REUNIÃO MALDITA

Bolsonaro cometeu abuso de poder político em reunião com embaixadores, diz relator

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27 de junho de 2023, 22h22

Ao promover uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada meros três meses antes das eleições de 2022, Jair Bolsonaro usou do cargo de presidente da República e dos meios de comunicação social em desvio de finalidade que representa abuso de poder. A conduta teve gravidade suficiente para gerar sua inelegibilidade.

Essa foi a conclusão apresentada pelo ministro Benedito Gonçalves,  corregedor-geral da Justiça Eleitoral e relator da primeira das 16 ações de investigação judicial eleitoral (aijes) ajuizadas contra Jair Bolsonaro pelos atos praticados antes e durante a campanha de 2022.

Antonio Augusto/Secom/TSE
Julgamento foi interrompido sem pedido de vista após voto do ministro Benedito
Antonio Augusto/Secom/TSE

O extenso voto foi apresentado ao colegiado com a conclusão de julgar parcialmente procedente a aije ajuizada pelo PDT, com declaração de inelegibilidade de 8 anos apenas de Jair Bolsonaro. O general Walter Braga Netto, vice na chapa bolsonarista, foi poupado porque não se envolveu no episódio.

Essa foi a segunda sessão de julgamento dedicada ao caso. A primeira envolveu a leitura do relatório sobre o caso e as sustentações orais dos advogados Tarcísio Vieira de Carvalho, por Jair Bolsonaro, e Walber Agra, que atua pelo PDT junto com a advogada Ezikelly Barros.

O julgamento foi interrompido sem pedido de vista e será retomado na quinta-feira (29/6), com voto do ministro Raul Araújo. O relator ainda propôs o envio do caso para a Procuradoria-Geral de Justiça, para tomada de eventuais providências na área penal, e para o Tribunal de Contas da União, por conta do uso de bens e recursos públicos com desvio de finalidade.

Esticou demais a corda
Em resumo, o ministro Benedito Gonçalves concluiu que os atos praticados por Bolsonaro na condição de presidente da República, chefe de Estado e candidato à reeleição esgarçaram a normalidade democrática e a isonomia da votação, situação suficiente para levar à sua punição.

O longo voto do relator foi resumido para o público de modo a analisar se o ato pelo qual Bolsonaro foi processado acabou por ofender os bens jurídicos tutelados pela ação de investigação judicial eleitoral: legitimidade, normalidade, isonomia e liberdade do eleitor na votação. A resposta foi positiva.

“Ao propor uma cruzada contra uma inexistente conspiração para fraudar eleições, não estava perdido em autoengano. Estava fazendo política e estava fazendo campanha. A recusa de valor ao conhecimento técnico a respeito das urnas e a repulsa à autoridade do TSE foram manejadas como ferramentas de engajamento”, destacou o relator.

Para Benedito Gonçalves, Bolsonaro foi hábil se impor para parte do eleitorado como fonte confiável a respeito do sistema de votação e exerceu esse papel com desprezo às informações técnicas e à verdade dos fatos. Com isso, acirrou tensões institucionais e instigou a crença de que a adulteração de resultados era uma ameaça real, apesar de não haver provas.

Antonio Augusto/Secom/TSE
Segunda sessão de julgamento da aije dos embaixadores foi totalmente dedicada à leitura de um resumo do voto do relator
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“A banalização do golpismo — meramente simbolizada, nestes autos, pela minuta que propunha intervir no TSE e dormitava, sem causar desassossego, em uma pasta na residência do ex-Ministro da Justiça — é um desdobramento grave de ataques infundados ao sistema eleitoral de votação”, disse.

Se Bolsonaro não é o único elo que conecta esses fenômenos, é ao menos pessoalmente responsável pelo evento com os embaixadores, pois se envolveu ativamente em sua organização, execução e transmissão. Desse desvio de finalidade, não participou seu candidato a vice em 2022, general Walter Braga Netto.

Uso indevido dos meios de comunicação
O voto do relator fez uma exauriente análise do discurso de Bolsonaro na reunião para concluir que a conduta pode ser enquadrada no ilícito, devido à difusão deliberada e massificada de severa desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira em benefício da própria candidatura.

