Diário de Classe

A sociedade do espetáculo e o esvaziamento das fundamentações

Autor

  • é mestrando em Direito Público pela Unisinos bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos especialista em Direito Processual Civil e pós-graduando em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica ambos pela ABDConst.

    Ver todos os posts

10 de junho de 2023, 8h00

Guy Debord, em sua clássica obra A sociedade do espetáculo, publicada pela primeira vez em 1967, abordou temas que hoje são cada vez mais palpáveis. Dentre esses temas, sua obra trata sobre o surgimento da "era de dominação das imagens", as quais determinam a realidade, e geram uma confusão entre ficção e realidade, ao ponto de a imagem  traduzida pelo espetáculo  ser um método/meio de dominação.

O espetáculo, em Debord, "é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana  isto é, social  como simples aparência" [1]. Para o francês, "a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente. No mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso" [2].

Na sociedade do espetáculo  numa perspectiva de dominação econômica sobre a vida social  em que, num primeiro momento a realização humana se concentrou na passagem do ser para o ter, houve um deslizamento generalizado, passando do ter para o parecer [3].

Ludwig Feuerbach, no contexto de seu livro A essência do cristianismo, antes mesmo de Debord, denunciava um crescente culto à aparência, em detrimento do ser, que, sem dúvidas, encontra seu ápice na sociedade atual.

A célebre frase "penso, logo existo" que provocou o desencantamento do mundo [4], agora poderia ser traduzida em "posto, logo existo", ou a recorrente "sou visto, logo existo". Essa releitura de Descartes foi potencializada com as redes sociais, e evidencia cada vez mais o que Debord chamou de sociedade do espetáculo. Esse fenômeno parece refletir no contexto das instituições e estruturas estatais.

Nas redes, o espetáculo entra em seu habitat natural. Todos têm algo a dizer e, muitos, a vender.

Uma ressalva importante, num cenário em que o óbvio (ainda) precisa ser dito: O ponto, aqui, não é a utilização das plataformas para impulsão de um negócio, produto ou serviço. Isso faz parte do jogo. Seria de um reducionismo tremendo jogar o trigo no mesmo cesto do joio. Ou julgar algo pela sua vulgata.

A crítica é direcionada ao parecer que não é. À maximização da busca da aparência em detrimento ao ser. O esforço em parecer ser, maior do que o esforço em realmente ser.

Quando esse fenômeno do espetáculo passa para o campo da venda da imagem, para que, ao final, pessoas sejam convencidas da superficialidade espetacular, ou se venda algo, o "consumidor real torna-se consumidor de ilusões" a mercadoria passa a ser "essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral" [5].

No campo jurídico, essa faceta ganha proporções perigosas, a ponto de Lenio Streck chegar a propor — ironicamente, é claro  a criação do "Conselho Nacional de Combate a Pagação de Mico" ("Conamico") para combater os micos que a comunidade jurídica tem protagonizado [6]. Perdeu-se até mesmo a noção do mico.

Somos bombardeados, dia sim, dia também, por inúmeras publicações de "você sabia que…", "clica aqui, e saiba mais…", "o que é — insira aqui um tema jurídico —?". Advogados iniciantes vendem cursos e mentorias de como advogar e montar seu escritório, mesmo sem ter sobrevivido nem um ano como profissional autônomo, com renda exclusiva da advocacia  advogar é um ato de sobrevivência no Brasil. Ensinam como captar clientes, como fazer um atendimento assertivo, tudo o que você precisa saber para se dar bem na profissão, sem, no entanto, saber se "se deram bem". Cursos para "ter uma agenda cheia". Há até autoridade em cursos para estagiários! [7]

Especialistas que não se especializaram. Professores que não dão aulas, a não ser as do próprio curso. Chegamos ao absurdo de ver publicações (recortes) em que a "autoridade" do assunto dá entrevistas em podcasts falsos, justamente para otimizar essa pretensa autoridade.

