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Gomes da Silva: Premissas equivocadas do juiz das garantias

28 de junho de 2023, 12h19

Por Gilson Miguel Gomes da Silva

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A figura do juiz das garantias, em especial, adveio sob a alegação de constituir avanço na imparcialidade do juiz. Contudo, os argumentos empregados para sustentar a ideia carecem de comprovação técnica e deformam a dogmática processual.

No Direito brasileiro, o sistema é o acusatório, mas não puro, pois, ao juiz, são conferidos poderes processuais inexistentes no ortodoxo (TOURINHO, 2018). A Lei 13.694/19 inseriu o artigo 3º-A no Código de Processo Penal, previu a "estrutura acusatória" e não sistema; vedou a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atividade de construção de provas do órgão acusatório. A garantia da imparcialidade do juiz, sucumbe, desde logo, ante a previsão de o juiz produzir provas, unilateralmente, a favor da defesa. Exibe-se perigosa tal exceção, porque gera uma espécie deformada de juiz, jamais vista; um juiz-defensor, em franca ofensa a diversos institutos consagrados, entre estes o da igualdade e paridade de armas. A argumentação de que a atuação protetiva do juiz ao acusado atrela-se ao maior aparelhamento do Ministério Público, não se sustenta, haja vista a existência de renomadas sociedades de advogados dotadas, por vezes, de superiores recursos, a ponto de o desequilíbrio desfavorecer a acusação. Nesse passo, essencial enfatizar-se o sistema acusatório como gênero possuidor de duas espécies: adversarial system e inquisitorial system. Isto porque a discussão relativa à atividade do juiz na etapa processual e, excepcionalmente, na fase administrativa do inquérito, associa-se à maneira de se compreender o processo. Duas alternativas políticas de processo refletem na conduta obrigatória do juiz no sistema acusatório, distintas pela natureza privativista de um e pública do outro. Nos países de cultura anglo-saxônica nota-se adversarial system, enquanto o inquisitorial system — processo de desenvolvimento oficial, regra da inquisitividade, ou princípio da instrução —, se sobressai naqueles de modelo continental de direito e "os dois se manifestam sob o sistema acusatório, não se podendo fazer confusão quanto ao nome do segundo, com vinculações incorretas ao sistema ou princípio inquisitivo" (ANDRADE, 2013).

No adversarial system as partes são responsáveis pelo trâmite e produção de provas, com a inércia do juiz, indiferente ao resultado das decisões junto à sociedade, sob preceitos liberais de cunho privado. A crítica assenta-se que, na defesa da causa, os profissionais técnicos se valem de suas habilidades para obstar a descoberta da verdade, e "não é por acaso que se diz que no processo que se deixa inteiramente à iniciativa das partes, a verdade transforma-se em um objeto impossível de se alcançar, ou irrelevante à finalidade …" (TARUFO, 2014). No sistema acusatório, na modalidade inquisitorial system, não se atribui só às partes a incumbência e confiança na construção probatória; o juiz concorre para superar a omissão, conveniência ou mesmo eliminar possível aliança delas. Prevalece o interesse público na prestação jurisdicional, à busca da verdade possível e da decisão mais próxima ao justo. O desconhecimento, a incompreensão ou as distorções relativas ao inquisitorial system propiciam a reprovação da atividade probatória do juiz. Entretanto, essa vertente do sistema acusatório não subtrai do juiz a sua imparcialidade ou a transmuda para a inquisição. Presta-se apenas "a impedir que as partes ocultem fatos ou provas, ou que venham a deles dispor, sobre um tema que é de interesse público" (ANDRADE, 2013). A natureza pública não implica sua aderência ao sistema inquisitivo e "será equívoco chamar inquisitório, e que preferimos denominar investigatório: princípio pelo qual se traduz o poder-dever do juiz de esclarecer e instruir, independentemente da contribuição das partes, o fato sujeito a julgamento" (GRINOVER, 1982). As legislações da Espanha, Portugal, Itália e Alemanha conferem iniciativa probatória ao juiz, supletiva às partes, e mesmo na reforma chilena, se ressalvou a permissão de o juiz intervir na prova testemunhal e pericial, posteriormente, às partes; e, na seara normativa, a Constituição Federal de 1988 não vedou "a intervenção ou iniciativa probatória do juiz criminal…" (PACELLI; FISCHER, 2017).

