Garantias do Consumo

Necessidade de intervenção estatal na relação do consumo de combustível

Autor

  • Tiago Nunes

    é advogado professor universitário doutor e mestre em Direito pela Universidade de Marília (Unimar) e ex-procurador Geral da Câmara Municipal de Uberlândia.

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10 de maio de 2023, 8h00

Capitalismo neoliberal. Intervencionismo estatal sistemático: princípios da ordem econômica
Inicialmente, faz-se necessário averbar que, com as disposições previstas no Título VII da Constituição, nota-se a pluralidade de diretrizes pertinentes ao fomento da Ordem Econômica e Financeira, ligadas à distribuição efetiva de bens, serviços, circulação de riquezas, uso da propriedade e tantas outras diretrizes.

A ordem constitucional econômica deve ser interpretada sob a perspectiva da integração da livre iniciativa com a valorização do trabalho e, de igual modo, noções do planejamento estatal e da liberdade de mercado, sem perder de vista o equilíbrio entre a liberdade da empresa e a regulamentação da atividade econômica.

Nessas linhas introdutórias, faz-se necessário averbar a classificação teórica da Ordem Econômica e Financeira consignada na atual Constituição no Título VII, a partir do artigo 170, caput [1].

Destaque-se, também, o conceito segundo Uadi Lammêgo Bulos, "ordem econômica e financeira nos parâmetros fixados pelo constituinte significa organização de elementos ligados à distribuição efetiva de bens, serviços, circulação de riquezas, uso da propriedade, evidenciando, também, aquelas relações de cunho monetário, travadas entre indivíduos e destes com o Estado" [2].

A intervenção do Estado no domínio econômico ainda deve estabelecer, como objetivo, a preservação e a garantia da estabilidade, no que concerne à mantença da função social à propriedade e à constante redução das desigualdades sociais, pois só assim, as conquistas provenientes do liberalismo econômico estarão seguras [3].

No que respeita ao tema sob enfoque, é importante fazer referência à livre concorrência e à livre iniciativa. Advirta-se, todavia, que, ao passar pelo estudo do desenvolvimento econômico, não há como deixar de lado os princípios apontados, que, sem sombra de dúvida, são considerados como elementos indispensáveis e norteadores para o desdobramento do estudo no que concerne ao aspecto econômico.

A partir do conceito exposto, depreende-se que tal princípio tem por finalidade resguardar a concorrência de mercados econômicos, no sentido de impor balizas aos agentes econômicos, para que busquem desenvolver suas operações empresariais com equidade, juntamente com os demais setores de sua atividade empresarial.

Desse modo, Isabel Vaz ensina que a concorrência pressupõe: "Uma ação desenvolvida por um grande número de competidores, atuando livremente no mercado de um mesmo produto, de maneira que a oferta e a procura provenham de compradores ou vendedores cuja igualdade de condições os impeça de influir, de modo permanente e duradouro, nos preços de bens ou serviços" [4].

Como se refere o caput do artigo 170, ele se insere em ordem econômica que é "fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e que tem por fim “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social". Para melhor elucidação sobre a livre concorrência, José Afonso da Silva assim conceitua:

A livre concorrência está configurada no artigo 170, IV, como um dos princípios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira antissocial. Cabe, então, ao Estado coibir este abuso [5].

Maria de Fátima Ribeiro, sobre livre concorrência, em uma de suas obras, assim averbou: "A livre concorrência significa a garantia de que tais atividades econômicas serão exercidas de modo a que as habilidades de cada um determinem o seu êxito ou o seu insucesso, não podendo o Estado, em princípio, favorecer ou desfavorecer artificialmente este ou aquele agente econômico. É importante destacar que a livre concorrência não permite uma concorrência ilimitada e desregrada entre os diferentes agentes econômicos" [6].

É pertinente, porém, assinalar, neste passo que há autores que tecem severas considerações sobre o modo pelo qual a livre concorrência, bem como a livre iniciativa, têm sido aplicados no Brasil atualmente. Sobre o tema, vale a pena destacar as palavras do Professor Otacílio dos Santos Silveira Neto, "a despeito de a Constituição Federal estabelecê-las amplamente, inclusive mais de uma vez ao longo do corpo do texto, na prática, tanto a livre concorrência como a livre-iniciativa no Brasil são institutos extremamente mitigados tanto pela ausência (quando deveria agir e não age, como nitidamente é da defesa econômica) quanto pela presença excessiva do Estado brasileiro no campo econômico (como é o caso da tributação excessiva sobre a propriedade e os entraves burocráticos no comércio)" [7].

