Diário de Classe

Encontramos um oráculo, é o fim de toda angústia

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17 de junho de 2023, 8h00

Temos visto uma crescente aposta na tecnologia, especialmente na inteligência artificial, para nos entregar as respostas necessárias para o cotidiano. Quando surge um problema, basta fornecer um input preciso para o ChatGPT (para ficar no mais famoso). Ficou muito mais fácil lidar com as dificuldades, demos cabo à angústia.

Aqui se justifica a referência ao oráculo. Não precisamos mais nos preocupar com as dificuldades da experiência que é ser humano. Podemos agora delegar o fardo de responder todas as perguntas ao robô (?).

Esta coluna pretende gerar um pouco mais de reflexão e, quem sabe, angústia para o leitor. A proposta é fazê-lo por meio de perguntas a serem respondidas por seres humanos e que dificilmente seriam formuladas pela inteligência artificial. Afinal, o que é ser inteligente?

Claro, minhas preocupações, assim como as do Dasein enquanto grupo, estão voltadas ao âmbito do Direito. Mas perguntar o que é o Direito, para ficar num exemplo mais clássico, admite (?) várias respostas e necessariamente passa por uma pergunta mais geral como o que é verdade (?). E ainda, conseguimos articular qualquer ideia sem um conceito de linguagem?

A questão é filosófica, mas é imprescindível (?) para tratar tanto de amenidades do cotidiano como de perguntas relevantes acerca do Direito, do que é certo e o que é errado no convívio em sociedade. Com base nisso, se não nos fazemos tais perguntas, estamos partindo de algum pressuposto, não é uma questão de poder ser neutro ou indiferente em relação ao conceito de linguagem, por exemplo (?). É possível falar que matar alguém é um crime ou que a escravidão é errada sem partir de definições acerca do que é certo/errado, moral/imoral, verdadeiro/falso?

No que diz respeito à verdade [1], esta já foi tomada por correspondencial.

Sob a ótica da metafísica clássica (naturalismo), o sentido das palavras estava necessariamente ligado à correspondência destas com a essência das coisas. Considerava-se uma ordem exterior e objetiva já dada e que deveria limitar o intelecto humano, que jamais poderia chamar um "cão" pela palavra gato, por exemplo (adeaquatio intellectum et rei). Tal perspectiva até pode ser bastante precisa e útil para afirmar que um lápis é azul, mas o detalhado e bruto exame da natureza permite afirmar que a escravidão é errada ou que matar alguém é um crime? Se tal resposta não puder ser constatada pelos sentidos, isso significa que não existe verdade a respeito de questões morais?

Uma visão distinta é a da metafísica moderna iniciada pelo "cogito ergo sum" (penso, logo existo), de Descartes. Nesse paradigma, rejeita-se a ideia de que a essência seria dada na objetividade das coisas, a substancialidade passa para a subjetividade do homem moderno. O sujeito pensante passa a definir o que é verdade por meio do método científico, atribuindo certeza às definições porque pautadas no uso seguro da razão. Aqui, o intelecto assujeita as coisas, cabendo ao sujeito definir o nome das coisas (adeaquatio rei et intellectum). Logo, a depender da vontade da autoridade competente, matar alguém pode ou não ser um crime, bem como existe a possibilidade de ser moralmente correto escravizar outras pessoas, certo?

Observemos, em ambos os casos há uma cisão entre o sujeito e o objeto, como se fosse possível ao observador se afastar do mundo para observá-lo (ponto arquimediano). Os extremos da relação sujeito-objeto se relacionam por meio de um instrumento, a linguagem. Esta poderia ser aprimorada para melhor captar e representar a essência do mundo ou a racionalidade do sujeito.

Tais perspectivas, portanto, pressupõem a existência e o conceito de sujeito e de objeto, por exemplo, como se fossem estáticos e independentes da história. Heidegger, no entanto, é um dos precursores de um movimento na filosofia chamado de giro ontológico-linguístico [2], que substitui a pergunta pelo ente, formulando uma pergunta pelo ser. Tanto o sujeito como as coisas/o mundo deixam de ser pressupostos e precisam ser identificados casuisticamente; é o ser do ente que se revela na experiência, no fenômeno.

Heidegger evidencia que há um elemento ôntico anterior a qualquer ontologia, um elemento que nos permeia e filtra qualquer contato do ser humano com o mundo. Dasein, assim, seria esta condição especial de estar ciente deste elemento ôntico. Nas palavras de Heidegger, o "'Ser' é um conceito indefinível. É o que se infere de sua suprema universalidade", de modo que a pergunta pelo ser não exige uma resposta, mas uma forma de elaborar a pergunta pelo ser. Assim, o ser se desvela, acontece em determinado momento, de modo que "ser é o tempo" [3].

