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Meu ex-colega de trabalho e a criminalização (por tráfico) da pobreza

9 de junho de 2023, 8h00

Por Igor Citeli Fajardo Castro

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Antes que haja quaisquer dúvidas, meu ex-colega de trabalho e Zuenir Ventura, o decano jornalista, não são a mesma pessoa, mas talvez o primeiro não tenha lido o grande escritor mineiro, ao menos um específico livro, em breve objeto de comentários aqui.

ConJur
O ano é 2011; Brasília, por volta de 13h.
Almoçávamos um grupo de cinco colegas de trabalho, que atuavam em um escritório de advocacia na capital federal.

O tema da conversa, não me recordo exatamente por que motivos, talvez por mais uma recente subida das forças de Estado para invasão de alguma favela no Rio de Janeiro, era a situação da segurança pública na capital fluminense.

Em determinado momento, o ex-colega de trabalho, "de forma brilhante", encontra a solução para o problema da violência na cidade maravilhosa (não necessariamente com a literalidade abaixo, mas com identidade de substância):

"A solução para o Rio de Janeiro é juntar uns três ou quatro helicópteros e despejar bombas de grande alcance em cada favela. É preciso acabar com as favelas do Rio de Janeiro; só assim o Rio terá paz!"

A sabedoria antropológica do ex-colega, digna de dar inveja em Freyre ou Darcy, arrancou aplausos de dois dos participantes do almoço de trabalho, indiferença de uma terceira pessoa e revolta no subscritor do presente texto; jamais imaginaria que, mais de uma década depois, essa infeliz história serviria de inspiração para uma primeira publicação no Conjur, em colaboração com um grupo de grande importância como é o Repensando a Guerra às Drogas.

O que o ex-colega demonstrou, e na verdade não teve coragem de dizer, foi uma visão extremamente equivocada no sentido de atribuir a responsabilidade pelo tráfico de drogas a pessoas pretas e pobres, não somente na cidade do Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil. Ou seja, o racismo que não abandona este País, ou melhor, país.

A impressão surgida naquele momento foi a de que o ex-colega, quando ouve a palavra "traficante", pensa em um negro, com cabelo rasta e um fuzil pendurado no ombro, usando uma camiseta cavada com bermuda, e o clássico par de havaianas de sola azul e fundo branco.

Inclusive, e infelizmente, a reforçar esse clichê, quem não se recorda do, curiosamente, simpático personagem "Sabiá", interpretado de forma brilhante pelo ator Jonathan Azevedo, na novela global A Força do Querer?

Diz-se curiosamente, uma vez que a personagem em questão, em vez de despertar o mesmo medo que tinha ex-colega de trabalho, foi recebida pelo público com muito carinho, rivalizando com o traficante perigoso, e branco, "Rubinho", interpretado pelo ator Emílio Dantas.

Pensando nesses distantes episódios, novelísticos e da vida real, vem à mente um livro, lido alguns anos antes do almoço em que encontrada a solução para o problema da guerra às drogas, do jornalista e escritor mineiro Zuenir Ventura.

A obra se chama Cidade Partida, e a cidade partida é exatamente a mesma cidade tema do almoço com o ex-colega: o Rio de Janeiro.

Em brevíssima e superficial síntese, Zuenir retrata em sua obra os dois "Rios", que em verdade são um só, sendo essa é a beleza de sua essência, que convivem, às vezes de forma harmônica, outras muitas vezes não: o Rio das lindas praias, morros cartões postais, de Copacabana e Ipanema, de várias outras belezas naturais e artificiais; e o Rio das favelas.

Essas duas frações da cidade, partida, misturam-se e sofrem, inegavelmente ambas, com a violência oriunda predominantemente do tráfico de drogas.

Zuenir Ventura, para escrever a obra, vivenciou presencialmente, durante certo período, o dia a dia da favela de Vigário Geral, o tristemente famoso lugar do Rio de Janeiro em virtude da chacina ocorrida em 1993 (vê-se que o pensamento do ex-colega não surgiu do nada).

O grande mérito do livro, além da forma brilhante com que Zuenir explora as duas partes da cidade, é a relação de diálogo que o autor teve com uma das personagens, o traficante Flávio Negão, que à época chefiava o comércio de drogas local.

Essa relação de diálogo consistiu em entrevistas que o jornalista e escritor realizou com Flávio sobre a realidade da vida na favela e o convívio com o tráfico de drogas.

