Lei nº 14.550/23 e o novo regramento das medidas protetivas de urgência
17 de junho de 2023, 11h15
Menos de dois meses depois da sua publicação, a Lei nº 14.550 começa a ter aplicação nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme noticiou esta ConJur em reportagem do último dia 13 de junho [1].
A alteração ocorrida neste ano trata, exclusivamente, do expediente das medidas protetivas de urgência, com viés ampliativo das suas hipóteses de admissibilidade e da sua eficácia: enquanto os §§4º e 5º do artigo 19 da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) permitem a aplicação da cautelar especial com flexibilização do contraditório e sem a condicionar a um tipo penal ou procedimento pré-existente; o §6º do mesmo dispositivo parametriza a sua vigência com a persistência do risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.
Num primeiro momento, a nova disciplina pode causar estranheza e desconforto ao intérprete, especialmente se estiver detido aos primados e garantias do Direito Penal e Processual Penal — imprescindíveis para a consolidação de uma ordem democrática. A imposição de limites ao exercício do direito de punir nada mais é do que a instituição de diques de contenção aos arbítrios e flertes com o autoritarismo. No limite, aprofundam-se os valores dados ao estado de inocência, ao contraditório, à paridade de armas e à proibição de perpetuação das penas para fundamentar as críticas dirigidas ao novo regramento.
Esse arcabouço de princípios indissociáveis da condição humana aplica-se, decerto, a toda matéria penal e processual penal do ordenamento jurídico brasileiro. Eis que se pode indagar se a alteração legislativa deste ano colide com tais garantias e, por conseguinte, se seria eivada de inconstitucionalidade.
A resposta demanda, portanto, uma digressão à luz do primado da proporcionalidade [2] e que envolva os aspectos históricos sociais e culturais que marcam a estrutura da nossa sociedade — o que, na essência, traduzirá a interpretação da matéria conforme à Constituição [3].
A ordem constitucional edificada pela Magna Carta de 1988 contemplou a igualdade de gênero (o que pode ser depreendido tanto da igual repartição de direitos e deveres — que compreende direitos reais, previdenciários e relativos à família, v.g) [4], e a equidade, ao reconhecer a desigualdade de condições e buscar atenuá-la, com proteções específicas às mulheres no mercado de trabalho e na participação eleitoral [5], como um dos vetores determinantes da arquitetura da sociedade.
Noutras palavras, embora não reconheça abertamente o machismo estrutural e estruturante da nossa sociedade, o nosso texto constitucional dá indicativos da sua existência (o que pode se dever ao fato de o perfil do nosso Constituinte de 1988 ser, majoritariamente, masculino — pauta que demandaria reflexão para muito além da pretendida neste breve ensaio) e esboça alguns mecanismos da sua mitigação.
O instrumento legislativo que melhor e mais claramente exporá essa chaga social é, então, a Lei nº 11.340/2006, que carrega o nome de uma mulher brasileira marcada por brutais atos de violência no contexto da sua relação conjugal, que a deixaram paraplégica, após um tiro em suas costas enquanto dormia. Fica evidenciado, portanto, que os ingredientes de conformação da Lei Maria da Penha guardam umbilical relação com a matéria criminal, por se tratar, precipuamente, de atos de agressão física e psicológica.
Todavia, uma leitura mais detida da lei expõe a sua completude e revela não se esgotar na moldura da proibição própria do Direito Penal: ao reconhecer o machismo que vitima diuturnamente a mulher em seus mais distintos bens jurídicos, a Lei Maria da Penha tem implicações não apenas jurídico-penais, mas, também, tem impactos típicos do direito civil (prestação de alimentos provisórios e separação de corpos — artigo 22, V e artigo 23, IV; proibição de celebração de atos e contratos; e suspensão de procurações — artigo 24, III e IV, por exemplo), direito administrativo (ao garantir acesso prioritário à remoção — artigo 9º, §2º, I) e até de direito do trabalho (assegurando a manutenção do vínculo empregatício — artigo 9º, §2º, II).
A Lei Maria da Penha, portanto, consolida o reconhecimento de que a matéria de proteção à mulher demanda medidas de natureza multidisciplinar, uma vez que as implicações vão para muito além dos limites da intimidade da vida pessoal da vítima. Isso nada mais é do que a própria composição da dignidade da pessoa humana da mulher e seus direitos fundamentais. Por esse caminho, trilhou o Supremo Tribunal Federal para consolidar o entendimento pela constitucionalidade da Lei Maria da Penha, declarada no julgamento da ADC 19/DF [6].
Com efeito, as medidas protetivas de urgência não se esgotam conceitualmente como cautelares processuais penais – as quais se vinculam à finalidade de assegurar o resultado útil do processo, seja pela condenação, seja pela possibilidade de reparação do dano à vítima. Muito mais além, as medidas protetivas de urgência são cautelares pessoais multidisciplinares, concebidas para assegurar à vítima os seus direitos à vida, liberdade e integridade (física, psicológica e patrimonial).
Dessa forma, ao pulverizar as condições para a aplicação das medidas protetivas de urgência e ampliar os limites temporais da sua eficácia, o legislador de 2023 manteve os olhos na necessidade de tutela do hipossuficiente, de modo a reduzir as desigualdades de tratamento e salvaguardar os bens jurídicos mais expostos a risco – mecanismos consonantes com o primado da proporcionalidade, vez que, in abstracto, necessário, adequado e proporcional em sentido estrito.
Restará aos julgadores, diante do caso concreto, fazer um novo filtro de proporcionalidade, no exercício do controle próprio da jurisdição, de modo a equalizar os princípios fundamentais colidentes na espécie e, assim, encontrar a medida que melhor se amolde à resolução do conflito.
[1] https://www.conjur.com.br/2023-jun-13/tj-sp-comeca-aplicar-novas-regras-medidas-protetivas-urgencia
[2] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: 2001.
[4] Os artigo 5º, I; artigo 183, §1º; artigo 189, parágrafo único; artigo 201, V e artigo 226, §5º, todos da Constituição da República de 1988 são exemplos.
[5] Artigo 7º, XX e artigo 17, §7º, ambos da CF/88.
[6] VIOLÊNCIA DOMÉSTICA — LEI Nº 11.340/06 — GÊNEROS MASCULINO E FEMININO — TRATAMENTO DIFERENCIADO. O artigo 1º da Lei nº 11.340/06 surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado entre os gêneros — mulher e homem —, harmônica com a Constituição Federal, no que necessária a proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira. COMPETÊNCIA — VIOLÊNCIA DOMÉSTICA — LEI Nº 11.340/06 — JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei nº 11.340/06, no que revela a conveniência de criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER — REGÊNCIA — LEI Nº 9.099/95 — AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no §8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares. (ADC 19, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 28-04-2014 PUBLIC 29-04-2014 RTJ VOL-00229-01 PP-00011).
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