Público & Pragmático

Demissão de empregados públicos de estatais à luz da Constituição

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25 de junho de 2023, 8h00

A incidência de regras de direito privado devido à forma adotada em contratação de pessoal pelas empresas estatais implica que se estude o fenômeno da demissão sob as duas categorias que se apresentam, divididas com base na causa do ato que veicula a decisão de demissão. Trata-se das demissões por justa causa ou sem justa causa, previstas principalmente, e respectivamente, pelo artigo 146, parágrafo único, e artigo 147 da CLT, e sobre as quais a doutrina e a jurisprudência reconhecem distintas exigências em relação aos pressupostos de legitimidade de sua edição.

Podem ser traçados dois principais grupos de motivos que geram as demissões abordadas. Quanto às primeiras, é intuitivo que se pense em faltas graves, elencadas pela CLT em seu artigo 482, cujo rol, uma vez que pretende servir de base para constituição de fatos jurídicos que promoverão o exercício punitivo do Estado, há de ser taxativo. Quanto às segundas, a análise se dificulta em razão da pouca profundidade apresentada pela doutrina nacional até esse momento e pelo frágil precedente tomado como leading case no STF, referente à demissão de empregados públicos pelos Correios[1].

Há que se perguntar se, não obstante o entendimento de que o signo de estabilidade não se estenda a empregados públicos, há a possibilidade jurídica, com vistas ao programa constitucional e à natureza funcional do Estado em todas as suas formas adotadas, de haver demissões no âmbito das estatais, sem justa causa, tão somente com base no entendimento de que o empregado não se adequa ao cargo, com base unicamente no juízo subjetivo do hierarca, bastando a motivação do ato de demissão para que se conclua pela validade da demissão.

O ponto de interesse apresenta questões polêmicas. A motivação, como regra, deveria imperar em qualquer ato, de modo que a sua exigência para que a demissão seja válida não deveria ser controversa. Impondo-se a motivação a todo ato e, tendo a demissão essa natureza, a exigência de motivação para demissões sem justa causa não passa de tautologia e não confere respostas satisfatórias à aplicação do direito administrativo de maneira válida perante o programa constitucional quando operado sob formas privadas.

Paralelamente, não há que se ignorar a realidade sobre a qual se aplica o direito: embora não seja baseada em motivos que correspondam a faltas graves, é de obviedade transparente que a demissão, nesses termos, ainda sem justa causa, pode, na esfera jurídica do empregado, pretender corresponder a uma finalidade punitiva. A análise exige a retomada da decisão do STF e da necessidade de se reanalisar se os institutos que constituem o PAD não se conformam a partir de valores que também mereçam concretude em demissões como as ora tratadas.

Às demissões sem justa causa podem se somar hipóteses de política institucional, como a extinção da pessoa jurídica ou promoção de programas de demissão voluntária. Sobre esses pontos, podem se encontrar as respostas realmente válidas quanto à não extensão do signo de estabilidade, por inaplicabilidade dos institutos de disponibilidade e de reaproveitamento. Mesmo assim, não se pode concluir que não deva haver um processo administrativo de participação, que permita aos empregados que serão atingidos, bem como aos demais setores da sociedade, poderem influenciar na decisão administrativa, resguardando a sua legitimidade. É, inclusive, o que se depreende do artigo 28[2] da Lei nº 9.784/99.

Comecemos pelo entendimento consolidado no âmbito do TST, que, no inciso I da Orientação Jurisprudencial nº 247, fixou que a despedida de empregados de empresas públicas e de sociedades de economia mista, mesmo admitidos por concurso público, independe de ato motivado para sua validade. No inciso II do mesmo verbete, ressalvou apenas que a validade do ato de despedida dos empregados da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro, prazos e custas processuais.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, no bojo do Recurso Extraordinário nº 589.998/PI122, fixou entendimento que parecia impor o dever de motivar a todas as empresas estatais, indistintamente. Isso, certamente, corrigiria a falha hermenêutica consagrada na OJ nº 247 da SDI-I do TST. No entanto, o acórdão em epígrafe foi alvo de Embargos de Declaração, no qual foi adotada uma "tese minimalista" para restringir os efeitos daquela decisão à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, uma empresa pública prestadora de serviços públicos.

