Opinião

Sistema de Varsóvia e a responsabilidade civil no transporte aéreo internacional

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10 de maio de 2023, 21h15

O fascínio do ser humano com o céu e o desejo de voar pelos ares vem de longa data. O mito de Ícaro, que confeccionou suas próprias asas e voou longe demais até o sol, o projeto de aeroplano de Leonardo da Vinci, e o voo inaugural do 14-Bis de Alberto Santos Dumont, em 1906, estão unidos umbilicalmente pelo eterno fascínio do homem com a aviação.

Porém, voar não é sinônimo apenas de prazeres, o que rapidamente foi descoberto na Era de Ouro da Aviação. Embora em franca ascensão no começo do século 20, a aviação civil se desenvolvia sem qualquer regramento que minimamente organizasse os voos, ditasse os direitos e obrigações dos primeiros aviadores, ou previsse as responsabilidades das recém-nascidas companhias aéreas e seus passageiros.

Anota-se, ainda, que o desenvolvimento dos primeiros aviões foi impulsionado pela 1ª Grande Guerra Mundial de 1914, em um contexto em que não havia grande preocupação com a segurança de voo, dada a rapidez com que as aeronaves precisavam sair da linha de produção em direção ao confronto.

Com o fim da guerra, essas precárias aeronaves foram descomissionadas e vendidas a particulares, vindo a ser utilizadas de forma improvisada tanto no transporte de passageiros, como em exibições acrobáticas, resultando em diversos acidentes e incontáveis prejuízos.

Logo, tornou-se clara a necessidade de regulamentação do setor, mediante a estruturação de regras claras e uniformes, sobretudo no cenário internacional, para atribuir os direitos e obrigações das partes do contrato de transporte aéreo.

Com essa finalidade, foi realizada a Convenção de Varsóvia, que resultou na assinatura da Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Internacional em 12 de outubro de 1929.

Essa convenção estabeleceu as primeiras regras para uniformização dos direitos e obrigações dos transportadores aéreos e dos usuários de transporte aéreo internacional, tratando especificamente da responsabilidade do transportador por morte, ferimento ou lesão corporal à passageiro e tripulante, além das hipóteses de atraso ou cancelamento de voo, perda ou avaria de bagagens e carga, estipulando os respectivos limites indenizatórios.

Nesse contexto, podemos dizer que a aludida convenção teve papel importante na consolidação do transporte aéreo como uma atividade internacionalmente bem-sucedida. Além disso, é um dos principais marcos da regulamentação aviação civil internacional, na medida em que constitui a espinha dorsal de um sistema que subsiste até os dias de hoje.

De forma resumida, o Sistema de Varsóvia consiste nas linhas mestras estabelecidas pela Convenção de 1929, e instrumentos posteriores: o Protocolo de Haia de 1955, a Convenção de Guadalajara de 1961, o Protocolo de Guatemala de 1971 e o Protocolo de Montreal de 1975, orientados ao aprimoramento dos ditames relativos à responsabilidade do transportador aéreo e ampliação de seus limites indenizatórios.

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Todos esses culminaram na edição da Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, conhecida simplesmente como Convenção de Montreal.

A Convenção de Montreal, em vigor no Brasil desde a publicação do Decreto nº 5.910 de 27 de setembro de 2006, se aplica a todo transporte internacional de pessoas, bagagem ou carga, efetuado por empresa de transporte aéreo de maneira remunerada ou gratuita, prevendo limitações à responsabilidade civil como forma de proteger a viabilidade econômica desta atividade.

No sistema vigente, o transportador responde em caso de morte ou lesão corporal grave até o valor equivalente a 100 mil DES (direitos especiais de saque) por passageiro. Em caso de atraso no transporte de pessoas a responsabilidade do transportador se limita a 4.150 DES por passageiro. No transporte de bagagem, o limite indenizatório será de 1.000 DES, nas hipóteses de destruição, perda, avaria ou atraso. No que diz respeito à carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 19 DES por quilograma, salvo se realizada declaração especial de valor pelo expedidor.

Destaca-se a Convenção também disciplina o prazo dentro do qual a parte prejudicada deterá direito de exigir reparação em face da companhia aérea, prevendo, no Artigo 35, que "o direito à indenização se extinguirá se a ação não for iniciada dentro do prazo de dois anos, contados a partir da data de chegada ao destino, ou do dia em que a aeronave deveria haver chegado, ou do da interrupção do transporte".

Vale mencionar que o direito especial de saque (em inglês, special drawing right — SDR) é a moeda convencional do FMI (Fundo Monetário Internacional), instituída em 1969. Seu valor é determinado pela variação média da taxa de câmbio das cinco principais moedas utilizadas no comercio internacional: dólar norte americano, euro, libra esterlina, yen japonês e yuan chinês.

A medida veio para substituir o franco-Poincaré, padrão instituído pelo Protocolo de Haia, cujo valor fora indexado ao preço de 65,5 miligramas de ouro com a cotação de 1929, na intenção de manter um padrão indenizatório que pudesse ser reajustado periodicamente, de modo a contornar a inevitável desvalorização monetária.

Destaca-se, ainda, que embora o Brasil seja signatário de ambas as convenções, sua aplicação nas relações que envolvem o transporte de passageiros e bagagem, em detrimento das normas estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor, foi objeto de controvérsia por muito tempo. O tema foi sedimentado somente em 2017, por meio do julgamento Recurso Extraordinário (RE) Nº 636.331, quanto foi fixada a tese de que "as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor", no âmbito do Tema 210.

Posteriormente, o assunto foi esmiuçado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1394401, fixando a tese de que os limites indenizatórios previstos nas Convenções de Varsóvia e Montreal cingem-se exclusivamente aos danos materiais suportados por passageiros e usuários dos serviços de transporte aéreo internacional, e que não se aplicam a eventuais danos extrapatrimoniais que sejam apurados caso a caso (Tese nº 1.240).

No que tange às indenizações decorrentes de falhas ocorridas no transporte de cargas, vale mencionar que o Superior Tribunal de Justiça, por meio de recentes precedentes, vem firmando o entendimento de que o limite de 19 direitos especiais de saque (DES) por kg de carga imposto nas Convenções de Varsóvia e Montreal deve ser observado, seguindo as orientações do STF nos supramencionados recursos.

Reforçou-se, portanto, em sede de jurisprudência, o entendimento quanto a necessidade de observância das convenções e tratados internacionais, principalmente quando ratificados pelo Brasil, como meio de preservação da segurança jurídica, o desenvolvimento e viabilidade econômica da atividade aeroviária no Brasil.

A Convenção de Varsóvia, complementada pelos protocolos internacionais posteriormente firmados com o escopo de estabelecer as regras para o transporte internacional de passageiros e carga, constituem um importante sistema, que contribuiu historicamente para a organização e avanço do transporte aéreo internacional.

O referido regramento, assim como a atividade que se propõe ordenar está em constante evolução e amadurecimento. Por essa razão, é relevante acompanhar o amadurecimento do tema, sobretudo sobre o enfoque da responsabilidade civil do transportador aéreo, que, como visto, é extremamente relevante para o estudo do direito aeronáutico no Brasil e no mundo.

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Referências
MORSELLO, Marco Fábio. Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo. São Paulo, Editora Atlas, 2006

https://sbda.org.br/wp-content/uploads/2018/10/1678.htm

https://www.imf.org/en/Topics/special-drawing-right

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5910.htm

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4040813

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6450365

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