Tribuna da Defensoria

O mito do defensor vocacionado

Autor

  • Magdiel Pacheco Santos

    é defensor público. Mestrando em Filosofia pela PUC-RS; especialista em Filosofia e Teoria do Direito (PUC-MG); especialista em Gestão Pública (UFMA); especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio) e instrutor interno ESDPEMA (2019/2022).

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20 de junho de 2023, 8h00

Já tendo encaminhado alguns textos nesta coluna, fico a observar as reações de alguns leitores e leitoras que entram em contato. Dentre essas respostas, para além dos membros e membras da Defensoria Pública, sempre há aqueles e aquelas que estão no período seco e frio da decoreba concurseira e do positivismo acrítico. Nesse grupo de pessoas que tem a expectativa de entrar para a carreira, percebo a presença de uma angústia sobre uma figura mítica do defensor ou da defensora vocacionada.

Para mim, não se trata de um aspecto comezinho, mas é sintomático; e, infelizmente, não se dissolve nessa fase pré-institucional, não se trata de um problema da mentalidade concurseira — na verdade, já na instituição, reforça-se e se aprofunda ainda mais no dialeto das alcunhas e hashtags "coração verde", "sangue verde" e, sobretudo, numa visão heroica e ensimesmada da carreira.

Para contextualizar a reflexão, considero interessante que mito, aqui, tem um recorte semântico. E, para deixar bem claro (inclusive para afastar o espelhamento subjetivo do fascismo à brasileira do termo), faço o uso, nessa reflexão, nesse sentido pontuado por Warat: "Passando da história à natureza, o mito dissolve a complexidade dos atos humanos. Confere-lhe a simplicidade das essências. Organiza um mundo sem contradições aparentando uma clareza onde translucidamente se podem constatar ou reconhecer os valores. Por isso, o mito é um discurso de reconhecimento e não de explicação. Por seu intermédio pretende-se que o receptor visualize sempre uma situação de normalidade decorrente da natureza das coisas. Assim, ele pode ser caracterizado como um discurso de neutralização, cheio de significações despolarizadas. É neste sentido que basta falar naturalmente de alguma coisa para que ela se torne mítica" [1].

A visão mítica de uma figura vocacionada para a Defensoria Pública, a meu ver, não tem outra interpretação senão a de simplificar a complexidade e o processo gradativo de lapidação do mandato constitucional da Defensoria. Naturaliza-se a suposição de pessoas já preparadas, prontas e direcionadas para ouvir, compreender e representar os vulneráveis. Constrói-se a ideia de uma disposição e predisposição apriorística, delineada e conceituada em si mesmos. Uma vocação para a própria caminhada como membro e membra. Um Eu-membro já definido (e exaltado) antes do encontro, da crise, do convite do Outro-vulnerável — em termos levinasianos, um Eu "essencialmente o Mesmo, o Mesmo que determina todo Outro, sem que o Outro determine jamais o Mesmo" [2].

Para além daquilo que já tratei sobre a profanação da Defensoria [3], pensar em juristas cuja formação e posicionamento profissional já estariam, a priori, tendentes e preparados para lidar com pluralidade e especificidades dos grupos vulneráveis sinaliza algumas dificuldades que merecem ser destacadas: 1) pessoalização e heroísmo do trabalho defensorial em vez da impessoalidade institucional; 2) a contribuição para a falsa compreensão da desnecessidade da formação continuada do Defensor Público; 3) falsa percepção de que, por si só, a Defensoria Pública seria uma instituição com menos afetação pelos problemas estruturais — como racismo, patriarcado, homofobia…; e 4) o idealismo lendário da vocacionalidade não é suficiente para a luta defensorial.

Respeitando a linguagem e os limites de aprofundamento nessa coluna, primeiramente, é preciso pontuar o equívoco comum de subjetivizar o trabalho defensorial — aspecto bem sintomático da cultura brasileira e incompatível com a fixação de políticas públicas eficazes e mais robustas. Nessa perspectiva individualizada, a prestação do serviço defensorial ficaria à merce de figuras messiânicas membros e membras "sensíveis" às agendas e às nuances dos grupos vulneráveis — mas que, por simplesmente cumprir mandato constitucional, ficariam nas expectativas de receber louros e méritos (ponto que atrairia a problemática da comunicação social na Defensoria, mas que merece espaço específico oportuno). E o equívoco se evidencia ainda mais no aspecto de que, ao se sinalizar a "sensibilidade" de alguns e algumas, se acaba escancarado a "insensibilidade" da instituição. Se cumprir o mandato constitucional gera um destaque midiático; o que restaria na ordinariedade defensorial que permitiria esse assombro e maravilhamento do que deveria ser óbvio e corriqueiro?