O ponto alto da obra, na visão subjetiva de quem agora escreve o presente artigo, dá-se em dois momentos: um por volta da metade do livro e outro nas últimas páginas, e que são ligados por um elo que é o próprio contexto de toda a história narrada por Ventura.

Trata-se de dois questionamentos, em entrevistas diversas, do jornalista escritor ao traficante Flávio Negão, e, sobretudo, das respostas da entrevista.

Zuenir, na metade da obra, questiona Flávio Negão, o chefe do tráfico local, sobre quem, em verdade, estava acima dele. Ou seja, o autor aponta que, por mais que ele, Negão, fosse temido e respeitado na favela, que gerenciasse o comércio de drogas, não era, de fato, o "dono do empreendimento".

O autor, então, indaga o traficante (os diálogos a seguir não são uma reprodução literal da obra).

"- Para quem você trabalha? Quem é o seu chefe, pois sei que você não é o ápice da cadeia produtiva…"

A resposta de Flávio Negão é fantástica e desafiadora. É um soco de sabedoria de onde deve(ria) partir qualquer pessoa que se proponha a realizar um sério estudo sobre a criminalização da pobreza.

"Zuenir… Olhe em sua volta, esta favela, estas casas e as pessoas. Você consegue ver alguma plantação de maconha, coca ou outra planta para produzir drogas? Você consegue ver alguma fábrica de refino de cocaína? Como você acha que toda a droga que é vendida na favela chega até aqui?"

Zuenir, então, insiste no questionamento.

"Eu te entendo perfeitamente, mas então me diga, quem é seu chefe, para quem você trabalha?"

A resposta de Flávio:

"Isso eu não posso falar."

O livro se desenvolve e chega-se às últimas páginas, que se encerram com uma nova entrevista de Zuenir a Flávio Negão.

Eis que, como pergunta final, Zuenir questiona o traficante:

"Mas, enfim, me diga, quem está acima de você?"
"Isso realmente eu não vou falar."

E assim termina o livro.

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil

O almoço de trabalho e as palavras de Flávio Negão, na obra Cidade Partida, servem para a reflexão que faltou ao ex-colega e certamente falta a grande parte da população brasileira: seriam as moradoras e moradores de favela os reais culpados pelo tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro ou mesmo em todo o Brasil?

Interessante é que a passagem do tempo vem demonstrando quão questionável é essa associação. Alguns fatos deixam isso bem claro [1].

A leitora ou leitor, por exemplo, e menos ainda o ex-colega, não deve saber que em outro dia, precisamente na data de 13 fevereiro de 2023, na cidade de João Monlevade, foram apreendidos nada mais nada menos do que 1.800 kg de maconha. Não há erro de digitação: foram uma tonelada e oitocentos quilos, não um quilo e oitocentos gramas [2].

Há, todavia, dois casos mais notórios: quase meia tonelada de cocaína transportada em helicóptero ligado a família de ex-senador da República [3] e 37 kg de cocaína transportados em avião da FAB, Força Aérea Brasileira [4].

Existem vários outros semelhantes. Contudo, esses três já são suficientes para a conclusão que se segue.

É quase certo que essas drogas não pertenciam a nenhuma moradora ou morador de favela. Neste caso, de acordo com a óptica antropológica do ex-colega, quem deveria receber uma chuva de bombas para a salvação do Brasil?

Repensando a Guerra às Drogas: é tão difícil enxergar que a grande maioria, quase totalidade, das pessoas pobres que moram em favelas ou outros bairros periféricos, em quaisquer cidades do país, não têm qualquer relação com o tráfico de drogas?

Ser preta ou preto e pobre, moradora ou morador de favela, não torna a pessoa culpada por um problema de extrema complexidade, que é o tráfico de drogas. Longe, muito longe disso. Elas, aquelas pessoas, talvez, sejam as maiores vítimas. Talvez, não; com toda a certeza são as maiores vítimas.  

Não será criminalizando a pobreza que se encontrará a solução para este problema.

O famoso traficante do livro foi morto pouco tempo depois da publicação da obra [5], numa troca de tiros com o BOPE (o ex-colega deve ter curtido isso). Ele, infelizmente, jamais responderá à indagação de Zuenir. Mas a pergunta permanece viva.

Afinal… quem manda em Flávio Negão?

 


[1] Obviamente, não imputa o autor do texto crime a quem quer que seja a partir da descrição dos fatos seguintes. Os acontecimentos somente são citados no texto, de forma objetiva, como foram divulgados na mídia nacional.