Seguros Contemporâneos

A Resolução CNSP nº 407 dos seguros de grandes riscos

Autor

  • Gustavo de Medeiros Melo

    é mestre e doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP) professor no Curso de Especialização em Direito Processual Civil (PUC-SP) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro) e do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio do Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados (São Paulo).

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15 de junho de 2023, 8h00

O mercado de seguros e resseguro brasileiro sempre conviveu com a classe dos chamados "riscos vultosos", operação que envolve altos valores seguráveis e complexidade técnica maior no processo de subscrição do risco. O velho Decreto-lei nº 73/66 dizia que, a critério do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), se fosse interessante à economia e segurança do país, o governo federal poderia assumir "riscos catastróficos e excepcionais" por intermédio do então Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) [1].

Essa categoria dos "riscos vultosos" está presente nas análises de mercado da Superintendência de Seguros Privados (Susep), nos relatórios de subscrição do IRB, nas altas instâncias do Poder Judiciário [2], na exposição de motivos da Lei Complementar nº 126/2007 (estatuto do resseguro), nos dicionários de técnica securitária e nos comentários da doutrina [3]. Nos últimos tempos, o fenômeno se expandiu para o centro da relação securitária e passou a ser observado no grupo dos "grandes riscos" em comparação aos "riscos massificados" [4].

O que fez então o Estado brasileiro diante dessa realidade? Há dois anos, o CNSP, órgão ligado ao Ministério da Fazenda, autorizado a fixar as diretrizes e normas da política de seguros privados e as características gerais dos contratos [5], resolveu disciplinar essa categoria de riscos diferenciados em ato normativo próprio inspirado na Lei nº 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

Assim nasceu a Resolução CNSP nº 407, de 29.03.2021 [6], dispondo sobre os princípios e as características gerais para elaboração e comercialização de contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos. Que reflexões podemos extrair disso nos dias de hoje? O tema é da maior importância, sobretudo pelo debate instaurado no Supremo Tribunal Federal, objeto da ADI nº 7.074-DF (ministro Gilmar Mendes), ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

A Resolução nº 407 estabeleceu parâmetros para classificar os chamados seguros de grandes riscos. Após consulta pública, tendo como referência a Diretiva 2009/138/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, o CNSP segmentou os seguros compreendidos em determinados ramos ou grupos de ramos, como riscos de petróleo, nomeados e operacionais, global de bancos, aeronáuticos, marítimos, nucleares, crédito interno e crédito à exportação. Fora daí, enquadrou os seguros contratados mediante pactuação expressa por pessoas jurídicas que apresentem, alternativamente, a) limite de garantia superior a R$ 15 milhões, ou b) ativo total superior a R$ 27 milhões, ou c) faturamento bruto anual superior a R$ 57 milhões.

Na visão do órgão regulador, são estas as características que fazem um seguro ser qualificado no patamar dos grandes riscos. Mas qual é a finalidade dessa classificação? Para o CNSP, o enquadramento autoriza um regime mais flexível de fiscalização do produto junto à Susep. Sua comercialização não está condicionada a registro prévio, bastando que se mantenham arquivados, sob guarda da seguradora, as condições contratuais, a nota técnica e os documentos ligados à contratação e subscrição (artigo 7º).

A autarquia pode solicitar a qualquer tempo tais documentos para checagem e controle, sob pena de sanções, procedimento de reserva fiscalizatória semelhante ao praticado há muitos anos nos processos de contratação de seguros no exterior [7].

A Resolução nº 407 estimula a liberdade negocial e a concorrência em ambiente regulatório mais favorável à criatividade das partes em relação ao conteúdo dos contratos empresariais. Para tanto, ela dispõe que os seguros de grandes riscos serão regidos por condições contratuais livremente pactuadas, devendo observar, no mínimo, os seguintes princípios e valores básicos: I – liberdade negocial ampla; II – boa-fé; III – transparência e objetividade nas informações; IV – tratamento paritário entre as partes contratantes; V – estímulo às soluções alternativas de controvérsias; e VI – intervenção estatal subsidiária e excepcional na formatação dos produtos.

