Opinião

Julgamento do recurso da boate Kiss no STJ: uma reflexão sobre o dolo eventual

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12 de junho de 2023, 6h06

Está pautado para esta terça-feira (13/6), na 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), sob a relatoria do ministro Rogério Schietti, o julgamento do recurso da boate Kiss que anulou o júri. Independente da discussão a respeito das nulidades, já passou da hora de abrirmos uma discussão que, com certeza, enseja maiores reflexões: como admitir que o julgador tenha a capacidade ou expertise para alcançar a mente do acusado e reconhecer que ele aceitou ou foi indiferente ao resultado.

É possível, epistemologicamente, (re)conhecer o dolo eventual a partir das provas produzidas ou a modalidade se converte em fundamento retórico utilizado para condenar quando já se decidiu antes mesmo de julgar, como, insistentemente, alerta Lênio Streck [1] em suas obras? Com isso, adverte o doutrinador, a decisão passa a ter cunho discricionário, o que não é nada democrático. Discricionariedade e Direito não coabitam o mesmo espaço [2]. Há, nesse proceder, transgressões epistêmicas de que fala Rachel Herdy[3] e outros doutrinadores, porque o juiz invade uma área de conhecimento  psicológica  que ele não possui?

Como admitir, como no caso da boate Kiss, que o sujeito assumiu e aceitou o resultado que, inclusive, atingia a sua própria vida, a da mulher e a do filho que ela carregava no ventre?

Diante de um fato que causa comoção social, especialmente, de grande repercussão midiática, como o caso pautado, a tendencia é que o julgador, ao invés de proceder a uma análise acurada do elemento subjetivo (dolo direito), passe a utilizar da figura que melhor preserva o seu estado de espírito mental inicial, ante as pressões populares, midiáticas e, por que não, pessoais.

Por isso é que dissemos no início que a figura do dolo eventual passa a ser fundamento retórico para confirmar o que já estava decidido pelo julgador. A decisão, com esse proceder, adquiri um caráter genérico e enigmático, porque com a impossibilidade de alcançarmos a mente do acusado, por consequência, a do julgador, prejudicado está o controle da sua legalidade que é essencial num Estado Constitucional de Direito.

O fundamento do dolo eventual, nessa perspectiva, impede que se reconheça o acerto ou erro do raciocínio lógico do julgador, levantando dúvidas sobre os critérios e parâmetros utilizados, de modo, como destacado por Marcella Mascarenhas Nardelli, ao tratar sobre o dever de accountability das decisões do júri, a não saber se a decisão foi tomada, de fato, com fundamento na apreciação das provas ou influenciada por pré-conceitos, fatores midiáticos ou subjetivos [4].

A construção de uma decisão fundamentada não pode deixar dúvidas quanto ao caminho seguido pelo julgador. É preciso reconhecer, de uma vez por todos, que há limitações de ordem científica para alcançarmos a mente de uma pessoa. O juiz não é um sujeito paranormal dotado de superpoderes. Precisamos garantir que as decisões sejam fundamentadas e coerentes com as expertises de outros ramos exigidos para o caso. Inclusive, para reconhecermos o direito fundamental à devida cognição reduzindo os efeitos das dissonâncias cognitivas que afetam "diretamente a análise complexa dos elementos de prova. Avaliados em sua totalidade, torna-se mais fácil tomar-se uma decisão condenatória". "Com a seleção dos meios de prova que devem ser levados em consideração no momento de decidir, igualmente se verifica a ‘descomplexificação’ da situação jurídica que requer decisão, sendo mais fácil, assim, encontrar elementos consonantes." [5]

Reprodução
Alexandre Moraes da Rosa [6] adverte, no campo da prova, e é o que nos interessa, porque o reconhecimento do dolo eventual passa, obrigatoriamente, pela análise dos fatos e provas, que os agentes previamente convencidos da culpa adotam mecanismos de "manutenção da consonância, consistentes na 'supervalorização' da evidência/argumento irrelevante/insignificante e na 'sobrevalorização' da evidência robusta contrária, em face da busca de equilíbrio interno". Esse preço a pagar da dissonância comportamental, nas palavras do autor, "é mais um dos sintomas da ausência de accountability dos agentes públicos", por corolário, das decisões que deles são proferidas.

Essa carga de subjetividade, prejuízos cognitivos e, especialmente, a ausência de controle epistêmico que carrega a aplicação da figura do dolo eventual permite que se reconheça a sua incompatibilidade com as garantias constitucionais de um julgamento justo e imparcial.

O direito penal, já dizia Carnelutti [7], não pode ficar nas mãos do juiz, porque não se sabe o conceito de justiça que ele adota. Mas, também, deixá-lo, apenas, nas mãos dos legisladores de forma a permitir que o cidadão saiba antes as consequências dos seus atos, por si só, é uma ingenuidade quando esse, inconscientemente, coloca sobre um fato uma abstração genérica que entrega seu reconhecimento à discricionariedade do juiz, colocando-o como protagonista do reconhecimento do fato.