A conclusão se baseou em sete pontos:

  1. Na reunião, Bolsonaro apontou que houve manipulação de votos nas Eleições de 2018 e inércia, conivência e interesse do TSE, que prejudicou a investigação de indícios de fraude eleitoral, em uma espécie de conluio para manter o sistema vulnerável e manipulável.
  2. A mensagem atentou diretamente contra a confiabilidade dos resultados eleitorais e contra o papel institucional do TSE na preparação e organização das eleições, na interlocução com embaixadas, na Comissão de Transparência Eleitoral e nas missões internacionais de observação eleitoral.
  3. O discurso de Bolsonaro ignorou informações oficiais sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação e explicações dadas pelo TSE para o não acatamento de sugestões das Forças Armadas na Comissão de Transparência.
  4. As informações falsas usadas foram usadas por ele ao longo do mandato e durante a campanha de reeleição para formar bolhas no eleitorado.
  5. Bolsonaro usou de conspiracionismo, vitimização e pensamentos intrusivos para passar a ideia de que as eleições de 2022 estava sob risco e de que ele próprio, em simbiose com as Forças Armadas, seria o responsável por uma cruzada em nome da transparência e da democracia.
  6. A transmissão do evento e da fala pela TV Brasil e pelas redes sociais de Bolsonaro fez a mensagem se alastrar rapidamente, efeito que foi potencializado pela tendência das informações falsas, sobretudo em temas políticos, a circular com maior velocidade e produzir mais engajamento.
  7. Quando o evento ocorreu, Bolsonaro era pré-candidato. Isso permitiu sua a projeção midiática antecipada de temas que foram explorados continuamente na campanha, assegurando aos investigados vantagem eleitoral triplamente indevida: em função do momento, em função do veículo e em função do conteúdo.
Antonio Augusto/Secom/TSE
Julgamento será retomado na quinta (29/6) com voto do ministro Raul Araújo (à dir.)
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Gravidade e consequências
O voto também apontou a gravidade acentuada das condutas, uma vez que Bolsonaro violou ostensivamente os deveres do Presidente da República listados no artigo 85 da Constituição Federal, de zelar pelo exercício livre dos Poderes instituídos e dos direitos políticos e pela segurança interna.

“A discrepância entre as declarações feitas e a realidade não constituem mera imprecisão ou equívoco, mas, sim, desabrida manipulação de sentidos, conduzida com método, para fins de manter suas bases políticas mobilizadas por elementos passionais a serem explorados para fins eleitorais”, pontuou o ministro Benedito.

Afirmou ainda que o conteúdo veiculado por ele não poderia esclarecer pontos obscuros sobre o processo eleitoral brasileiro, mas apenas incitar um “estado de paranoia coletiva diante do amontoado de informações falsas ou distorcidas, relativas a tema de alta complexidade técnica” as quais o próprio Bolsonaro não dominava.

As consequências foram igualmente graves, uma vez que a reunião contribuiu para o caos desinformacional a respeito da governança eleitoral e do sistema eletrônico de votação, permitiu acionar a militância a partir de simples menções a episódios que se amarram pelo conspiracionismo e permitiu a ele se firmar como “fonte alternativa” de informação, com descrédito das instituições.

Abuso de poder político
Para o ministro Benedito Gonçalves, a particularidade do abuso de poder político praticado por Jair Bolsonaro está na utilização do cargo de Presidente da República para finalidades eleitorais ilícitas.

Não apenas ele usou a estrutura da residência oficial da Presidência e o cargo para organizar evento com embaixadores em tempo recorde, como se apropriou da simbologia do cargo como arma anti-institucional, segundo o relator, de maneira a levar a atuação da Justiça Eleitoral ao completo descrédito perante a sociedade e a comunidade internacional.

Na análise do relator, o uso da máquina pública permitiu a Bolsonaro levar ao eleitorado uma imagem de grande valor estratégico para sua candidatura: viram-no lecionar para embaixadores, como se fosse uma autoridade na temática do sistema de votação e na Justiça Eleitoral.

Como complemento, Bolsonaro fez diversas menções às Forças Armadas durante o evento, insinuando que o convite para a Comissão de Transparência do TSE as colocou como garantes da lisura eleitoral e que poderiam atuar para em medida “fora das quatro linhas da Constituição” caso fosse necessário.

Clique aqui para ler o voto oral do ministro Benedito Gonçalves
Aije 0600814-85.2022.6.00.0000

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