A resolução estabeleceu diretrizes [8] a serem observadas para implementar um espaço negocial mais condizente à alta capacidade dos agentes envolvidos. O CNSP está dizendo ao público que o sistema regulatório está aberto e as pessoas estão livres para negociar o conteúdo dos seguros de grandes riscos, mas não sem antes lembrar que essa liberdade precisa ser exercida de forma ampla, com boa-fé, transparência, objetividade e simetria. Princípios são espécies do gênero norma. Se tais condições estiverem presentes, duas serão as consequências a serem sopesadas em eventual conflito: a) incidência do regime dos contratos paritários e b) intervenção estatal subsidiária e excepcional no conteúdo do clausulado.

Do contrário, a não observância de tais condições terá o efeito de submeter o seguro de grandes riscos à disciplina dos contratos de adesão, cenário que atrai uma maior ingerência do Poder Judiciário, sujeitando o negócio às regras de interpretação do clausulado defeituoso a favor do aderente (CC, artigo 423 e 424). A própria resolução informa que as seguradoras são responsáveis pela adequada e correta aplicação das condições contratuais (artigo 25).

Portanto, não basta estarem classificados os seguros na moldura dos grandes riscos. A liberdade negocial ampla e a paridade de tratamento constituem condições para que esses negócios possam funcionar como seguros empresariais paritários.

É verdade que ainda existe forte hegemonia do mercado segurador na conformação dos contratos de seguro, sobretudo pela força invisível que exercem os resseguradores internacionais. É verdade também que grandes segurados muitas vezes não conseguem contratar ou renovar o seguro de sua atividade empresarial, a não ser sob extrema dificuldade, em razão do baixo apetite do mercado em alguns setores sensíveis da indústria (papel, madeira, plásticos), a deprimir ainda mais o poder negocial dos interessados.

Entretanto, é inegável que existem poderosos grupos econômicos que, estruturados com departamento interno especializado, ou munidos de corretora de seguros própria, conseguem negociar e interferir na estrutura das condições especiais e particulares da apólice.

O que fazer então diante disso? A solução é tratar todos indistintamente  pequenos, médios, grandes e gigantes — como "aderentes" dos modelos formatados pelo mercado? Ou, ao contrário, a solução é lançar os grandes segurados no jogo implacável dos contratos paritários, à distância do Poder Judiciário, com presunção absoluta de igualdade baseada em números e índices de performance contábil-financeira?

Qualquer dos extremos acima fecha os olhos para a realidade prática. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A solução só pode ser extraída dos casos concretos e suas circunstâncias. Apesar de toda liberdade conferida pelo CNSP, se ainda assim não houver espaço para efetivo diálogo e composição entre segurado e seguradora, tal estado de coisas haverá de ser sopesado pelo juiz na interpretação do contrato e definição do litígio [9].

A vida dos negócios é muito maior que uma moeda de duas faces [10]. Mesmo no campo empresarial [11], nada impede que o segurado seja aderente do programa predisposto pela companhia de seguros [12]. Nada impede também que, em nível de paridade, eventual cláusula duvidosa venha a ser interpretada a favor do segurado, se for possível identificar que ele não a redigiu [13], à luz da função social e da boa-fé objetiva (CC, artigo 113, §1º, IV, 421, 422 e 765) [14]. A própria lei de liberdade econômica ressalva as normas de ordem pública nos contratos empresariais paritários (artigo 3º, VIII) [15].

De todo modo, preenchidas as faixas do risco vultoso, a presunção será sempre relativa, admitindo prova em sentido contrário, na linha do art. 421-A do Código Civil: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais".

A resolução fala também que as condições contratuais deverão ser negociadas e acordadas mediante manifestação expressa de vontade dos contratantes (artigo 4º, §2º). O PT acusa essa disposição de ofensiva ao princípio da liberdade das formas e à consensualidade dos contratos de seguro. Misturaram as coisas.

A Resolução nº 407 não trata de critério de aceitação de proposta, assunto objeto de outra norma  a Circular Susep nº 642/2021. O CNSP está se referindo ao poder de negociação das "condições contratuais". Se não houver manifestação explícita sobre o clausulado, o negócio não será medido pela régua da simetria. Alterações unilaterais não terão efeito.