Para além disso, a figura da(o) defensora vocacionada(o) contribui para a fragilização da formação continuada do defensor público para além do tecnicismo jurídico. Como se sabe, dentro das instituições — seja na carreira defensorial ou nas demais —, nas Escolas Superiores, há uma grande dificuldade para estimular a formação profissional e acadêmica — e, quando se exsurge algum interesse, observa-se uma tendência majoritária de interesse para cursos limitados à dogmática jurídica. Para formações interdisciplinares, marcadas por uma criticidade para além do tecnicismo normativo, não somente há pouca procura, mas explícita resistência. Portanto, acaba por se perpetuar um cenário que se inclina para a continuidade de um senso comum jurídico (sempre o Warat) e que não se abre para os desafios e complexidades do universo vulnerável. Nesse ponto, o discurso frequente é de que formações marcadas pela interseccionalidade teriam pouco impacto nos números e nas atuações de massa da Defensoria. Obviamente sem desmerecer a necessidade de atualizações jurisprudenciais, análises das alterações legislativas, mas o que há de evolução institucional estrutural nesses momentos? Como bem alerta Moyses Pinto, o cenário denunciado é outro senão de que, enquanto juristas, "só pensamos pela razão técnica. Não existe uma racionalidade ética percorrendo o Direito" [4].

Como terceiro ponto, a expectativa dessa figura mitológica contribui para o obscurantismo comum de que a Defensoria Pública seria uma instituição menos marcadas pelos problemas estruturais ou, ainda, em um nível menos agudo. Nessa conjuntura, já se cria um brio organizacional em que a constatação de sintomas e desvios característicos de cunho racista, patriarcal, homofóbico… não é lida como uma proposta de aperfeiçoamento, mas acaba sendo lida como uma agressão contra essa organização de vocacionados. Nesse ponto, a síntese é de que essa mítica vocacionalidade dificulta o patamar mínimo do diagnóstico de membros e membras enquanto reprodutores de violência institucional, violência epistêmica [5] e violência de negação do Outro. Destarte, se não se consegue alcançar a posição mínima de se entender enquanto possível reprodutor de discursos, violências e violações, como se alcançar o desafio de representar juridicamente o Outro-vulnerável? [6]. E, nessa dinâmica viciada, sem a criticidade, sem a percepção dessas incorreções egolátricas, a cultura dos direitos humanos se torna uma mera retórica institucional [7].

A provocação aqui, nesse ponto, acaba bifurcando numa crítica tanto à formação jurídica — alijada da realidade interdisciplinar e hermeticamente fechada gerando uma retroalimentação de uma cultura intelectual alienada — quanto à agenda institucional direcionada pelo perigoso paralelismo com outras carreiras (mais um ponto para outra coluna). Imaginem, leitoras e leitores, os desdobramentos nos concursos de ingresso, nos cursos de formação de entrada na carreira e na própria formação continuada, na compreensão dessa formação jurídica não preparada, não direcionada e que sequer reconhece a multiplicidade e a insuficiência do Direito em lidar com os grupos vulneráveis e minorias?

A marca institucional da Defensoria Pública, na posição paradoxal de poder e contra-poder, está na imbricação de pessoas formadas sob a batuta da moldura legal para lidar com problemas que essa moldura legal não consegue responder à altura. Diante disso, não há outro caminho senão discernir que resta esvaziada a expectativa por membros e membras vocacionadas. Nesse vácuo já não mais ocupado pela expectativa mítica, somente resta a assunção de uma política institucional de incompletude e de desconstrução. Como esse diagnóstico, com essa crítica, e, sobretudo com o trauma da invocação do Outro-vulnerável, inicia-se o caminho de busca pela concretização do telos constitucional da Defensoria Pública.

Por último, para que não sucumbiu ao cansaço da leitura, o mito do(a) defensor(a) vocacionado(a) é marcado por um idealismo insuficiente e, tentando pegar leve na crítica, ingênuo.

