Opinião

Lei altera Maria da Penha para reforçar a natureza da medida protetiva de urgência

Autores

  • Fernanda de Avila e Silva

    é advogada arquiteta especialista em direito humanos responsabilidade social e cidadania global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) pós-graduanda em processo civil cofundadora do Me Conta Direito e pesquisadora do grupo Mulheres e Democracia (IDP-SP e Unichristus).

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  • Raíssa Marcandeli

    é advogada mestranda em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pesquisadora do Grupo Mulher e Democracia: Renda e Justiça de Gênero (IDP-SP e Unichristus) e membra do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Nepedi/Uerj).

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9 de maio de 2023, 15h17

Mais uma vez a Lei Maria da Penha recebe uma importante alteração que, se bem aplicada, poderá trazer mudanças significativas no cenário do combate à violência de gênero, tendo em vista que a nova lei determina que as medidas protetivas sejam concedidas em juízo de cognição sumária.

A violência contra as mulheres, no Brasil, vem aumentando de modo significativo, com o passar dos anos e, em 2022, não foi diferente. Segundo a pesquisa denominada "Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil", todas as formas de violência contra a mulher aumentaram durante o ano de 2022 [1].

Abrangendo todas as regiões do Brasil, o levantamento foi realizado entre os dias 9 e 13 de janeiro de 2023, envolvendo pessoas com idades acima dos 16 anos, em 126 cidades, e incluiu todas as formas de violência contra as mulheres, desde xingamentos até feminicídios.

De acordo com o estudo, 28,9% das mulheres relataram ter sido vítimas de algum tipo de violência ou agressão, a maior prevalência já verificada na série histórica (observando-se que o campo da pesquisa foi realizado no início de janeiro e, assim, os resultados se referem a eventos ocorridos ao longo do ano de 2022). Por isso, a pesquisa apontou que "Em relação à última pesquisa realizada, o crescimento foi de 4,5 pontos percentuais, o que revela um agravamento das violências sofridas por mulheres no Brasil" (p. 21).

A pesquisa também constatou que, dentre as violências citadas, a maior incidência foi de ofensas verbais, com 23,1% de prevalência, seguida da perseguição, com 13,5% de frequência, e da ameaça que registrou 12,4%. Com relação à agressão física, como empurrões, socos, bofetadas e chutes, a pesquisa revelou a porcentagem de 11,6%, ao passo que expôs as ofensas sexuais, com 9%; espancamento ou tentativa de estrangulamento, com 5,4%; ameaça com faca ou arma de fogo, com 5,1%; lesão provocada por algum objeto que lhe foi atirado, com 4,2%; e esfaqueamento ou tiro, com prevalência de 1,6% (p. 21).

Na comparação com as pesquisas realizadas anteriormente, é possível verificar um crescimento acentuado de formas de violências graves, uma vez que na pesquisa de 2021 a porcentagem de batidas, chutes ou empurrões foi de 6,3%, à medida que na de 2022, foi de 11,6%. A mesma circunstância de evolução se repetiu com os casos de ameaças com facas ou armas de fogo, com a porcentagem de 3,1% em 2021 e 5,1% em 2023 (p. 22).

Mais um ponto importante: o estudo apontou que "o crescimento de armas em circulação pode estar associado ao aumento substancial das ameaças com uso de armas de fogo", uma vez que, projetando os dados acima destacados para a população feminina, estimamos que, há dois anos, 2.199.388 mulheres haviam sido ameaçadas com facas e armas de fogo, e na pesquisa mais recente, o número de mulheres ameaçadas alcançou o patamar de 3.303.315 (p. 24).

Também com base no já citado estudo, foi evidenciado que um terço das mulheres brasileiras já sofreu algum episódio de violência física, ou sexual, pelo menos uma vez na vida. Assim sendo, ressaltou-se que "Esse índice foi apurado pela primeira vez e é mais alto que o registrado globalmente (27%), em um levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2021. Quando incluídas as violências psicológicas, o número de mulheres brasileiras que já sofreu episódios de violência sobe para 43%" [2]

Pensando nisso, e estabelecendo relação com o tema que trazemos aqui, de acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2021 (p. 102) [3], no ano de 2019, foram concedidas 281.941 medidas protetivas, ao passo que, em 2020, foram 294.440, registrando, também, uma evolução nos números.