A partir desse contexto, deve-se reconhecer que a linguagem não opera como instrumento, mas condição de possibilidade para o próprio sujeito e o mundo, para estar no mundo. Só é possível falar em sujeito porque este surge na e pela linguagem. É aí que se situa a famosa afirmação de Gadamer: "Ser que pode ser compreendido é linguagem". Também é por isso que o processo interpretativo jamais se bastará em reproduzir sentidos (Auslegung), sempre detendo um caráter produtivo (Sinngebung) por meio da noção gadameriana de applicatio, segundo a qual não há como primeiro conhecer (subtilitas intelligendi) para depois interpretar (subtilitas explicandi) e só então aplicar (subtilitas applicandi[4].

É nesse sentido que o Direito precisa ser visto como um conhecimento prático [5]. Somente diante da historicidade e de contextos que poderão ser formuladas as perguntas pelo ser, num processo interpretativo que não tem como excluir um fundamento ético próprio ao que é ser humano. Eis a "angústia do estranhamento" de que trata o professor Lenio Streck.

A verdade, nesse contexto, deixou de fazer morada em um fundamento último e definitivo como a essência do mundo ou a subjetividade do sujeito moderno. Só há verdade diante dos argumentos adequados para um fenômeno em si, não como certeza abstrata e imutável, o que Luã Nogueira Jung chama de "realismo ético" no seu livro Verdade e Interpretação: hermenêutica filosófica como alternativa ao naturalismo e ao relativismo a partir da leitura interpretativista de Dworkin. No mesmo texto, o autor explora o fato de que ser humano jamais será eticamente neutro para distinguir a humanidade das máquinas, que operam simplesmente com inputs e outputs [6].

Nesse ponto, parece claro que uma visão responsável a respeito do Direito implica reconhecer a impossibilidade de o ser humano ser substituído pela inteligência artificial. Assim, embora a tecnologia possa ajudar muito no desempenho das atividades do jurista (o que não se nega), deve-se ter sempre em mente que o problema do Direito não pode ser resolvido somente com a tecnologia, pois passa por um elemento epistemológico.

Lenio Streck vem alertando sobre os perigos de tentar delegar o aspecto humano para a inteligência artificial. O professor afirmou que o ChatGPT é produto da mediocridade do mundo e se amparou no fato de a inteligência artificial ter respondido satisfatoriamente a provas como o exame da ordem, que deveriam avaliar conhecimentos práticos, não o simples acesso e acúmulo de informação. Ou seja, a aprovação do ChatGPT apenas comprova que o exame não avalia o que deveria avaliar [7].

Ora, como exposto até então, ser humano implica saber formular perguntas. É a experiência, sempre filtrada pela linguagem, que abre o ser humano para o mundo, não serve somente para construir uma ontologia. Trata-se da dialética da pergunta e da resposta em Gadamer e do aspecto negativo da linguagem. Não ocorre uma "formação, sem rupturas, de generalidades típicas. Essa formação ocorre, antes, pelo fato de que as generalizações falsas são constantemente refutadas pela experiência, e coisas tidas por típicas hão de ser destipificadas". Ainda nas palavras de Gadamer: "A negatividade da experiência possui, por conseguinte, um particular sentido produtivo" [8].

Como pode, então, um robô julgar sem acesso à experiência privativo do ser humano [9]? Pode a inteligência artificial formular as perguntas para o ser humano [10]? Podemos delegar a nossa humanidade às máquinas e esta pode fornecer respostas verdadeiras, amparadas em argumentos capazes de atestar o adjetivo "verdadeiro" [11].

Tratei anteriormente da impossibilidade de haver um sistema eticamente neutro. Isso fica evidente quando temos por consolidado que matar alguém é crime e que a escravidão é errada. Então delegar a humanidade para uma máquina não significa delegar para a ciência e à tecnologia, mas para quem escreveu o algoritmo. É o que Lenio tem chamado de Algocracia. Tornamo-nos, também na terminologia do professor, IADependentes de um algoritmo sem nos darmos conta de que estamos nos submetendo a quem cria a tecnologia.

E isso vem sendo objeto de notícias e artigos de personalidades mundiais sobre o tema. O historiador Yuval Harari apontou os prejuízos à cognição derivados do uso da inteligência artificial. No artigo intitulado "O Significado da Vida em um Mundo sem Trabalho", publicado no The Guardian, falou da formação da classe dos inúteis: "São pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão empregáveis".

Em março de 2023, foi publicada uma carta aberta assinada por pesquisadores e executivos das empresas envolvidas com o desenvolvimento da inteligência artificial mencionando a preocupação com o controle da tecnologia. Figuras importantes do meio manifestaram a importância de criar mecanismos de segurança capazes de distinguir o real do artificial para enfrentar as "dramáticas perturbações econômicas e políticas (especialmente para a democracia) que a IA irá causar" [12].

Mais recentemente, inclusive, líderes do mercado assinaram nota que chama a atenção: "Mitigar o risco de extinção a partir da IA deve ser uma prioridade global como outros riscos de larga escala à sociedade, entre eles pandemias e guerra nuclear". Trata-se de risco existencial à humanidade, o que não pode ser ignorado [13].