A grande realidade da luta pelos direitos humanos é de que não se trata de uma caminhada que parte de um patamar alto e estabelecido em valores já plasmados e firmados na diversidade e no empoderamento dos vulneráveis. Pelo contrário. A dinâmica do embate pelos silenciados no sistema de justiça é um lugar de crise, de contínua crise. Crise que tem um forte impacto extrainstitucional — de embate com a cultura jurídica, com outras instituições, com um processo jurídico formatado legalmente e doutrinariamente para demandas distantes da realidade do público defensorial…; de um entrechoque intrainstitucional — entre expectativas e frustrações, avanços e retrocessos, e de, por vezes, posturas localizadas contra agendas progressistas; e, sobretudo, de um conflito pessoal do membro e da membra – do desafio de lidar com uma carga de trabalho marcada pela sobrecarga, do desafio das demandas de massa e das demandas complexas, da estrutura de trabalho insuficiente diante da realidade orçamentária atual, das crises nas autopercepções e, sobretudo, dos limites da saúde mental para lidar com toda essa problemática. Sim, é tudo isso acumulado; e não há sintaxe que não deixe esse parágrafo cansativo e confuso — porque essa é a realidade defensorial fora dos holofotes.

Contudo, se alguém, depois de tudo isso, ainda quiser se apegar à categoria do membro e da membra vocacionada, indico, então, a conotação de vocação às crises. Não de uma vocação apriorística, de certo privilégio formacional iluminado, de uma sensibilidade distinta e louvável. Nada disso. Não há como se sustentar categorias e construções ensimesmadas sobre o fazer defensorial antes do encontro com o Outro-vulnerável. Se há alguma vocação, é, na verdade, a in-vocação a essa busca pelo Outro; e não uma in-vocação de si mesmo. Vislumbrar a possibilidade da caminhada defensorial — uma de tantas outras ombreadas na luta pelos direitos humanos — é assumir a insuficiência do esquematismo jurídico [8], os entraves da cultura jurídica e o convite a uma perspectiva desconstrutiva da instituição. Para mim, prefiro continuar avesso à ideia do defensor vocacionado; parafraseando a linha de Milton Nascimento, prefiro, nessa busca pelo Outro, ser caçador de mim [9].

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[1] Luis Alberto Warat. Introdução geral ao Direito: volume I – Interpretação da lei; temas para uma reformulação, 1995, p. 56.

[2]  Emmanuel Levinas. Entre nós: ensaios sobre a alteridade, 1997, p. 34.

[3] Vide Por uma defensoria (sempre) profanada – https://www.conjur.com.br/2022-nov-15/magdiel-pacheco-defensoria-profanada;

[4] Moyses Pinto Neto. O rosto do inimigo: um convite à desconstrução do Direito Penal do Inimigo, 2012, p. 261.

[5] Um bom texto introdutório para refletir sobre violência epistêmica, numa perspectiva interdisciplinar, entre literatura e filosofia: Francisco Rômulo do Nascimento Silva e Patrícia Maria Apolônio de Oliveira . Quando a mulher negra subalterna fala: diálogos entre Gayatri Chakravorty Spivak e Carolina Maria de Jesus. IS Working Paper, Porto – Portugal, 3.ª Série, nº 74, Quinta, Novembro 1, 2018. Disponível em: https://isociologia.up.pt/bibcite/reference/882.

[6] Traduzindo para uma reflexão filosófica, é possível atrair esse ponto da reflexão ao convite à ética primeira levinasiana nas seguintes palavras de Ricardo Timm: "pensar para alguém, falar a alguém, e não a si mesmo; o componente relacional é absolutamente determinante para o sentido do pensamento e da fala. Ou isso, ou a idiotia" (Crítica da razão idolátrica: tentação de Thanatos, necroética e sobrevivência, 2020, p. 167).

[7] "…é possível transformar uma cultura dos direitos human os numa retórica dos direitos humanos". (Felipe Rodolfo de Carvalho. Outramente: o direito interpelado pelo rosto do Outro, 2021, p. 347).

[8] "O que aqui se afirma é que o ordenamento sistemático jurídico constitucional/principiológico/valorativo é um esquematismo porque procura ordenar as relações sociais, mas sempre haverá um elemento a ser considerado impassível a essa pretensão de ordenação. Este elemento é o outro. Não é possível pôr em ordem o outro. Mas a justiça só se dá a partir do outro". (Gustavo de Lima Pereira. A pátria dos sem pátria: direitos humanos e alteridade. Porto Alegre: Ed UniRitter, 2011, p. 135).

[9] "Nada a temer senão o correr da luta / Nada a fazer senão esquecer o medo, medo / Abrir o peito a força, numa procura / Fugir às armadilhas da mata escura / Longe se vai / Sonhando demais / Mas onde se chega assim / Vou descobrir o que me faz sentir / Eu, caçador de mim" (Milton Nascimento, Caçador de Mim, 1981).

Autores

  • é defensor público, especialista em filosofia e Teoria do Direito (PucMinas), especialista em Gestão Pública (UFMA) e em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio), instrutor interno ESDPema (2019-2022), fotógrafo amador e poeta.

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