Como se pode observar, afinal, a ordem econômica prevista na Constituição de 1988 está estribada nos princípios e soluções contraditórios. Desde já, contudo, cabe uma advertência: é possível perceber que ainda paira uma abertura para a influência preponderante de um capitalismo neoliberal versus um intervencionismo sistemático. Ou seja, ora o Estado age na defensiva, ora age impondo deveres que, consequentemente, dificultam o livre desenvolvimento econômico.

De outro ângulo, o princípio da livre concorrência não se atrela ao abuso do poder econômico. Entretanto, o seu uso descomedido e contra a ética social enseja a rápida intervenção do Estado para coibir excessos. A despeito da livre iniciativa, comumente é tido como instrumento que vela pela liberdade não apenas da atividade empresarial, mas prima também pelo trabalho.

É de se compreender também que, nas relações econômicas modernas, o Estado delegue ao particular, por via legal a prestação de determinados serviços públicos, o que urge dizer que, por delegar, não há que se falar em descaracterização do serviço como público.

O certo é que, no Direito moderno, é compreensível a participação do Estado nas relações econômicas. Antes, porém, deve anotar-se que ao Estado cabe sempre o dever de resguardar a livre concorrência bem como a livre iniciativa, para que haja constante equilíbrio na relação econômica entre particulares e no Estado empresarial.

Protagonistas no controle: o CDC e o Cade
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi editado em 11 de setembro de 1990. Do ponto de vista temporal, compreende-se como lei atrasada de proteção ao consumidor. Afirma-se de tal modo, em decorrência do Código Civil de 1916 e que entrou em vigor em 1917, ter sido aplicado às relações de consumo por praticamente o século 20 inteiro.

No entanto, em que pese o notável atraso, o CDC trouxe apuração altamente decisivo, porque o legislador e professores que conceberam o texto do anteprojeto que deu ensejo a Lei 8.078/90 (apresentado pelo, na época, deputado Geraldo Alckmin), trouxeram para o ordenamento jurídico que existia e, ainda existe, o que há de mais progressista concernente à proteção do consumidor. O desfecho foi tão categórico que a lei brasileira inspirou proteção ao consumidor na Argentina, alterações no Paraguai e no Uruguai.

É sabido que nas relações contratuais regidas pelo direito privado, em especial sob o fundamento da autonomia da vontade, o que se vê é a exegese objetiva da vontade das partes que estabelecidas foram em contrato, derivadas da vontade subjetiva das partes, em tese, passam a viger sob o efeito pacta sunt servanda, noutras palavras, os pactos devem ser respeitados.

Feitos esses apontamentos, importa ressaltar que, repete-se: a teoria pacta sunt servanda, não detém estabilidade nas relações de consumo. Ora, é imperativo compreender que a partir do momento em que o consumidor não é parte no diálogo inerente às cláusulas contratuais, o contrato deverá ser tido como duvidoso, passível, portanto, de questionamentos, em decorrência de não oportunização ao consumidor para trafegar na fase de elaboração das cláusulas contratuais.

Há que enfatizar, que a Constituição de 1988 fortaleceu a relação de consumo elevando-a como direito fundamental (artigo 5º, XXXII). Tamanha é a relevância desse feito, sobretudo, porque não se pode perder de vista o modelo de sociedade capitalista ora plasmado. A par do exposto, entende-se a importância do Procon como órgão fiscalizador nas relações consumeristas, no sentido de atuação preventiva e repressiva.

A essa altura, faz-se necessário averbar que, com as disposições previstas no Título VII da Constituição, nota-se a pluralidade de diretrizes pertinentes ao fomento da Ordem Econômica e Financeira, ligadas à distribuição efetiva de bens, serviços, circulação de riquezas, uso da propriedade e tantas outras diretrizes.

Da análise do título VII, especificamente dos artigos 170 a 192, surge a seguinte indagação: é possível identificar uma Constituição econômica no bojo da ordem jurídica pátria? Tendo como base a expressão "Constituição", como instrumento delineador do sistema capitalista, inegavelmente, a reposta apresenta-se positiva.

A ordem constitucional econômica deve ser interpretada sob a perspectiva da integração da livre iniciativa com a valorização do trabalho e, de igual modo, noções do planejamento estatal e da liberdade de mercado, sem perder de vista o equilíbrio entre a liberdade da empresa e a regulamentação da atividade econômica.