Urge a criação de filtro constitucional. Quando um sujeito é acusado de matar alguém por disparo de arma de fogo, as circunstâncias que envolvem os fatos, permitem que o cidadão, antecipadamente, saiba das consequências dos seus atos. Ou seja, se atirar diretamente demonstrará a intenção de matar; por outro lado, se atirar na perna pode indicar uma situação de apenas lesionar.

A questão posta é hipotética e pode haver outras variações, mas, apenas a demonstrar o "furo" existência do dolo eventual. Considerando a última situação (tiro na perna com a intenção de lesionar): o sujeito, diante de uma situação de risco, atira na perna de um desafeto, com a intenção de lesionar, interrompendo o ato. Um tiro. O desafeto, em razão do tiro na perna, morre. Detalhe o desafeto é figura pública importante e o caso ganha notoriedade mundial. A questão que fica é: o agente quis, apenas, lesionar ou assumiu o risco de causar um resultado maior, mostrando-se indiferente ou, ainda, assumindo o risco esperava que o resultado não acontecesse?

Note que no singelo exemplo há uma facilidade de o juiz adotar a figura que mais o conforta cognitivamente, de forma que resta prejudicado o controle epistêmico da decisão, porque, insista-se, é impossível alcançar a mente do agente para, de fato, adotarmos o melhor caminho. Não se trata de discutirmos a questão do mito verdade no processo penal, muito bem trabalhada pela doutrina [8], mas, de reconhecermos que o elemento de vontade no dolo eventual é de difícil alcance científico, mais ainda jurídico.

Voltando ao caso Kiss. Todos os players, emprestamos o termo usado por Alexandre Moraes da Rosa, de um processo penal sabem que o STJ possui um súmula de barreira da era jurássica (Súmula 7) que impede a análise conjunto fático e probatória de um caso, naquele Corte Superior. Pois bem. Considerando, como vimos, que a questão do dolo é, estritamente, de ordem probatória, como poderia àquela Corte Superior, no caso da boate Kiss, admitir a presença do dolo eventual, alterando a decisão do tribunal, e determinar o julgamento pelo júri?

Os professores Alexandre Wunderlich e Marcelo Almeida Ruivo [9] alertaram sobre essa situação no parecer ofertado naquele caso deixando claro que a alteração da decisão do Tribunal de Justiça para alcançar o processamento das condutas narradas como se fossem dolosas não poderiam ocorrer sem que se procedesse ao juízo empírico de completo e profundo reexame do material probatório. Mas, não foi isso que aconteceu.

O STJ, naquela ocasião, não só analisou o mérito, mas, alcançou a mente dos acusados para concluir que estava presente sim a figura do dolo eventual, permitindo o julgamento pelo Tribunal do Júri. Decisão, não só equivocada, mas midiática, porque atendia ao pleito de um certo número de pessoas e imprensa, o que demonstra a zona cinzenta que é o dolo eventual.

As razões que levam a segunda parte do inciso I, do artigo 18, do Código Penal brasileiro a não encontrar amparo na Constituição são relevantes e não podem ser normalizadas, porque é impossível admitir que dentro de um sistema constitucional acusatória seja permitido que o julgador faça uso de fundamentos de retórica, sem controle epistêmico e científico, para condenar o cidadão por dolo eventual.

Não se pretende, aqui, esgotar a discussão. Longe disso. O que esperamos é que o debate entre em cena e que se possa, diante deste singelo start, façamos um constrangimento epistemológico, ou ao menos tentemos, para utilizar as palavras do professor Lenio Streck, a academia.

A ver como caminha o julgamento e a comunidade jurídica.

 


[1] STRECK, L.L. O que é isto – Decido conforme minha consciência, Livraria do Advogado Editora; 6ª edição, 7 julho 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 5a ed., rev, mod e ampl, São Paulo: Saraiva 2014.

[2] STRECK, L.L. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG), Letramenti. p. 61, 2017

[5] Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2015, VOL. 117 (NOVEMBRO-DEZEMBRO 2015). Ricardo Jacobsen Gloeckner , PROCESSO PENAL. PRISÕES CAUTELARES, CONFIRMATION BIAS E O DIREITO FUNDAMENTAL À DEVIDA COGNIÇÃO NO PROCESSO PENAL

[6] Rosa, Alexandre Morais da. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A, Florianópolis, SC, Emais, 2021, p. 41.

[7] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Edjur, p. 61.

[8] Ferrer Beltrán (2005); Taruffo (2010); Khaled Jr. (2013), dentre outros

[9] WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo Almedia. Dolo eventual. Imputação e determinação da pena — estudos sobre o caso Boate Kiss, Livraria do Advogado, 2022.

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