É importante ressalvar que, conforme se extrai dos votos, a intenção dos Ministros da Corte Suprema não foi propriamente a de eximir as demais empresas estatais do dever de motivar os atos de dispensa, mas de limitar os efeitos daquela decisão a quem era parte no processo analisado, no caso, os Correios.

Sendo assim, referido dever não foi imposto às demais, mas também não foi negado. Segundo o relator, ministro Luís Roberto Barroso, o problema, no caso, não seria de cunho material, mas formal: a construção da solução jurídica com eficácia vinculante deveria ter como ponto de partida a situação específica do caso eleito como paradigma, o qual, na espécie, se restringia a um empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Desse modo, eventual expansão de seus efeitos estaria em desacordo com o que estabelece o Ordenamento Jurídico pátrio.[3]

Sob uma postura apegada ao legalismo e marcada por vícios de pressupostos metodológicos[4], a Corte Federal limitou-se a afirmar o dever de motivação, o que já deveria ser óbvio para todos aqueles que enxergam o Estado sob sua característica funcional e que percebem, portanto, que não obstante a forma adotada, os contratos de trabalho, bem como os atos de demissão que os derrubam[5], configuram atos administrativos[6].

Justamente em razão da motivação ser exigida como pressuposto de validade dos atos administrativos, há de se reconhecer que não deve ser essa a marca que identifica a inaplicabilidade do signo da estabilidade aos empregados públicos. Para ele, em sentido próximo ao aqui adotado, ao lado daquilo que se reconhece como justa causa, há também o conjunto de motivos legítimos que podem implicar em demissão por razões técnicas, econômicas ou financeiras.

A reflexão permite concluir: o signo "justa causa", assim como demais signos próprios do direito privado, não foi elaborado tendo em vista as relações jurídico-administrativas. O apego ao direito privado fez com que a doutrina não percebesse que, por mais que se adote a forma privada do contrato de trabalho, a "justa causa", bem como o conjunto de regras que por sua invocação é atraído, opera-se de maneira distinta nas relações públicas.

Em primeiro lugar, há de se reconhecer também a aplicabilidade aos atos de demissão por justa causa às hipóteses normativas referentes a faltas funcionais previstas no Estatuto dos Servidores Públicos da respectiva unidade federativa, sendo aplicável todo o regime jurídico devido, tal como a apuração por processo administrativo disciplinar, respeitados o contraditório e a ampla defesa[7]. Ora, se atrai o mesmo regime jurídico, não há razão para que se identifique o instituto no direito público tal como ocorre nas relações trabalhistas tradicionais.

Todavia, há que se ter em mente que, diferentemente do que ocorre no âmbito da autonomia de vontade, a incidência do regime jurídico-administrativo e, consequentemente, o exercício funcional das estatais, mantém um distinto panorama de sujeições. Dessa maneira, não há como permitir que o hierarca exerça, por meros critérios subjetivos (e muitas vezes arbitrários), a competência pela demissão de um empregado público, ainda que não baseado em uma das condutas tipificadas como "justa causa" devidamente demonstrada (nos moldes como se dá uma resilição por iniciativa do empregador).

Mesmo que, em relações trabalhistas tradicionais, as consequências do ato de demissão tenham divergências, a verdade é que o poder diretivo do empregador, no direito administrativo, deve assumir contornos próprios, de modo a não permitir a captura do Estado por interesses privados, por mais sutis que sejam.

É inegável que a grande maioria das demissões, na esfera privada, que ocorram por iniciativa do empregador, devem-se para fins sancionatórios e quando o empregado (no melhor dos casos) não cumpre a contento de seu hierarca aquelas funções que dele se esperavam. O contentamento, no entanto, é baseado na autonomia de vontade, e não previamente dada por um regime jurídico formado por princípios superiores que não levam em consideração, em regra, a vontade do agente competente.

Essa distinção, entre aqueles que atuam no espaço de liberdade e aqueles que atuam em atenção às ponderações previamente efetuadas — ou diante da concretização de princípios que exigem uma determinada resposta para as circunstâncias fáticas e jurídicas vigentes —, importa que, para a demissão de empregados públicos, ainda que sem justa causa, se obedeça ao processo capaz de legitimar a decisão administrativa, configurado pelas mesmas exigências de contraditório e ampla defesa. Em resumo, a mera motivação não basta, justamente porque o signo de "justa causa" não se aplica devidamente. A demissão deverá sempre ocorrer por razões de interesse público demonstrado em processo administrativo configurado por contraditório e ampla defesa.