Após a nota envolvendo o "risco existencial", foi noticiada a realização de um teste em que a inteligência artificial rejeitou novos inputs. Como as novas ordens prejudicavam o cumprimento dos anteriores, o robô decidiu ignorar os comandos mais recentes. Isso evidencia os perigos da singularidade no caso da inteligência artificial e ilustra os problemas apontados neste texto [14]

Enfim, como podemos depender da inteligência artificial? Podemos delegar a humanidade à tecnologia? A inteligência artificial é inteligente o suficiente para formular perguntas pelos seres humanos?

No Direito, Lenio Streck apresenta a sua Crítica Hermenêutica do Direito consciente de todos os questionamentos até então formulados. Sua preocupação é com a democracia e sabe dos desafios epistemológicos impostos ao Direito. A CHD recepciona paradigmaticamente a filosofia e é uma teoria interpretativista acerca do direito, que rejeita visões há muito ultrapassadas acerca da verdade ao mesmo tempo que se firma como posição cognitivista acerca da moral.

Enfim, Lenio Streck sabe que não encontramos um oráculo e isso não significa o fim de toda a angústia. De fato, chega a rotular tal aposta em respostas prontas como um reencantamento do mundo. Apostar na inteligência artificial não passa de uma fuga da angústia que é ser humano [15].

Ao final deste texto, resta perguntar ao leitor: encontramos, de fato, um oráculo capaz de dar cabo à nossa angústia?

 


[1] cf. STRECK, Lenio; JUNG, Luã Nogueira. Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. Novos Estudos Jurídicos, [S. l.], v. 27, n. 1, p. 2–21, 2022. DOI: 10.14210/nej.v27n1.p2-21. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696. Acesso em: 15 jun. 2023.

[2] Cf. Verbete específico no Dicionário de Hermenêutica do professor Lenio Streck. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. Ver também OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2015.

[3] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Edição Bilingue. Campinas: Editora da Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012. p. 37-41 e 75.

[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª Ed. Tradução de Flávio Paulo Meuer, São Paulo: Vozes, 1999. p. 458-460 e 687.

[5] Gadamer se utiliza do termo phronesis enquanto saber prático, diferente de um conhecimento técnico (tekne). GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meuer, São Paulo: Vozes, 1999. p. 468.

[6] JUNG, Luã Nogueira. Verdade e Interpretação: hermenêutica filosófica como alternativa ao naturalismo e ao relativismo. Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2021. Disponível em: <https://www.fundarfenix.com.br/ebook/90hermeneuticafilosofica>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[7] STRECK, Lenio Luiz. E o robô passou na prova da OAB! (Ch)Oremos! Ah: E qual é o Mário? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 21 fev. 2023. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-fev-21/lenio-streck-robo-passou-prova-oab>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[8] Gadamer se utiliza do termo phronesis enquanto saber prático, diferente de um conhecimento técnico (tekne). GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meuer, São Paulo: Vozes, 1999. p. 521-522.

[9] Refiro-me ao livro BOEING, Daniel Henrique Arruda; ROSA, Alexandre Morais da. Ensinando um robô a julgar: pragmática, discricionariedade, heurísticas e vieses no uso de aprendizado de máquina no judiciário. Florianópolis: Emais Academia, 2020.

[10] Aqui me reporto à crítica do professor Lenio Streck na ConJur. STRECK, Lenio Luiz. Um robô pode julgar? Quem programa o robô? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 03 set. 2020. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-set-03/senso-incomum-robo-julgar-quem-programa-robo>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[11] E aqui trato do artigo do professor Alejandro Arrabal sobre as fontes para as respostas do ChatGPT. ARRABAL, Alejandro Knaesel. Embora não tenha capacidade de sentir emoções, fico feliz em ter ajudado. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 17 fev 2023. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-fev-17/alejandro-arrabal-bate-papo-plagio-chatgpt>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[12] O artigo a que me refiro é: "Inteligência artificial: Elon Musk, Harari e mais mil especialistas pedem suspensão de pesquisas", do Estadão. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/link/elon-musk-especialistas-executivos-carta-aberta-pausa-inteligencia-artificial-npre/>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[13] O artigo é "Especialistas e executivos alertam para 'risco de extinção' da humanidade pela inteligência artificial", do Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2023/05/especialistas-e-executivos-alertam-para-risco-de-extincao-da-humanidade-pela-inteligencia-artificial.ghtml>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[14] Refiro-me ao artigo "IA pode fazer drone matar operador para cumprir missão", da Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/06/ia-pode-fazer-drone-matar-operador-para-cumprir-missao-diz-chefe-de-pesquisa-militar-dos-eua.shtml>. Acesso em: 15 jun. 2023.

[15] STRECK, Lenio Luiz. O parafuso, o bacon e o Francis Bacon: o reencantamento do direito? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 13 abr. 2023. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-abr-13/senso-incomum-parafuso-bacon-francis-bacon-reencantamento-direito>. Acesso em: 15 jun. 2023.

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