A declaração expressa é um modo de exteriorização do consentimento (oral, escrita e simbólica). Isso nada tem a ver com a solenidade obrigatória que caracteriza os contratos formais. O seguro não se torna "formal" pelo fato de exigir manifestação expressa da seguradora, assim como sua consensualidade não decorre do critério de aceitação tácita da proposta. A explicação é outra. O seguro é um negócio consensual porque a garantia pode ser constituída independentemente do seu principal instrumento de prova  a apólice [16].

Nessa perspectiva, vistas as coisas com serenidade, não houve invasão no terreno da lei federal. A Resolução nº 407 apenas transitou pela teoria dos contratos empresariais e pela lei de liberdade econômica. Não impôs presunção "absoluta" de igualdade nos seguros de grandes riscos e não decretou a imunidade desses produtos ao controle de cláusulas abusivas. Apenas estabeleceu condições para o funcionamento de possível regime paritário.

Com escopo administrativo-regulatório, o CNSP mapeou a categoria dos grandes riscos e propiciou a eles um ambiente mais flexível à inovação do mercado, estimulando a negociação fora dos modelos preconcebidos pelo órgão regulador. O Estado deu liberdade. Se essa liberdade será respeitada na prática dos negócios, é uma questão probatória a ser verificada caso a caso. A norma não impede que os remédios sejam ministrados para reequilibrar situações de vulnerabilidade, hipossuficiência ou assimetria.

Enfim, pode-se não gostar da Resolução nº 407 em razão da linha político-ideológica que a impulsionou. Pode-se discordar das métricas fixadas para classificar um seguro de grandes riscos. Pode-se até criticar a redação de suas disposições, a falta de análise de impacto regulatório etc [17]. Mas, objetivamente, o CNSP não cometeu nenhum pecado constitucional, nem mesmo legal, em matéria de direito civil e securitário.


[1] Dec.-lei nº 73/66, artigo 15 (revogado pela LC nº 126/2007).

[2] 2º TAC-SP, 12ª Câmara, Agravo nº 780.511-0/1, juiz Romeu Ricúpero, j. 13.03.2003; TJSP, 1ª Câmara, Agravo nº 406.407-4/2-00, desembargador Erbetta Filho, j. 25.04.2006; STJ, REsp 1.758.756-RJ, ministro Marco Buzzi, j. 24.03.2020.

[3] ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 332, 349, 356 e 365; MELO, Gustavo de Medeiros. O ressegurador na lide securitária. Revista Brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil. Anais do V Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: MP, 2009, p. 210; HADDAD, Marcelo Mansur. O Resseguro Internacional. Rio de Janeiro: Funenseg, 2003, p. 64; RENTE, Eduardo Santos. O Resseguro no Direito Internacional. Rio de Janeiro: Funenseg, 2014, p. 18 e 37; PIZA, Paulo Luiz de Toledo. O risco no contrato de resseguro. Seguros: uma questão atual. São Paulo: MaxLimonad, 2001, p. 174 e 184; TZIRULNIK, Ernesto. Seguro de riscos de engenharia: instrumento do desenvolvimento. São Paulo: Roncarati, 2015, p. 21.

[4] POLIDO, Walter. Contrato de seguro e atividade seguradora no Brasil: direitos do consumidor. São Paulo: Roncarati, 2015, p. 167; SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Teoria do interesse e interpretação do contrato de seguro. I Congresso Internacional de Direito do Seguro do Conselho da Justiça Federal e Superior Tribunal de Justiça: VI Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: Roncarati, 2015, p. 65 e 69; SEMENOVITCH, Leonardo & MACKENZIE, Derrick. Regulação de sinistros de grandes riscos. In: GOLDBERG, Ilan & JUNQUEIRA, Thiago (Coord.). Temas Atuais de Direito dos Seguros. São Paulo: RT, 2021, t. 1, p. 795; JÚNIOR, Walfrido Jorge Warde. Os contratos de seguro de grandes riscos como contratos de adesão. I Congresso Internacional de Direito do Seguro do Conselho da Justiça Federal e Superior Tribunal de Justiça: VI Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: Roncarati, 2015, p. 391.

[5] Decreto-lei nº 73/66, art. 32, I e IV.