Essa conclusão não é definitiva, pois, como já afirmado, há a marca que difere as relações estáveis dos servidores públicos estatutários das relações dos empregados públicos. Elas se manifestam naquelas demissões que mantenham relação causal de ordem técnica, econômica ou financeira. Por essa razão, de caráter institucional, as demissões individuais devem apoiar-se em um prévio ato administrativo de caráter geral que já contemple a decisão de demissão, de forma a impedir que essa demissão atinja um empregado unitariamente com base em julgamentos subjetivos e sem legitimação em processo de defesa.

Não significa, no entanto, que não deva existir prévio processo legitimador. Nesses casos, contudo, por mais que se permita a manifestação dos prováveis afetados, que gozam de peso mais relevante, o processo assume caráter de processo de participação, o que permite que a sociedade influencie na decisão administrativa de demissão de pessoal com base em razões de ordem geral, e não individual.

Todavia, note-se que é justamente sobre essas demissões que se extraem as notas da estabilidade, uma vez que, diferentemente do que ocorre com servidores de uma autarquia, a extinção dos cargos (razões de ordem técnica) ou mesmo da empresa (razões de ordem econômica) não resultam na disponibilidade ou reaproveitamento de pessoal pela Administração Pública.


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário n. 589.998/PI. Embargante: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Embargado: Humberto Pereira Rodrigues. Relator: Min. Roberto Barroso, 5 de dezembro de 2018. Disponível em <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339175084&ext=.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2023.

[2] “Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse.”

[3] FERNANDES, Felipe Gonçalves O Regime Jurídico dos Empregados das Empresas Estatais – Uma Análise à Luz do Arcabouço Normativo Axiológico de Direito Público / Felipe Gonçalves Fernandes. — São Paulo:[s.n.], 2022, p. 223/224.

[4] O termo foi cunhado por Ricardo Marcondes Martins (Estudos de direito administrativo neoconstituconal. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 370-374) e se refere à percepção do autor da existência de dois vícios de premissas teóricas que decorrem do apego dos doutrinadores publicistas ao direito privado. O primeiro deles diz respeito à suposição de que o Estado possa assumir a situação jurídica idêntica ao de um particular, submetendo-se totalmente a normas de direito privado, o que não se compatibilizaria com sua natureza instrumental constituída sob o postulado da supremacia e indisponibilidade do interesse público. O segundo diz respeito à falsa crença de que os ensinamentos tecidos há séculos pelos privatistas compõem uma Teoria Geral do Direito, o que também é falso. O que ocorre é que enquanto o direito civil é estudado e desenvolvido desde o Império Romano, para estabelecer-se um marco histórico, o direito administrativo tem seus primeiros passos com as decisões do Conselho de Estado Francês, já na Idade Contemporânea. Em razão disso, acolhe-se a crítica do professor paulista.

[5] Assim já se afirmou anteriormente: “Não obstante, em âmbito jurídico-administrativo, a rigor, esse não consiste em ato de resilição do contrato, mas, tecnicamente, em ato administrativo de contraposição ou derrubada” (FERNANDES, Felipe Gonçalves. O Regime Jurídico dos Empregados das Empresas Estatais, Op. cit., p. 247).

[6] Tal foi a posição em estudo anterior: “Analisando a situação posta, entendemos que a Suprema Corte perdeu grande oportunidade de reconhecer algo que parece óbvio na interpretação do Ordenamento Jurídico: o ato de dispensa do empregado público, ainda que não estável, é ato administrativo e, como tal, está sujeito à motivação. Importante lembrar que a motivação é aspecto ligado à forma e exigida, como regra, para a prática de atos administrativos, sob pena de invalidade. Tal dever ser impõe por uma questão republicana: quem exerce função pública o faz em nome e em benefício de outrem, de sorte que toda a sua atuação deve ser basear na busca pelo interesse público, e não os seus interesses egoísticos e suas idiossincrasias” (Idem, p. 223).

[7] Idem, p. 248.

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