Defensores do Juiz das Garantias apegam-se a alguns julgados do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (Tedh). Comumente, aos casos Piersack vs. Bélgica, de 1982, e Cubber vs. Bélgica, de 1884. No primeiro, cuidou-se da imparcialidade de juiz, quem antes representou o Ministério Público nas investigações dos fatos. No segundo, o julgador proibido foi juiz-instrutor na investigação criminal. Eram hipóteses de imparcialidade. Só que o ordenamento pátrio possui semelhante impedimento no CPP/1941 (artigo 252, II). Salienta-se, no caso Cubber, se o investigador fosse o juiz da causa, já no século XIX se previa a "causa de impedimento, materializada na Decisão de Governo nº 81, de 02.04.1824. Em síntese, ao contrário do que sustenta essa linha doutrinária, absolutamente nada tem o Brasil a aprender com as apontadas decisões proferidas pelo Tedh" (ANDRADE, 2015).

Outra pauta: da "contaminação" do juiz, ao tomar ciência dos termos do inquérito ou adotar, previamente ao processo, medidas cautelares. E de forma distorcida, tem-se indicado os fenômenos do comportamento tratados na Teoria da Dissonância Cognitiva, do psicólogo Leon Festinger, em 1957. Estranho o recente manejo da teoria; à época, renomados doutrinadores nada notaram na teoria que acrescesse cientificidade ao processual penal; dentre eles: Nelson Hungria, Roberto Lyra, Hélio Tornaghi, J. Frederico Marques. Seria demasiada arrogância se conjecturar que, junto com os estrangeiros (Francesco Carnelutti, Michele Taruffo), não perceberam a teoria aplicável ao processo ou a desprezaram. Representa o desvirtuamento, a informação da tendenciosa de o juiz não alterar o seu comportamento inicial, frente às provas da defesa, embora não explique as absolvições diante de pedido condenatório.

Diversamente, a dissonância em regra: "muito comportamento oferece pouca ou nenhuma resistência à mudança, por certo. Modificamos continuamente muitas de nossas ações e sentimentos de acordo com as mudanças da situação" (FESTINGER, 1975). As dificuldades ocorrem ao implicar sentimento doloroso, prejuízo ou o modo de agir precisa ser satisfatório em todos os aspectos (renunciar ao tabaco; aquisição de casa e extremas despesas; apesar da qualidade, o indivíduo frequenta o restaurante pelos amigos). Diz-se impossível alteração dissonante: em reações emocionais, por ausência de controle da pessoa (reação ao medo); se o novo modo não faz parte do repertório da pessoa (ignora a existência da maneira de agir); ou devido à natureza irrevogável de certas ações (vende o imóvel e o quer de volta). Então, a resistência à mudança cognitiva não se eterniza. Só não pode ser superior a pressão correspondente à realidade: "A primeira e mais importante fonte de resistência à mudança para qualquer elemento cognitivo é a receptividade de tais elementos à realidade — se notamos a grama verde, difícil não a considerar dessa cor" (FESTINGER, 1975). Essa síntese se perfaz suficiente a afastar a teoria para fins processuais. Aliás, segundo Festinger, o estudo visava ao mercado. Por isso, cabível o alerta na adaptação da temática de teorias psicológicas ao sistema jurídico, porque o construto original e respectivos estudos estão impregnados de condicionantes científicos e estatísticos impeditivos de convicção simples e direta, com risco de vieses sem a sua verificabilidade, quanto à forma eficaz de solução (VITORELLI, 2021).

Outra disformidade plantada: o resgate do experimento de Bernd Schüneman, em 2000. O alemão, baseado na teoria, procurou confirmar a incidência dos efeitos no juiz: a. da inércia ou perseverança — tendente à auto-confirmação —, em que o indivíduo superestima a hipótese anterior, e menospreza aquelas antagônicas à sua cognição prévia; b. busca seletiva de informações no intuito de aceitar as consonantes e refutar as que aumentariam a dissonância. Juízes e promotores de Justiça (julgadores) participaram, em grupos, submetidos a variáveis independentes (ciência ou não dos autos; direito ou não de inquirir testemunhas em audiência). O resultado indicou que os dezessete juízes conhecedores dos autos condenaram, enquanto os que não tiveram acesso foram ambivalentes, pois oito condenaram e dez absolveram. Daí se concluiu que o conhecimento dos autos influenciou na condenação. Torna-se essencial registrar, contudo, que os promotores, entre os conhecedores dos autos, só um condenou e quatro absolveram; os que não acessaram, quatro condenaram e um absolveu. Originou-se o paradoxo: os 17 juízes conhecedores dos autos condenaram e, dos cinco promotores, quatro absolveram. Estranhamente, o pesquisador confirmou sua tese (o conhecimento dos autos de investigação preliminar, que corresponde ao inquérito policial, tendencialmente incriminador leva o juiz a condenar o acusado). A surpresa maior consistiu na aceitação tão só dos dados extraídos das decisões dos juízes, acrescida da seguinte ressalva: "ainda que se deixem de lado outros resultados, como a avaliação visivelmente mais crítica dos promotores e ainda mais intensa distorção nas sentenças dos juízes sem possibilidade de inquirição" (SCHÜNEMANN, 2013). Mas, houve graves omissões no experimento: ausência de advogados e a inexistência de debates orais. Essa supressão e a subversão do procedimento oral por material escrito, pareceu um evento e não uma simulação. Nesse cenário, impossível inferir-se qualquer conclusão científica. Já em terras brasileiras, as decisões prévias à sentença obedecem a requisitos distintos desta, como o mero juízo de delibação na análise da denúncia. Portanto, improvável a incidência do efeito inércia ou perseverança da decisão que contaminaria o juiz, nem da aliança com o denunciante. Malgrado isso, imprescindível se insistir na aferição do viés, quanto à sentença proferida pelo mesmo juiz autorizador de medidas de reserva de jurisdição.