O que mais chama a atenção nesse fenômeno é como a preocupação da imagem deve estar no top list de cuidados. Primeiro, aparência. Aparência de sucesso, é claro. Deive Leonardo denomina os indivíduos inseridos nesse contexto como "dublês de rico". Aparentar ser bom. A ostentação do bom sucesso basta para gerar autoridade  a OAB precisou positivar o artigo 6º, parágrafo único do Provimento 205/21 para tentar combater isso. Impor autoridade, melhor dizendo. Os vieses. As confirmações. E tudo o que se justifica para encobrir o ser, e edificar o parecer.

O que se esquece é que o que parece não é. O parecer funciona até o passo dois. O véu do parecer cai logo ali, no virar da esquina.

Se a energia gasta em gerar conteúdo para parecer bom fosse gasta em realmente buscar ser bom, teríamos outro cenário. O problema é que não dá para transformar em uma imagem um conhecimento sobre determinado tema… aí, se não serve para o espetáculo, não serve para o "mundo".

E o que isso tudo impacta no judiciário? Bom, o movimento da comunidade jurídica não parece estar imune à sociedade do espetáculo. O parecer tem se sobreposto ao ser. Para além do "marketing jurídico", é na fundamentação das decisões que podemos encontrar características do fenômeno denunciado por Debord.

O tema não é novo. Nem isolado. Streck tem falado sobre isso há tempos em inúmeras obras, e mais recentemente (aqui). Quando o STJ, no AgInt no RE nos EDcl no AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.730.036/SP reafirmou o Tema 339 do STF, e dispensou o julgador do enfrentamento, na decisão, da análise pormenorizada de cada prova ou alegação das partes, bem como a dispensa da exigência de que os fundamentos da decisão sejam corretos. Ao fim e ao cabo, a exigência é de que a decisão ao menos pareça fundamentada.

Não parece haver grande relevância no artigo 93, IX da CF, nem mesmo no artigo 489, §1º do CPC, se, no frigir dos ovos, é dispensável que os fundamentos da decisão sejam corretos. Basta que se faça um enfrentamento pro forma e o ônus da fundamentação da decisão estará cumprido. Fundamentação que se esvai. Decisões dublês, cada vez mais presentes no cotidiano forense brasileiro.

Essa crítica já foi bem explorada por Lenio Streck (aqui), e o alerta inicial  e longe de ser definitivo  ora proposto é justamente a reflexão do quanto o fenômeno da sociedade do espetáculo invadiu o Direito brasileiro, e onde ela irá nos levar enquanto comunidade jurídica. Quanto mais permitiremos que os conceitos, as instituições e anos de evolução na filosofia e na teoria do Direito sejam esvaziados na tentativa de reencantamento do mundo? [8]. Precisamos debater sobre esses impactos e sobre quanto mais estamos dispostos a sacrificar o sermos para parecermos ser.

 


[1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições antipáticas, 2005. p. 11.

[2] Ibid., p. 10.

[3] Ibid., p. 13.

[4] STRECK, Lenio Luiz. O parafuso, o bacon e o Francis Bacon: o reencantamento do direito. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 13 de abril de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-13/senso-incomum-parafuso-bacon-francis-bacon-reencantamento-direito>. Acesso em 08 jun. 2023.

[5] DEBORD, Guy. Op. Cit., p. 28.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Criemos o Conamico para combater a pagação de mico. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 24 de abril de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-24/leniostreck-criemos-conamico-combater-pagacao-mico>. Acesso em 08 jun. 2023.

[8] STRECK, Lenio Luiz. O parafuso, o bacon e o Francis Bacon: o reencantamento do direito. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 13 de abril de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-13/senso-incomum-parafuso-bacon-francis-bacon-reencantamento-direito>. Acesso em 08 jun. 2023. 

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos Bolsista Proex/Capes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos Especialista em Direito Processual Civil e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica, ambos pela ABDConst.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!