Ainda, é possível depreender significativo aumento reportado pelos Anuários, tanto nos requerimentos, quanto nas concessões das medidas protetivas de urgência.  De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2022 (p. 151) [4], no ano de 2020, foram requeridas 443.348 e concedidas 323.570 medidas protetivas de urgência. Já em 2021, foram realizados 463.096 requerimentos e deferidas 370.209 medidas protetivas. Isso representa um aumento de 14,4% [5].

Isto é, a cada ano, é possível verificar a existência de aumento nos registros dos casos de violência contra as mulheres, seja porque eles evoluíram, seja porque casos de subnotificação estão sendo revelados, uma vez que a sociedade tem percebido o aumento de episódios de violência contra as mulheres (2021, p. 15) [6] e, possivelmente, terceiros têm formalizado denúncias, eis que muitas mulheres não denunciam as agressões que sofrem, seja por medo do agressor, do julgamento da sociedade ou da violência institucional que, inegavelmente, revitimiza as mulheres.

Diante disso, a ministra Simone Tebet, então Senadora, apresentou ao Senado Federal o Projeto de Lei n° 1604 de 2022, que buscava alterar a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).

O objetivo principal do PL [7] era tornar mais explícito o âmbito de cobertura da Lei Maria da Penha e, com isso, combater o entendimento equivocado dos tribunais superiores que, ao longo dos anos, restringiram a aplicação da Lei, deixando de oferecer esse mecanismo tão importante de proteção a muitas mulheres vulneráveis, com base em argumentos que desconsideram, completamente, o fato de que a concessão de uma medida protetiva tem um caráter preventivo e assistencial, não punitivo.

Antes do PL não havia qualquer previsão na Lei Maria da Penha que autorizasse uma interpretação restritiva. Ou seja, não havia nada na lei que dispusesse sobre a negativa na concessão de uma medida protetiva com fundamento em: condições pessoais do ofensor, exigência de que o agressor fosse um homem, ausência de correspondência criminal dos atos de violência doméstica ou existência de uma prova cabal do crime. Mas, mesmo sem respaldo legal, até a publicação da nova lei, decisões corriqueiramente insistiam na presença de tais elementos para conceder uma medida que tem a única e exclusiva função de proteger as mulheres.

Não é raro encontrar alguém dizendo que um agressor cometeu o crime "de Maria da Penha" quando fala em violência doméstica, mas, além de ser essa uma interpretação equivocada, na realidade, o objetivo dessa Lei não é, e nunca foi, sancionatório, tanto que a única sanção prevista é o descumprimento de medida protetiva. Para haver o descumprimento, em primeiro lugar, a medida precisa ser concedida, o que, até hoje, não tem sido algo muito simples de conseguir, mesmo diante de um cenário de insegurança em um país que subjuga mulheres.

Feliz e finalmente, em 20 de abril de 2023, a Lei n° 14.550/23, que altera a Lei Maria da Penha, cujo projeto é de autoria de Simone Tebet, foi publicada.

Com a sanção do presidente Lula, a alteração teve por objetivo, principalmente, estabelecer que [8]: "As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes", bem como que "As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência" (BRASIL, 2023).

Há pouco, dissemos que felizmente a lei foi publicada, com isso, a Lei Maria da Penha avançou, de modo a cada vez mais garantir segurança às mulheres. No entanto, o sentimento é paradoxal, afinal, não sejamos ingênuas, todo o cenário de violência que desenhamos aqui revela o motivo da criação dessa nova versão da Lei é, evidentemente, um cenário devastador como esse, que não tem nada a ser celebrado.

Assim, comemoremos cada novo passo, mas com a cautela de lembrarmos a razão de continuar lutando, com a consciência de que não estamos sequer perto da igualdade que desejamos e que, para conquistá-la, há questões mais profundas que precisam ser revistas.

 


[5] É importante esclarecer ao leitor que, os dados apresentam variações de um ano para o outro, pois, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (p. 151) a quantia de 443.348 se trata de uma atualização das informações publicadas no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 15, 2021, o que se percebe pelo aumento do número entre as publicações.

Autores

  • é advogada, arquiteta, especialista em direito humanos, responsabilidade social e cidadania global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), pós-graduanda em processo civil, cofundadora do Me Conta Direito e pesquisadora do grupo Mulheres e Democracia (IDP-SP e Unichristus).

  • é advogada, mestranda em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos, pesquisadora do Grupo Mulher e Democracia: Renda e Justiça de Gênero (IDP-SP e Unichristus) e membra do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Nepedi/Uerj).

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