A teoria das Molduras Relacionais explica a linguagem e cognição humana, com lastro nas respostas relacionais derivadas, que a capacidade dos seres humanos no aprendizado — pela experiência empírica ou verbalmente, ao conectar símbolos e fixar significados num contexto —, adequa-se ao ambiente. A evolução da aprendizagem, seus conjuntos de variáveis, produzem efeitos funcionais distintos no comportamento do indivíduo. Toda essa multiplicidade modifica a forma de as pessoas analisarem as repercussões diretas ou sociais, o que significa que os efeitos serão distintos em harmonia às experiências de cada um. O conhecimento refinado do produto autoriza o indivíduo saber dos eventos essenciais à tomada de decisão e o capacita, ainda, na intervenção e aperfeiçoamento desse processo (VITORELLI, 2021).

Adverte-se. A nova figura poderá gerar efeito contrário à proteção de direitos humanos. Dividir o poder visa, segundo alguns, à preservação da imparcialidade. Logo, o juiz das garantias estará sujeito à elevada disponibilidade do discurso de crimes em andamento, sem contraditório a esse respeito. Submetido a tal rotina, não corrigida a sua percepção pelas absolvições futuras, será exposto a uma cascata de disponibilidade que o induza a autorizar as mais variadas medidas de investigação. Também, exercerá influência no juiz da instrução, por ser colega e colhido as provas; gozará da presunção de haver aptidão o recebimento da denúncia, com inclinação de adesão a ele, o que torna quase inócua a repartição de tarefas (VITORELLI, 2021).

A dúvida no pensar e agir integram os humanos. Entender o indivíduo incapaz de modificar sua cognição e comportamento, seria não reconhecer a existência da filosofia, medicina, psicologia, psiquiatria e da evolução do saber. Após o primeiro diagnóstico, na posterior avaliação, o médico poderá ajustar ou alterar o tratamento do paciente. Entendimento parelho deve ser ao exercício do juiz. Nesse sentido: "é possível concluir que não há fundamentos científicos comportamentais ou jurídico-comparativos para estabelecer o juiz de garantias como um requisito necessário a proporcionar ou incrementar a imparcialidade judicial, no Brasil" (VITORELLI, 2021). Destarte, plenamente factível ao juiz controlar-se na prolação de sucessivas decisões e, ao final, proferir julgamento diverso à sintonia das anteriores. Não fosse essa a conclusão, restaria afetado de morte o direito de o advogado "dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada", contido no inciso VIII, do artigo 7º, da Lei 8.906/1995 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil).

Respeitante à manipulação mental de que, na operação "lava jato", os juízes se "contaminaram" e adotaram posturas parciais, pensa-se que a exceção, à guisa de eventuais desvios, além da abundante via recursal e do Habeas Corpus, a correção deve ser resolvida casuisticamente, sem que repercuta na modificação de todo o sistema processual. Em suma, na linguagem do homem do campo: "não se mata a vaca para acabar com o carrapato".

Por fim, alerta-se que a mutilação dos poderes do juiz na esfera penal, por coerência lógica, impõe a modificação de todo o estatuto processual utilizado pelos demais ramos do Direito.

 


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2013.

__________________. Juiz das Garantias. 2ª ed. Curitiba: Ed. Juruá, 2015.

FESTINGER, Leon. Teoria da Dissonância Cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1975.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982.

PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.

SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito. Trad. Luís Grecco. 1ª ed. São Paulo: Ed. Marcial Pons, 2013.

TARUFFO, Michele. A Prova. Trad. João Gabriel Couto. São Paulo: Ed. Marcial Pons, 2014.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 17ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2018.

VITORELLI, Edilson e outro. Imparcialidade judicial e psicologia comportamental: há fundamento científico para um juiz de garantias? vol. 316. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2021.