociedade livre, justa e solidária, […]" [1].

Para tanto, a Constituição elenca quais os direitos individuais que o Estado Brasileiro, por meio de seus três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), deve promover, proteger e equilibrar para atingir seus objetivos.

Os direitos individuais são listados no art. 5º da Constituição Federal, dentre os quais destacamos:

"II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

[…]

XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

[…]" (grifamos)

Num Estado Democrático de Direito, o direito individual de um é sempre acompanhado da obrigação de respeitar o direito individual do outro, sendo ambos obrigados a contribuir para que o Estado proteja e suporte os direitos sociais (coletivos) como o direito constitucional à educação, à saúde, à alimentação e à previdência social, bem como os tão conhecidos direitos trabalhistas.

Neste diapasão, o Código Civil [2], por exemplo, que contém os direitos e deveres nas relações privadas, deixa claro:

"Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor."

"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

O mesmo Código Civil alerta em seu artigo 50 a respeito do abuso da personalidade jurídica:

"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º. Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

[…]"

Note que, segundo o parágrafo único do artigo 927 acima transcrito, o cumprimento de uma obrigação de reparação de dano pode ser exigido de uma pessoa (física ou jurídica), independentemente de culpa, por determinação de lei ou quando o desenvolvimento regular de uma atividade por essa pessoa implicar, por sua natureza, risco aos direitos de outras pessoas. Trata-se da responsabilidade objetiva.

A responsabilidade objetiva é especialmente presente nas normas voltadas à proteção de direitos coletivos, cuja violação causa, direta ou indiretamente, danos à sociedade como um todo. Veja, por exemplo, os arts. 133 e 136 do Código Tributário Nacional (CTN) [3], o §2º do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho [4] e o artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor [5].

Portanto, a ideia de que é possível, por meio de institutos jurídicos, blindar ou ocultar o patrimônio de uma pessoa para que este não responda pelas obrigações assumidas perante um outro indivíduo ou a coletividade (representada por um ente estatal, como a administração tributária, o Ministério Público e o Judiciário) não encontra respaldo nem constitucional, nem infraconstitucional. Nossos tribunais, aliás, reforçam a ineficácia da lírica "blindagem patrimonial":

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – incidente de desconsideração da personalidade jurídica – acolhimento em primeiro grau – recurso dos executados – impossibilidade – circunstâncias dos autos que comprovam que a sócia da devedora principal constituiu holding um mês depois da concessão do empréstimo e retirou-se da sociedade quatros meses após, deixando apenas como sócios remanescentes os seus filhos menores de idade – evidente a blindagem patrimonial observando a cronologia dos fatos – exegese do art. 373, I do CPC – nítida a confusão patrimonial e desvio de finalidade art. 50, caput, § 2º, II e III, do CC – precedentes – despacho mantido – recurso não provido." (TJ-SP – AI: 21368722220228260000 SP 2136872-22.2022.8.26.0000, relator: Achile Alesina, data de julgamento: 27/6/2022, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/6/2022).

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. CONSTITUIÇÃO DE "HOLDING" FAMILIAR. ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL. DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. BLINDAGEM DE PATRIMÔNIO EVIDENTE. REQUISITOS PREENCHIDOS. PROVAS IRREFUTÁVEIS. SUBSTITUIÇÃO DO ARRESTO CAUTELAR DE ALUGUÉIS DE IMÓVEIS COM A INCIDÊNCIA SOBRE O LUCRO LÍQUIDO DISTRIBUÍDOS EM RAZÃO DAS QUOTAS SOCIAIS. INOVAÇÃO RECURSAL. NÃO CONHECIMENTO. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES. RECURSO CONHECIDO EM PARTE, E, NA PARTE CONHECIDA, PROVIDO PARCIALMENTE." (TJ-SC – AI: 50592786620218240000, relator: Fernando Carioni, data de julgamento: 14/06/2022, 3ª Câmara de Direito Civil).

A boa notícia é que nossas leis igualmente resguardam os direitos dos que exercem a atividade econômica regularmente, reconhecendo, por exemplo, a liberdade contratual e a autonomia patrimonial entre sócios e suas pessoas jurídicas, desde que respeitada a função social da propriedade e o uso não abusivo dos institutos jurídicos. Nesse sentido são os artigos 49-A e 421 do Código Civil, na recente redação dada pela Lei da Liberdade Econômica [6]:

"Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos."