Outro órgão de controle que vale mencionar foi concebido pela Lei n.º 4.137/1962, que fora responsável pelo surgimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

No que diz respeito aos mecanismos protetivos comerciais e econômicos, cumpre anotar que passaram a ter aplicabilidade no período pós-Segunda Guerra. Ademais, é importante destacar, desde logo, as atividades empresariais eram averiguadas sob a guarda constante do Estado, ou seja, de forma direta. Em decorrência disso, ao que parece, é possível afirmar que, naquele lapso temporal, o Cade não alcançou os efeitos para os quais fora criado, ou seja, não desempenhava sua principal função no sentido de regular a concorrência.

Por outro lado, a respeito do Cade, desde a sua concepção, é importante averbar alguns de seus objetivos no âmbito de sua funcionalidade, que se caracterizam como fiscalização, prevenção, orientação e prevenção do abuso econômico.

Convém relembrar que o Cade apresenta-se, do ponto de vista jurídico, como autarquia responsável por zelar pela livre concorrência no mercado econômico, detendo, dessa maneira, competência para fiscalizar e, de igual modo, julgar matérias que, de alguma forma, afrontem a ordem econômica.

É de se reconhecer, contudo, que, quando há atuações exercendo função de julgador, lidando com questões não só jurídicas, mas também com implicações sobre o mercado econômico, surgindo, nesse passo, possíveis conflitos entre o interesse privado versus o interesse público e análise de legalidade versus ilegalidade; justifica-se a presente indagação, com o intuito de se averiguar sobre a possibilidade de se recorrer da decisão emanada pelo conselho.

A par do que fora esposado, é imprescindível compreender que a matéria ora enfrentada, encontra-se alojada no bojo da organização interna do Estado brasileiro e, de igual modo, no núcleo central do ordenamento jurídico, ou seja, na Constituição; quer seja o aspecto formal quer seja o aspecto material, no que se refere à ordem econômica brasileira.

Do presente estudo nota-se que, das diversas diretrizes consignadas no centro da ordem econômica constitucional, apresenta-se como requisito imprescindível a necessidade de harmonização, no tocante à liberdade de concorrência versus a necessidade de respeitabilidade aos limites que ora se observa da leitura das diretrizes impostas pela ordem econômica.

Conclui-se, portanto, que o princípio da livre concorrência não serve como estribo, a partir do momento em que se depara com o abuso do poder econômico. Aliás, a Constituição não reprova o exercício legal do poder econômico. Todavia, como se sabe, no seu uso desarrazoado e antissocial, necessita-se da rápida e precisa intervenção do Estado, a fim de coibir o que é tido como excesso, para que o interesse público não seja violado.

Frise-se, ainda, que, no tocante ao excesso, práticas tidas como abusivas, que emanam do capitalismo monopolista, dos cartéis, não encontram guarida na Constituição de 1988.

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Referências
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

FONSECA, João Bosco Leopoldino de. Direito econômico. São Paulo: Forense, 2005.

NETO, Otacílio dos Santos Silveira. Revista de Direito Público da Economia (RDPE). Belo Horizonte, ano 11, nº 42, abr./jun. 2013.

RIBEIRO, Maria de Fátima. Novos Horizontes da Tributação: um diálogo luso-brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

VAZ, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

 


[1] Artigo 170. "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios".

[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.258.

[3] FONSECA, João Bosco Leopoldino de. Direito econômico. São Paulo: Forense, 2005. p. 241. Nesse ponto, o referido autor expõe o seguinte entendimento sobre as razões que fizeram o Estado moderno a intervir no domínio econômico: "A segunda razão consiste nos critérios de equidade na distribuição. Ante a insuficiência dos puros e naturais critérios econômicos-capitalistas, torna-se necessária a intervenção estatal para se eliminarem as desigualdades. O Estado assume o compromisso de atuar na justiça distributiva, buscando uma justa distribuição da renda".

[4] VAZ, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 27.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 876.

[6] RIBEIRO, Maria de Fátima. Novos Horizontes da Tributação: um diálogo luso-brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 259.

[7] NETO, Otacílio dos Santos Silveira. Revista de Direito Público da Economia (RDPE). Belo Horizonte, ano 11, nº 42, p. 123-140, abr./jun. 2013.

Autores

  • é advogado, professor universitário, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Marília (Unimar) e ex-procurador Geral da Câmara Municipal de Uberlândia.

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