 

[6] Processo Susep nº 15414.611072/2020-44.

[7] Circular Susep nº 392/2009. Artigo 10. Observado o disposto no artigo anterior, a Susep poderá, a qualquer tempo, solicitar ao segurado e/ou ao respectivo corretor os documentos que comprovem a conformidade com a regulamentação vigente para a contratação de seguros no exterior.

Parágrafo único. A não apresentação da documentação descrita no artigo anterior sujeita o segurado e/ou seu intermediário, quando residente ou domiciliado no Brasil, às penalidades cabíveis, nos termos da legislação e regulamentação em vigor.

[8] FORGIONI, Paula. Contratos Empresariais  teoria geral e aplicação. 7ª ed., São Paulo, 2022, p. 109.

[9] MIRAGEM, Bruno. Seguro de grandes riscos: disciplina jurídica no direito brasileiro atual. In: TZIRULNIK, Ernesto et al (Org.). Direito do Seguro. II Congresso Internacional de Direito do Seguro. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 905; GOLDBERG, Ilan & JUNQUEIRA, Thiago. Seguros de grandes riscos no Brasil: que mercado queremos? (parte 2). https://www.conjur.com.br/2022-jun-15/seguros-contemporaneos-seguros-grandes-riscos-parte2.

[10] GARBI, Carlos Alberto. "Il Terzo Contratto" — Surge uma nova categoria de contratos empresariais? https://www.conjur.com.br/2018-jul-30/direito-civil-atual-il-terzo-contratto-categoria-contratos-empresariais#sdfootnote1anc.

[11] COMPARATO, Fábio Konder. Grupo societário fundado em controle contratual e abuso de poder do controlador. Direito Empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 289.

[12] MARTINS-COSTA, Judith & XAVIER, Rafael Branco. A cláusula de "ensuing loss" nos seguros "all risks". In: TZIRULNIK, Ernesto et al (Org.). Direito do Seguro Contemporâneo. São Paulo: Contracorrente, 2020, v. 2, p. 25.

[13] Identificação tanto mais difícil quanto maior a interação entre as partes: KONDER, Carlos Nelson & OLIVEIRA, Williana Nayara Carvalho de. A interpretação dos negócios jurídicos a partir da Lei de Liberdade Econômica. Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Nº 25, p. 23, 2020.

[14] Embora sob menor intensidade, os contratos paritários não são imunes às normas de ordem pública: STJ, 3ª Turma, RESP nº 1.799.039-SP, ministra Nancy Andrighi, j. 04.10.2022. Na doutrina: TEPEDINO, Gustavo & SCHREIBER, Anderson. Os Efeitos da Constituição em Relação à Cláusula da Boa-fé no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Revista da Emerj. Vol. 6, nº 23, p. 149, 2003; FILHO, Paulo Furtado de Oliveira & DEZEM, Renata Mota Maciel Madeira. Os reflexos da interpretação dos contratos empresariais pelo Poder Judiciário. Cadernos Jurídicos. Nº 50, p. 127, 2019.

[15] Os postulados da liberdade não podem ser dissociados da solidariedade, igualdade e valor social do trabalho: TEPEDINO, Gustavo & CAVALCANTI, Laís. Notas sobre as alterações promovidas pela Lei nº 13.874/2019 nos artigos 50, 113 e 421 do Código Civil. In: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas & FRAZÃO, Ana (Coord.). Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2020, p. 488.

[16] Com ampla remissão bibliográfica: MELO, Gustavo de Medeiros. Ação direta da vítima no seguro de responsabilidade civil. São Paulo: Contracorrente, 2016, p. 174.

[17] BASTOS, Felipe. Os seguros para cobertura de grandes riscos na proposta de resolução brasileira. Comparação com a disciplina na união europeia e impressões jurídicas iniciais. https://www.migalhas.com.br/depeso/332939/os-seguros-para-cobertura-de-grandes-riscos-na-proposta-de-resolucao-brasileira–comparacao-com-a-disciplina-na-uniao-europeia-e-impressoes-juridicas-iniciais   

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  • é mestre e doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP), professor do curso de especialização em Direito Processual Civil (PUC-SP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro) e do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio na Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados (São Paulo).

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