[…]

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual."

Também nossos tribunais reforçam a liberdade das pessoas de se organizar ou se reorganizar em empresa em busca de proteção patrimonial ou de economia tributária, desde que o façam de forma lícita, afastando-se do abuso de personalidade jurídica:

"TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. GRUPO ECONÔMICO. FALTA DE INDÍCIOS DE ILICITUDES PRATICADAS PELO GRUPO SOCIETÁRIO. 1. A formação de grupo econômico, por si só, não enseja a responsabilidade solidária. A rigor, as empresas respondem de forma autônoma por suas próprias obrigações tributárias. 2. O que atrai a responsabilização tributária solidária e subsidiária é a prática de atos que inviabilizam o adimplemento do crédito tributário pela devedora original. 3. Para redirecionamento da execução são necessários indícios mais consistentes da formação do grupo econômico de fato fraudulento, notadamente confusão patrimonial, migração de funcionários, blindagem patrimonial dentre outros, envolvendo as pessoas jurídicas. 4. A parte agravante não trouxe elementos objetivos a infirmar a decisão atacada." (TRF-4 – AI: 50109235020204040000, relator: Luciane Amaral Corrêa Münch, data de julgamento: 15/6/2022, 1ª Turma).

E, como bem relata em voto recente a ministra Carmen Lúcia do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o tema planejamento tributário no contexto do CTN (art. 116, parágrafo único):

"…a desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação desse fato gerador. […]" (trecho extraído do voto proferido na ADI nº 2.446/DF, Tribunal Pleno, relatora ministra Carmen Lúcia, DJe de 27/4/22)

Fundamental, portanto, é compreender que não há em nosso sistema jurídico mecanismos capazes de blindar qualquer pessoa ou seu patrimônio das responsabilidades decorrentes de obrigações previstas em lei que surgem durante a vida pessoal e empresarial. Assim, nenhum planejamento, seja ele sucessório, tributário ou de negócios, será lícito quando estiver associado à blindagem (ocultação) patrimonial.

Num país como o Brasil, de altíssima complexidade legislativa, administração pública ávida por arrecadar recursos, judiciário moroso e pessoas nem sempre bem-intencionadas, a eficácia da proteção do patrimônio depende necessariamente de vigilância constante, governança corporativa efetiva, planejamentos lícitos, observância ao aspecto temporal e condução regular dos atos da vida pessoal e empresarial e, em especial, do conhecimento prévio de nossos direitos, responsabilidades e obrigações individuais e coletivos.

Nessa jornada, não há atalhos nem receitas prontas ou mágicas, a não ser para aqueles que ainda sonham com Papai Noel e brincam de acreditar no impossível.

 


[1] Arts. 1º e 3º da Constituição Federal de 1988

[2] Lei nº 10.406/2002

[3] Lei nº 5.172/1966

[4] Decreto-Lei nº 5.452/1943

[5] Lei nº 8.078/1990

[6] Lei nº 13.874/2019

Autores

  • é advogado tributarista, autor e coautor de obras sobre legislação e Direito Empresarial, ex-professor convidado em universidades, na Fundace/USP (Ribeirão Preto) e Fecap-SP, palestrante, membro da Academia Paulista de Contabilidade e sócio-diretor da Saber Treinamento Profissional e da Miguel Silva & Yamashita Advogados.

  • é advogada, especialista em Direito Empresarial (com concentração nas áreas societária, de contratos e investimentos estrangeiros), certificada em sustainable capitalism & ESG pela Universidade da California Berkeley Law, pós-graduada em Tratados de Bitributação e Propriedade Intelectual na Universidade de Londres, coautora dos livros Prática Tributária nas Empresas (2012, Ed. Atlas, coord.: J. Miguel Silva) e Grupos Econômicos (2015, Ed. Lex Magister, coord.: Ives Gandra da Silva Martins), mediadora certificada segundo os critérios do Conselho Nacional de Justiça e sócia-diretora da Saber Treinamento Profissional e da Miguel Silva & Yamashita Advogados.

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